Carta 95 – Um homem que seja bom por acaso não dá garantias de que será sempre bom!
Pedes-me que trate de uma matéria que há tempo te disse dever ser adiada para tempo oportuno, e dedique uma carta a expor se aquela parte prática da filosofia a que os gregos dão o nome de paraenetice e nós o de praeceptiua basta só por si para se atingir a plena sabedoria. Sei que não me levarias a mal se eu me recusasse ao teu pedido. Por isso mesmo vou mais longe, e acedo ao que pedes, até porque quero que se cumpra o ditado:
“Não te ponhas a pedir o que não pretendes obter!”
É que sucede muitas vezes nós pedirmos com empenho coisas que recusaríamos se alguém no-las oferecesse. Por ligeireza? Por excesso de gentileza? Seja qual for a razão, apliquemos-lhe um castigo: acedamos largamente ao pedido. Muitas coisas nós desejamos parecer querer quando de fato as não queremos. Numa leitura pública, um autor levou uma vez uma obra histórica enorme, escrita em letra miudinha, num volume densíssimo, e, depois de ler a maior parte, disse:
“Se querem, fico por aqui.”
Ora os auditores, embora o seu único desejo fosse que o homem se calasse imediatamente, gritaram em coro:
“Continua a leitura, continua!”
Muitas vezes, também, queremos uma coisa mas escolhemos outra, e nem sequer aos deuses confessamos a verdade; o que vale é que os deuses ou não nos atendem ou têm pena de nós! Quanto a mim, vou proceder sem qualquer compaixão : vou mandar-te uma carta gigantesca! Se te custar muito lê-la, não terás mais do que dizer:
“Bonito serviço que eu arranjei!”,
e põe o teu nome entre o daqueles homens que se desfizeram em galanteios para casar com uma megera, ou se fartaram de suar para conseguir riquezas e nelas só encontraram angústias, ou usaram todos os truques e esforços para obter cargos públicos em que se sentem destroçados, em suma, inclui-te na lista dos artífices dos próprios dissabores!
Mas deixemos os preâmbulos e entremos na matéria. Certos autores afirmam:
“Uma vida feliz consiste numa série de ações justas; os preceitos induzem à prática de ações justas, logo, os preceitos bastam para que consigamos uma vida feliz.”
A verdade é que os preceitos nem sempre induzem à prática de ações justas, mas apenas quando o espírito lhes obedece; de outro modo, se a alma está dominada por opiniões incorrectas, em vão recorreremos aos preceitos da filosofia. Também pode suceder que as pessoas pratiquem acções justas, mas sem terem consciência de que as suas ações são justas.
Ninguém, a não ser que formado a partir da base e totalmente orientado pela razão, pode estar apto a conhecer todos os seus deveres e saber quando, em que medida, com quem, de que modo e por que razão deve agir. Não pode conformar-se à moral de toda a sua alma, nem com constância e boa vontade sequer: continuamente há-de hesitar, de tergiversar.
Afirmam também:
“Se a ação moral decorre dos preceitos, então os preceitos bastam para atingir a vida feliz; ora a premissa é válida, logo, a conclusão também o é.”
A esta tese objetamos nós: as ações morais decorrem também dos preceitos, mas não dos preceitos exclusivamente.
Mais outra afirmação :
“Se às restantes artes bastam os preceitos, também bastarão à sabedoria, pois esta é a arte da vida. Como se ensina o ofício a um piloto? Dizendo-lhe ‘que manobre o leme desta maneira, que recolha as velas deste modo, que aproveite assim o vento favorável, que faça frente assim ao vento contrário, que tire partido assim do vento que ora sopra daqui ora dali’. Os preceitos também chegam para formar os demais artífices, e portanto também serão suficientes no caso do artífice da arte de viver.”
Todas estas artes ocupam-se de elementos acessórios da vida, não da vida na sua totalidade; muitas causas exteriores – a esperança, a ambição, o medo podem impedir essas artes de atuar livremente. Mas a arte que faz da vida a sua ocupação não conhece obstáculo que possa impedi-la de se exercer, pois sabe despedaçar todos os impedimentos e afastar todos os obstáculos.
Queres entender bem em que se distingue a condição desta arte da de todas as demais? É que nestas é mais desculpável cometer um erro de propósito do que por acaso, enquanto na sabedoria a pior falta consiste em errar deliberadamente.
Eu explico-me melhor: um gramático não corará se fizer um solecismo propositadamente, mas . corará se o fizer sem querer; um médico que não perceba que o doente se está apagando mostra-se mais incompetente na sua arte do que se percebe mas dissimula a situação; em contrapartida, na nossa arte da vida o defeito é tanto mais grave se for voluntário.
Acrescenta a isto que muitas artes – e, sobretudo, aquelas que de entre todas são as mais liberais – assentam numa série de princípios teóricos, e não apenas em preceitos de ordem prática. É o caso da medicina; por isso mesmo é que é possível distinguir a escola de Hipócrates da de Asclepíades e da de Temisão.
Mais não há qualquer ciência especulativa que não tenha o seu corpo de princípios básicos – ou seja, aquilo a que os gregos chamam δόγματα (dógmata) e que, em latim, podemos designar por decreta, seita ou placita : por exemplo, os princípios em que assenta a geometria ou a astronomia.
