20 de julho de 2025

Carta 41 – Ninguém deve vangloriar-se senão do que lhe pertence

Por lucianakeiko@gmail.com

É uma empresa excelente e salutar a tua, se de fato, conforme me escreves, continuas a avançar rumo à sabedoria, a essa sabedoria que, por estar ao teu alcance obtê-la, seria estupidez ir suplicar aos templos.

Não é preciso elevar as mãos ao céu nem pedir ao ministro do culto que nos deixe formular votos ao ouvido da estátua do deus, como se assim nos fosse mais fácil sermos atendidos: a divindade está perto de ti, está contigo, está dentro de ti!

É verdade, Lucílio, dentro de nós reside um espírito divino que observa e rege os nossos atos, bons e maus; e conforme for por nós tratado assim ele próprio nos trata. Sem a divindade ninguém pode ser um homem de bem; ou será que alguém pode elevar-se acima da fortuna sem auxílio divino?

As decisões grandiosas e justas, é a divindade que as inspira. Em todo o homem de bem,

qual seja o deus, ignora-se, mas existe um deus Vergílio, Aen., VIII, 352.

Se penetrares num bosque cheio de velhas árvores, de altura fora do comum e tais que a densidade dos ramos entrelaçados uns nos outros oculta a vista do céu, a própria grandeza do arvoredo, a solidão do lugar, a visão magnífica dessa sombra tão densa e contínua no meio da planura, tudo te fará sentir a presença divina.

Se vires uma montanha como que suspensa sobre uma caverna escavada na rocha, não pela mão do homem, mas roída por causas naturais até formar um enorme espaço, a tua alma será atingida por uma certa aura de religioso mistério.

Nós rodeamos de veneração as nascentes dos grandes rios; a irrupção súbita de um grande caudal brotando das entranhas da terra é assinalada por altares; são objeto de culto as fontes de água termal; a opacidade ou a profundidade imensa de certos lagos deram-lhes caráter sagrado.

Se vires um homem intrépido no meio do perigo, insensível aos desejos vulgares, feliz no meio da adversidade, tranquilo em plena procela, contemplando os outros homens do alto, olhando os deuses de igual para igual – acaso não sentirás por um tal homem uma onda de veneração ?

Não dirás: “Há aqui algo de superior, de demasiado elevado para poder considerar-se equivalente ao miserável corpo em que está encerrado!”? Sobre esse homem desceu uma força divina; a sua alma sublime, com perfeito domínio sobre si, que passa pelas coisas sem descer ao seu nível, que se ri dos temores e dos desejos vulgares, é uma alma movida por uma energia celeste.

Uma alma desta natureza não pode perdurar sem auxílio divino; e por isso mesmo pertence, pela sua parte mais sublime, ao lugar donde proveio.

Os raios do sol atingem, é certo, a terra, mas estão no lugar donde emanam; do mesmo modo essa alma excelsa e divina, descida até nós para nos fazer conhecer de mais perto a divindade, embora estando na nossa companhia, mantém-se ligada às suas origens.

Emanação celeste, é para o céu que olha e se dirige, e está entre nós sabendo que na realidade paira acima de nós. O que caracteriza então esta alma? O fato de não brilhar senão graças aos seus bens próprios.

Que há