A filosofia, por seu lado; é em parte especulativa e em parte ativa, pois tanto se embrenha na contemplação como se atualiza através da ação. Se, portanto, imaginas que ela apenas se cinge ao plano da ação terrena estás perfeitamente enganado. A filosofia dir-te-á:
“Eu perscruto a totalidade do universo, não me limito à companhia dos mortais, contentando-me em persuadir-vos ou dissuadir-vos de agir desta ou daquela maneira; outras tarefas mais altas me aguardam, muito acima da esfera humana: “a suprema razão do universo e dos deuses irei expor-te, e revelar-te a constituição do mundo; donde extrai a natura todos os seres, os desenvolve e cria, e onde a mesma natura por fim os seres dissolve”,
para usar as palavras de Lucrécio De rerum natura, i, 54-7. Daqui se conclui que a filosofia, na medida em que é contemplativa, tem os seus princípios teóricos de base. Não é verdade que ninguém será capaz de agir sempre corretamente se não tiver um conjunto de princípios que lhe indiquem qual a ação correta em todas as circunstâncias?
Ora, não poderá proceder convenientemente quem apenas conhecer preceitos de ordem particular, e não de aplicação universal. Os preceitos indicados em função de circunstâncias particulares são, em si mesmos, insuficientes, carecem – passe a expressão – de raiz. Existem princípios básicos capazes de rios robustecerem, de nos assegurarem confiança e tranquilidade de espírito, de abarcarem tanto a totalidade da vida humana como a totalidade do universo.
Entre os princípios básicos da filosofia e os preceitos práticos existe a mesma diferença que entre as letras e os membros da frase: estes são constituídos por letras, as quais originam tanto os membros de frase como a totalidade das frases possíveis!
Vejamos outra tese.
“A antiga sabedoria limitava-se a preceituar o que os homens deviam fazer ou evitar, e o certo é que antigamente os homens eram de longe melhores do que hoje; quando começou a haver eruditos começaram a escassear os homens de bem; a virtude simples e transparente de outrora metamorfoseou-se numa ciência obscura e feita de subtilezas que nos ensina a discutir, mas não a viver.”
Tendes decerto razão, houve sem dúvida essa antiga sabedoria, tosca evidentemente nas suas origens, como de resto sucedeu com as outras técnicas que, com o tempo, se foram tornando cada vez mais aperfeiçoadas.
Nessa época, porém, os homens não careciam ainda de remédios fortes. A perversidade ainda não tinha atingido a intensidade e a dispersão a que chegou nos dias de hoje: para vícios simples eram suficientes remédios simples! Atualmente, carecemos de uma proteção tanto mais enérgica quantos mais violentos são os vícios que nos afligem.
A medicina, antigamente, limitava-se a investigar umas quantas ervas que estancassem as hemorragias e fizessem as feridas cicatrizar. Depois, foi gradualmente evoluindo até chegar à atual multiplicidade de técnicas.
Não admira, aliás, que nesses tempos a medicina tivesse tão diminuto campo de aplicação: os corpos eram ainda rijos, sólidos, a alimentação era natural, não corrompida ainda pelos prazeres da gastronomia. Mas, depois, a comida tornou-se numa forma, não de satisfazer, mas sim de aguçar o apetite, inventaram-se mil e um condimentos para estimular a gula; os alimentos desejados com o estômago vazio redundam em carga insuportável quando enchemos o estômago.
Resultado: a palidez, a excitação dos nervos ensopados em vinho, o ar macilento – mais preocupante quando provém de indigestão do que de fome. Mais: a incerteza no andar, a marcha aos tropeções, como quando se está embriagado. E também o suor espalhado por todo o corpo, o ventre dilatado graças ao mau hábito de exceder a sua capacidade.
E também o rosto esverdeado pelo derramamento da bílis, a corrupção das vísceras em putrefação, os dedos deformados pela perda de flexibilidade nos tendões, os nervos entorpecidos e sem sensibilidade, ou, pelo contrário, em contínuos estremeções.
Para quê mencionar ainda as sensações de náusea, as moléstias dos olhos ou dos ouvidos, o formigueiro na cabeça que parece estoirar, as afecções provocadas por toda a espécie de úlceras internas? Mas temos ainda os inúmeros tipos de febres: há febres súbitas e altíssimas, há outras, fracas, mas contínuas e desgastantes, outras que vêm acompanhadas de arrepios e de grandes tremores no corpo.
Para quê citar ainda outras incontáveis doenças, tormentos resultantes da vida luxuriosa? ! De todos estes males estavam isentos os homens de outrora, não corrompidos ainda pela artificialidade, homens que sabiam dominar-se e cuidar de si. Endureciam o corpo no trabalho, no esforço a sério, o cansaço vinha-lhes das caminhadas, da caça, do trabalho da terra; a alimentação de que dispunham era tal que apenas a esfomeados podia agradar!
Por isso mesmo não tinham necessidade de grande aparato medicinal, de todo este moderno arsenal de instrumentos e pomadas! Uma vida simples dava-lhes uma saúde simples: as variedades gastronómicas trouxeram consigo a multiplicidade das doenças.
Vê bem a mistura de iguarias que o nosso luxo gastronómico – e para tal devasta a terra e o mar! – consegue fazer passar por um só esófago! Necessariamente, comidas tão antagónicas entre si colidem umas com as outras, provocam más digestões com toda a gama de esforços que exigem ao estômago. Não admira, pois, que de alimentos de tão diversa natureza resultem doenças multiformes , que iguarias provenientes de opostos reinos da natureza e forçadas a coabitar num único estômago provoquem indigestões. Em suma, a vida moderna arrasta consigo doenças não menos modernas!
O maior médico de sempre – e fundador da medicina como ciência – dizia que as mulheres estavam ao abrigo da queda do cabelo e de dores nos pés (1): ora, hoje vemo-las sem cabelo e com gota nos pés! Não que a natureza das mulheres sofresse alguma mutação. Só que foi ultrapassada, e, como elas se igualaram aos homens em matéria de excessos, passaram a sofrer dos mesmos distúrbios físicos que os homens. Não fazem menores noitadas nem bebem menos do que eles; no consumo de óleo(2) e de vinho rivalizam plenamente com os homens.
Tal como eles, “restituem” pela boca as iguarias que o estômago rejeita e aliviam-se, vomitando, do vinho consumido; tal como eles, chupam bocados de gelo para aliviar a azia. Em matéria de sensualidade também em nada cedem aos homens: elas, que nasceram para ser passivas (possam os deuses e deusas castigá-las como merecem!), tão longe se aventuraram na via da licenciosidade que agora, com os homens, são elas quem desempenha o papel ativo !
Porquê admirar-nos então que Hipócrates, a glória da medicina, o maior conhecedor da natureza humana, seja assim apanhado a mentir, dada a presente abundância de mulheres calvas e atacadas da gota? ! Elas perderam as regalias próprias do seu sexo e, renunciando à feminilidade, viram-se condenadas às moléstias dos homens.
Antigamente, os médicos não sabiam dosear a alimentação nem usar o vinho para tratar problemas de circulação, não sabiam fazer sangrias nem tratar doenças crónicas com banhos de vapor, não sabiam usar ligaduras para puxar até às extremidades os excessos de reuma nas pernas ou nos braços. Não era necessário congeminar muitos tipos de tratamento, pela simples razão de que eram reduzidas as variedades de doença.
Nos dias de hoje, como progrediram as deficiências de saúde! Pelos prazeres que nos proporcionamos, pagamos um juro que ultrapassa todos os limites legítimos! Não te admires com o número imenso das moléstias : conta o número dos cozinheiros!
As atividades intelectuais estão paradas, os mestres dos estudos liberais sentam-se nos seus cantos sem assistência, nas escolas dos retores e dos ·filósofos é o deserto; em contrapartida, vê como estão cheias as cozinhas, vê a multidão que se acotovela nas casas pródigas em festins!
E já nem falo dos infelizes rebanhos de escravos que, acabado o banquete, têm à sua espera as infâmias de alcova; já nem falo das multidões de jovens “queridos” agrupados segundo a raça e a cor, dentro de cada grupo todos com o mesmo peso, todos com a barba nascente à mesma medida, todos com o mesmo tipo de cabelo, não vá algum que tenha cabelo liso aparecer misturado com os de cabelo encaracolado! Já nem falo da multidão dos pasteleiros, já nem falo dos escravos de mesa que, numa correria, se põem a servir a ceia ao sinal do senhor.
Ó grandes deuses, que quantidade de gente mobiliza um único estômago! Pensas tu que os cogumelos, esse voluptuoso veneno, não provoca maleitas a longo prazo, mesmo que o efeito não seja imediatamente perceptível? Julgas que as ostras, esses animais de carne mole engordados na lama, não causam um lamacento peso no estômago? Não achas que o garum que importamos, esse molho apodrecido e precioso de peixes repelentes, nos queima os interiores com a sua salmoura deteriorada? (3)
Não entendes que todo esse sabor a podre que a azia nos faz vir à boca, se forma nas nossas vísceras com prejuízo para a saúde? Vê como são fétidos e pestilentos os arrotos, vê as náuseas que acompanham a permanente saturação! Por aí verás que os alimentos, em vez de serem digeridos, estão mas é a apodrecer!. ..
Lembro-me de há tempos se falar muito numa célebre travessa em que os cozinheiros juntaram – para sua ruína! – todos os manjares que os gastrónomos costumam comer ao longo do dia: vieiras, búzios, ostras, tudo partido em bocadinhos …ouriços (4) e rodovalhos sem espinhas!
Até já se tem preguiça de comer os petiscos um a um: faz-se uma mistura de todos os sabores. Faz-se no prato, em suma, o que deveria fazer-se no estômago. Só falta ver qualquer dia servir a comida já mastigada! Então não dá muito menos trabalho tirar as conchas e as espinhas, e pôr o cozinheiro a fazer o trabalho dos dentes ? “É muito aborrecido saborear cada coisa de sua vez : junte-se tudo, saboreie-se tudo de uma só vez!
Para que hei-de eu estender a mão para um prato simples? Venha tudo ao mesmo tempo, misturem-se numa só massa os acompanhamentos de diversos pratos! Saibam quantos costumam dizer que a exibição de pratos variados é uma prova de luxo e ostentação, que a comida não é para ser vista, mas sim saboreada.
Ponha-se numa travessa só o que se costuma pôr em várias, tudo indiferentemente misturado; não haja diferenças: ostras, ouriços, búzios, rodovalhos – sirva-se tudo cozinhado e misturado num só prato!” Um vomitado não formaria uma massa mais confusa! E, do mesmo modo que as comidas chegam a esta confusão, também as doenças que elas ocasionam não são individualizadas, mas sim confusas, várias, multiformes; para lhes fazer frente, teve a medicina de multiplicar também as formas de tratamento e de observação.
Idênticas considerações devo fazer acerca da filosofia. Também esta foi, em tempos, menos complicada, quando as faltas dos homens eram menos graves e podiam sanar-se . com cuidados ligeiros. Mas contra a enorme perversão atual dos costumes há que tentar todos os recursos. E, mesmo assim, bom seria que esta pestilência fosse levada de vencida! É que hoje a loucura não se limita à vida privada, invade igualmente a vida pública.
Nós punimos os assassínios, castigamos um homem que mata outro: então e as guerras, os criminosos massacres de populações, que são tomados como motivo de glória? A ganância e a crueldade não conhecem limites.
Ainda assim, menos nocivas e menos monstruosas elas são quando exercidas às escondidas e por particulares: hoje, é através de decretos senatoriais e de plebiscitos que se exerce a ferocidade, é a lei que manda fazer-se a nível do Estado o que proíbe a nível particular!
Um crime que, cometido às ocultas, incorreria em pena capital, suscita louvores quando praticado por militares! A espécie humana – raça branda por natureza! – não tem pejo em satisfazer-se com o sangue do próximo, em iniciar guerras e deixá-las em herança às gerações seguintes, quando até as feras irracionais vivem em paz entre si.
Para lutar contra uma loucura tão violenta e tão largamente difundida a filosofia tornou-se mais complexa, teve de ganhar um acréscimo de forças proporcional ao acréscimo dos males que combate. Era fácil censurar alguém que cedia um pouco à bebida ou buscava na comida um certo requinte; para conduzir uma alma nestas condições à frugalidade de que apenas ligeiramente se afastara não era necessária muita energia;
“hoje exige-se rapidez de mão e todos os recursos da arte” (5)
O que se busca é apenas o prazer! Nenhum vício se conserva dentro dos seus limites: o luxo degenerou em ganância! O desprezo pela moral invadiu todos os domínios: nada se considera ignóbil quando se pode pagar o preço. O homem – que para o homem devia ser coisa sagrada – é exposto à morte apenas para servir de divertimento; já era sacrilégio treinar homens para ferirem e ser feridos agora atiramo-los para o circo nus e inermes, basta-nos a simples morte como espectáculo ! (6)
Por conseguinte, uma tal perversão de costumes exige uma técnica mais vigorosa do que o habitual para conseguir dominar estes vícios enraizados: temos de inculcar princípios capazes de extirpar por completo as falsas convicções em vigor. Se, concomitantemente com os princípios, usarmos também preceitos, consolações, exortações, talvez aqueles possam vir a prevalecer : só por si serão ineficazes.
Se queremos manter os homens obedientes aos princípios, se queremos arrancá-los aos vícios que os dominam, há que ensinar-lhes primeiro o que é o mal e o que é o bem, há que dar-lhes a saber que, exceptuando a virtude, todas as coisas podem mudar de qualificativo, e merecerem umas vezes serem consideradas como más e outras como boas.
Na vida militar, o mais forte vínculo é o respeito à hierarquia, o amor às insígnias, o repúdio da deserção; nestas condições é fácil conseguir tudo o mais que se queira dos recrutas que prestaram juramento. Do mesmo modo, nos homens que desejamos aliciar para a verdadeira felicidade,devemos inculcar os princípios de base, devemos meter dentro deles a virtude. É necessário que se sintam ligados a ela como por um temor supersticioso, é precifo que a amem, que queiram viver com ela, que não possam passar sem ela.
“Que dizes? Então não tem havido homens que, mesmo não iniciados nas subtilezas da filosofia, se revelaram basicamente honestos e conseguiram grandes progressos limitando-se a obedecer aos preceitos de ordem prática?”
Não o nego; havia neles um natural favorável que assimilou na passagem os princípios salutares. Os deuses imortais também não aprenderam nenhuma espécie de virtude por serem naturalmente dotados de todas, por o “ser bom” fazer parte da sua natureza; igualmente entre os homens, alguns há que possuem naturalmente um excelente carácter e que assimilam sem necessidade de longa instrução os princípios tradicionais, que abraçam a via da moralidade desde o primeiro momento em que dela ouvem falar; do meio destes é que surgem aqueles génios que concitam em si toda a gama de virtudes, que produzem eles mesmos virtudes.
Mas aos outros, àqueles que têm o espírito embotado, obtuso ou dominado por tradições errôneas, a esses há que raspar a ferrugem que têm na alma.
Mais ainda: se transmitirmos os preceitos básicos da filosofia aos primeiros, rapidamente eles atingirão o mais alto nível, pois estão naturalmente inclinados ao bem; se o fizermos aos outros, os de natureza mais fraca, ajudá-los-emos a libertarem-se das suas convicções erradas.
Por aqui podes ver como são necessários os princípios básicos. Temos instintos em nós que nos fazem indolentes ante certas coisas, e atrevidos perante outras; ora, nem este atrevimento nem aquela indolência podem ser eliminados se primeiro não removermos as respectivas causas, ou seja, a admiração infundada ou o receio infundado.
Enquanto tivermos em nós esses instintos, bem poderás dizer:
“estes são os teus deveres para com teu pai, ou para com os filhos, ou para com os amigos, ou para com os teus hóspedes” –
o espírito de lucro será sempre uma causa de hesitações. Um homem bem pode saber que se deve lutar pela pátria, mas o medo convencê-lo-á do contrário; pode saber que se deve suar em benefício dos amigos até á última gota de suor, mas o comodismo impedi-lo-á de o fazer; pode saber que a maior ofensa para uma mulher casada é o marido ter uma amante, mas a sensualidade impeli-lo-á a arranjar uma.
Por conseguinte, de nada servirá dar conselhos práticos se primeiro se não removem os obstáculos a que esses conselhos sejam seguidos, do mesmo modo que de nada serve pormos à vista e ao alcance de alguém armas que não poderá usar porque lhe não desamarramos primeiro as mãos!
Para que a alma possa pôr em prática os conselhos que lhe damos, devemos primeiro desamarrá-la! Imaginemos alguém que procede como deve ser: pode não proceder assim com frequência, pode não proceder assim com constância, porque não sabe porque motivo procede como deve ser. Às vezes, por mero acaso ou em virtude da prática, podemos desenhar linhas retas, mas não temos à mão uma régua que permita verificar se são realmente retas as linhas que julgamos tais. Um homem que seja bom por acaso não dá garantias de que será sempre bom!
Admito também que os preceitos possam levar o teu “aconselhando” a proceder segundo a moral, mas não lhe facultam a regra para sempre proceder de forma moral; e se não conseguem isto, também não conseguem levá-lo à virtude. Aconselhado, ele poderá agir segundo a moral, admito. Mas isso pouco significa, pois o mérito não está na forma como agimos, mas sim nas razões que nos levam a agir assim.
Há coisa mais perniciosa e que mais contribua para dissipar um património equestre do que um banquete de luxo? Há coisá que mais mereça os reparos do censor quando – para usar os termos dos nossos gastrónomos! – tal banquete é apenas em honra dos próprios e do seu “génio” individual ?
E, todavia, tem havido homens, modelos de frugalidade, que ofereceram banquetes inaugurais por um milhão de sestércios. Quer dizer, o mesmo banquete que, motivado pela gula, é desonroso, já escapa à censura se derivar da obrigação do cargo, porquanto, ao contrário do luxo ostentatório, a despesa do banquete inaugural é imposta pelo uso.
Um dia, ofereceram a Tibério César um rodovalho de tamanho gigantesco – mas porque não dizer o peso, para fazer crescer a água na boca a uns tantos? -, com quatro libras e meia, segundo constou. César mandou-o ser posto à venda no mercado, dizendo:
“Ficarei decepcionado com os meus amigos se este rodovalho não for comprado por Apício ou por P. Octávio!”
Sucedeu que a realidade ultrapassou em muito as expectativas: organizou-se um leilão, saiu vencedor Octávio, que assim alcançou grande glória no seu círculo de amizades: comprou por cinco mil sestércios o peixe posto à venda por César e que o próprio Apício não conseguiu adquirir!
Pagar uma tal soma foi um gesto vergonhoso da parte de Octávio, mas já o mesmo não digo do homem que comprou o peixe na intenção de o oferecer a Tibério, se bem que mesmo este homem mereça alguma censura por deixar-se seduzir por uma iguaria que entendeu ser digna de César.
Outro exemplo: nós aprovamos alguém que se senta à cabeceira de um amigo doente. Mas suponhamos que o faz com mira na herança: torna-se um abutre à espera de um cadáver! As mesmas ações, portanto, podem ser desonrosas ou honestas, tudo dependendo da razão porque são feitas, dos princípios que as motivam.
Ora, todas as ações serão honestas se nós as conformarmos à moralidade, se pensarmos que entre os homens o único bem é o bem moral e tudo quanto deste derive; todos os demais bens são efémeros. Devemos, por conseguinte, interiorizar esta convicção, que respeita à totalidade da nossa vida.
É a tal convicção que eu chamo um princípio. Tal como for a natureza desta convicção, assim serão também as nossas ações e os nossos pensamentos, e tal como for a natureza destes, assim será também a nossa vida. Dar conselhos parcelares é insuficiente se que-remos pôr no bom caminho a totalidade da vida. M. Bruto, no seu livro περί κανηκοντός registra muitos preceitos práticos de utilidade para pais, filhos e irmãos, mas ninguém poderá obedecer a tais preceitos se não tiver uma regra de conduta geral em que se apoie.
É necessário que nos propunhamos, como finalidade última, alcançar o sumo bem, e que todos os nossos esforços, ações e palavras se orientem por essa finalidade.
Façamos como os marinheiros, que orientam a rota na direcção de uma determinada estrela. Sem uma finalidade, a vida torna-se um andar à deriva; mas se queremos propor-nos uma finalidade, começamos a sentir como são indispensáveis os princípios. Tu admites, acho eu, que não há maior vergonha do que andar sempre com dúvidas e hesitações, sem saber onde pôr os pés.
O mesmo nos sucederá em todas as esferas da vida se primeiro não eliminarmos as causas que nos entravam e manietam a alma e a impedem de dar o melhor de si própria.
Um tema habitual da parenética é o culto a prestar aos deuses.
Podemos aconselhar as pessoas a não acenderem lucernas ao sábado , porque nem os deuses têm falta de luzes nem os homens têm grande prazer na fuligem. Podemos impedir as pessoas de fazerem as visitas de saudação matinais ou de estacionarem à porta dos templos: estes deveres podem agradar às ambições humanas, mas para prestar culto à divindade basta conhecê-la. Podemos impedi-las de ofertarem a Júpiter toalhas e raspadores de banho, ou de oferecerem um espelho a Juno: a divindade não carece de instrumentos auxiliares, pela boa razão de que ela própria é auxiliar do género humano, sempre à disposição de todos os homens, onde quer que seja.
Alguém que porventura oiça dizer qual o modo de proceder nos sacrifícios, ou seja aconselhado a manter-se afastado de superstições doentias, nunca progredirá efetivamente se não conceber no seu espírito a real natureza da divindade, a qual nada possui mas tudo concede, como ser desinteressadamente benéfico.
A razão porque os deuses são benfazejos reside na sua própria natureza. Enganamo-nos se pensarmos que os deuses não querem fazer o mal: eles não o podem! Eles estão ao abrigo das injúrias, tal como são incapazes de as fazer, na medida em que fazer mal ou sofrer mal são duas coisas que mutuamente se implicam.
A sua natureza, a mais excelsa e perfeita que existe, tal como os pôs ao abrigo de todos os perigos igualmente os tornou incapazes de constituírem um perigo. O primeiro ato de culto a prestar aos deuses é acreditar neles; seguidamente, reconhecer neles a majestade, e reconhecer também neles a bondade, sem a qual não há majestade possível; saber que são eles que presidem ao universo, que tudo governam graças ao seu poder, e que velam pela segurança da espécie humana mesmo quando não se preocupam com cada homem individualmente.
Os deuses nem ocasionam o mal nem o sofrem; podem, todavia, castigar alguns indivíduos, reprimi-los, atribuir-lhes punições, ou mesmo, por vezes, puni-los, dando a aparência de fazerem bem. Se queres ser agradável aos deuses sê tu próprio bom! Prestar-lhes-ás culto em abundância se te limitares a imitá-los!
Passemos a outra questão: o modo de tratarmos com o nosso semelhante. Como devemos agir, que preceitos ministrar? Que não derramemos sangue humano? Ao nosso semelhante devemos fazer o bem: aconselhar a não lhe fazer mal, que ridículo! Até parece que encontrar algum homem que não seja uma fera para os outros já é coisa merecedora de encômios…
Vamos aconselhar a que se estenda a mão ao náufrago, se indique o caminho a quem anda perdido, se divida o pão com o esfomeado? Mas para que hei-de eu enumerar todos os actos que devemos ou não devemos praticar quando posso numa só frase resumir todos os nossos deveres para com os outros?
Tudo quanto vês, este espaço em que se contém o divino e o humano, é uno, e nós não somos senão os membros de um vasto corpo. A natureza gerou-nos como uma só família, pois nos criou da mesma matéria e nos dará o mesmo destino; a natureza faz-nos sentir amor uns pelos outros, e aponta-nos a vida em sociedade. A natureza determinou tudo quanto é lícito e justo; pela própria lei da natureza, é mais terrível fazer o mal do que sofrê-lo; em obediência à natureza, as nossas mãos devem estar prontas a auxiliar quem delas necessite. Devemos ter gravado na alma, e sempre na ponta da língua, o verso famoso:
“sou homem, tudo quanto é humano me concerne !”(8)
Possuamos tudo em comunidade, uma vez que como comunidade fomos gerados. A sociedade humana assemelha-se em tudo a um arco abobadado: as pedras que, sozinhas, cairiam, sustentam-se mutuamente, e assim conseguem manter-se firmes!
Já considerámos os deuses e os homens; vejamos agora como devemos lidar com as coisas. Quanto a este ponto, ministrar preceitos sem previamente explanarmos qual a opinião correcta a ter sobre cada coisa – pobreza, riqueza, glória, ignomínia, pátria, exílio – equivaleria a pura perda de tempo. Avaliemos cada coisa de per si, sem ligarmos às opiniões correntes, investiguemos o que cada coisa é de de fato, e não o que os homens lhe chamam.
Passemos às virtudes. Haverá filósofos que pretendem induzir-nos a dar grande valor à prudência, a praticarmos a virtude da coragem, a nos aplicarmos à justiça – se for possível – com maior empenho ainda do que às restantes virtudes.
Pois bem: de nada servirão estes conselhos se nós ignorarmos o que é a virtude, se ela é una ou múltipla, se as virtudes são individualizadas ou interdependentes, se quem possui uma virtude possui também as restantes ou não, qual a diferença que existe entre elas.
Um operário não precisa de investigar qual a origem ou a utilidade do seu trabalho, tal como o bailarino o não tem que fazer quanto à arte da dança : os conhecimentos relativos a todas estas artes estão circunscritos a elas mesmas, porquanto elas não têm incidência sobre a totalidade da vida.
A virtude, porém, implica tanto o conhecimento dela própria como o de tudo o mais; para aprendermos a virtude temos de começar por aprender o que ela é. Uma ação não pode ser correta se não for correcta a vontade, pois é desta que provém a ação.
Também a vontade nunca será correcta se não for correto o carácter, porquanto é deste que provém a vontade. Finalmente, o carácter não poderá atingir a perfeição se não compreender as leis que regem a totalidade da vida nem investigar qual o juízo correcto a fazer sobre cada coisa, em suma, se não aferir todas as coisas pela verdade.
A serenidade não é apanágio senão de quem alcançou um conhecimento imutável e infalível sobre o mundo: os demais tomam agora uma decisão, depois arrependem-se e permanecem indecisos sem saber se hão-de levar ou não até ao fim os seus propósitos.
A causa que os faz andar assim à deriva é eles guiarem-se pelo mais falível dos critérios : a opinião comum ! Se queres que a tua vontade permaneça a mesma, terás de só desejar a verdade.
Ora, à verdade não podemos chegar sem conhecermos os princípios básicos da filosofia, os quais incidem sobre a totalidade da vida. O bem e o mal, a moralidade e a imoralidade, a justiça e a injustiça, a piedade e a impiedade, as virtudes e o emprego das virtudes, a posse de bens úteis, a reputação e a dignidade, a saúde, a prestança física, a beleza, a acuidade dos sentidos – tudo isto exige da nossa parte uma correta capacidade de avaliação.
Há que saber quanta e qual a importância a conceder aos meios de fortuna. Tu, efectivamente, laboras em erro ao atribuir a certas coisas maior valor do que o devido, e laboras tanto mais em erro quanto é certo que coisas consideradas entre nós como especialmente valiosas (riqueza, influência, poder) não valem, na realidade, sequer um sestércio.
Ora, a isto não poderás chegar se ignorares a proposição de base através da qual acedemos à determinação do valor respectivo de cada coisa. Assim como as folhas, isoladamente, não podem estar viçosas e precisam de ramos em que se sustentem e de que recebam a seiva, assim também todos esses preceitos, desamparados, murcham; as podas só medram se plantadas!
De resto, esses filósofos que pretendem abolir os princípios de base não percebem que, pelo próprio fato de os abolirem, estão afinal a confirmá-los. Ao fim e ao cabo, qual é a tese deles? Que os preceitos cobrem todos os aspectos da vida, que os princípios de base da filosofia são supérfluos.
Mas – valham-me os deuses! – esta sua afirmação não equivale menos a um princípio de base do que se eu dissesse que podemos passar sem preceitos, como coisa supérflua, que devemos, pelo contrário, servir-nos dos princípios de base e aplicar-nos apenas ao seu estudo: esta mesma frase pela qual eu estava negando interesse aos preceitos é, ela mesma, um preceito!. .. Na filosofia há certas áreas que se contentam com uma breve explicação, outras necessitam de demonstração por vezes longa por se tratar de matéria muito complexa que apenas à custa de extrema atenção e inteligência se pode tornar evidente.
Mas se as demonstrações são necessárias, necessários são também os princípios pelos quais, a partir dos argumentos, se apresenta sinteticamente a verdade. Há princípios que são evidentes, outros que são obscuros: são evidentes aqueles que para serem entendidos se contentam com os sentidos ou a memória; são obscuros os que se situam a um nível superior.
A razão, de fato, não está limitada àquilo que é imediatamente evidente; na sua maior e melhor parte, aplica-se ao que escapa aos sentidos. Ora, o que escapa aos sentidos exige demonstração, e sem princípios de base não pode haver demonstração; logo, os princípios de base são indispensáveis.
De uma mesma fonte nascem o senso comum e o correto sentido da realidade: a apreciação exata da natureza das coisas. Se, por falta dela, tudo na nossa alma anda à deriva, são indispensáveis princípios de base capazes de dar ao nosso espírito uma infalível capacidade de julgar.
Em suma, quando aconselhamos alguém a tanto estimar um amigo como a si próprio, ou a pensar que um inimigo se pode transformar em amigo, quando o incitamos a aumentar o seu amor pelo primeiro e a refrear o ódio pelo segundo acrescentamos: “este procedimento é justo, é conforme à moral!” .
Ora, a razão que determina os nossos princípios de base contém em si as noções de “justiça” e de “moralidade”, por conseguinte ela é indispensável, pois sem ela não podemos conceber tais noções. Combinemos, todavia, a dogmática com a parenética: se os ramos são inúteis sem a raiz, também a raiz pode tirar proveito dos ramos que dela brotam.
Ninguém há que desconheça a utilidade das mãos, a sua função é manifesta; o coração, porém, o órgão que faz viver as mãos e comanda os seus movimentos e a sua ação, esse está oculto. Esta imagem reflete o que se passa com os preceitos, os quais estão à vista de todos, enquanto os princípios de base da filosofia se encontram a nível mais profundo.
Tal como ao nível do sagrado ao que há de mais sagrado só os iniciados têm acesso, também no domínio da filosofia os princípios secretos só são revelados aos que são dignos de aceder ao santuário; em contrapartida, os preceitos e outras fórmulas do mesmo tipo estão aberras ao conhecimento mesmo dos profanos.
Posidónio considera imprescindível não apenas a técnica “preceptiva” (já que nada me proíbe o uso deste vocábulo), mas ainda o uso da persuasão, da consolação e da exortação; a estas acrescenta ainda a investigação das causas, ou seja, a “etiologia”, pois se os gramáticos, esses defensores da pureza do latim, se sentem no direito de chamar-lhe assim, não vejo porque motivo eu hei-de fugir ao emprego deste vocábulo.
Diz Posidónio que também terá utilidade a descrição individúal de cada virtude, isto é, o que ele chama etologia, e outros caracterismo, quer dizer, a indicação das características e do valor de cada virtude e de cada vício, e qual o modo de distinguir comportamentos aparentemente similares. Esta última técnica tem um alcance idêntico ao da parenética; só que, ao preceituar, dizemos: > “Se queres ser temperado, age desta ou daquela maneira”
, ao passo que ao descrever diremos:
“o homem temperado é o que faz esta ação e se abstém daquela outra”.
Por outras palavras, a diferença consiste em que num caso damos preceitos de virtudes, no outro apresentamos um modelo. Não nego que tais descrições, ou fichas de registo, para usar a linguagem dos publicanos, tenham a sua utilidade: exponham-se obras dignas de admiração, sempre aparecerá quem as imite! Consideras útil conhecer os argumentos que provam a excelência de um cavalo para que não sejas ludibriado ao comprar ou perder o tempo com uma pileca? Muito mais útil te será conhecer as características de uma alma nobre, características que, vendo-as em outros, poderás aplicar à tua pessoa.
“Sem demora a cria de raça nobre pelos campos marcha altaneira, as tenras patas fletindo; antes dos demais põe-se a caminho, afronta as torrentes impetuosas sem receio, afoita-se a percorrer um trilho ignoto, e não treme ao ouvir vãos ruídos. Tem erecto o pescoço, fina a cabeça, breve o ventre, liso o dorso, e o peito animoso é musculado e forte …… . … E, quando ao longe se ouve o sinal do combate, não pára quieto, erguem-se-lhe as orelhas, as pernas tremem e a custo reprime nas narinas a respiração ardente !”Vergílio, Georg., III, 75-81 e 83-85.
Tratando embora um assunto diferente, o grande Virgílio faz nestes versos a descrição do autêntico herói! Pelo menos não é diferente a imagem que eu faço do que seja um herói. Se eu quisesse descrever a atitude de M. Catão impávido entre os fragores da guerra civil, partindo a~ ataque do exército inimigo que já descia dos Alpes, opondo o próprio peito à guerra civil – pois não o pintaria com outro rosto, não lhe atribuiria outra atitude.
Ninguém decerto jamais mostrou maior coragem do que este homem que se ergueu ao mesmo tempo contra César e contra Pompeio, que desafiou por igual quer os cesarianos quer os pompeianos, mostrando que havia ainda um terceiro partido: o da república!
Na realidade, é pouco dizer de Catão que ele “não treme ao ouvir vãos ruídos”. Pois se ele não tremeu ao ouvir os ruídos autênticos, e bem próximos, da guerra, se ele ousou erguer livremente a sua voz contra as dez legiões de César e as tropas auxiliares gaulesas, mais as suas armas bárbaras lado a lado com as romanas, para exortar a república a não abdicar da liberdade, a lutar até ao limite, já que preferível seria ser feito escravo à força do que aceitar a escravidão sem resistência!
Que vigor, que energia de alma havia neste homem, que autoconfiança ele demonstrou num momento em que todos tremiam de pavor! Ele sabia ser o único cuja situação não estava em causa: a questão, de fato, não consistia em saber se Catão seria livre, mas sim se viveria entre homens livres; daí o desprezo com que ele encarava o perigo das armas. Quem quer que se sinta tomado de admiração pela invencível firmeza deste homem, inabalável mesmo entre a derrocada geral, sentirá vontade de exclamar: “o seu peito animoso é musculado e forte! … “
Será útil não nos limitarmos a ver quais os traços, as características gerais que habitualmente identificam os homens de bem, mas antes expor um pormenor como eles de fato agiram: referir, por exemplo, a ferida mortal que Catão, como decisivo ato de coragem, inflingiu a si mesmo, ferida por onde a liberdade republicana exalou o último suspiro; ou a sapiência de Lélio e a harmonia em que viveram ele e o seu amigo Cipião; ou os feitos sublimes, públicos e privados, do outro Catão; ou o banquete oficial oferecido por Q. Tuberão, com os seus leitos de madeira cobertos com peles de cabra em vez de colchas e a baixela de argila, usada diante do templo de Júpiter.
Que significou um tal banquete senão a consagração da pobreza em pleno Capitólio? Ainda que eu não conheça mais nenhuma ação sua digna de o pôr na companhia dos Catões, esta, só por si, acaso não bastará? Isto não foi um banquete: foi uma censura pública!
Até que ponto vai a ignorância dos homens que ambicionam a glória sem saber o que ela é nem a via para a alcançar! Nesse dia, o povo romano teve ensejo de contemplar muitas baixelas, mas só a de Tuberão o maravilhou. O ouro e a prata de todos os outros foram quebrados e fundidos mil vezes; os copos de barro de Tuberão, esses, durarão através dos séculos!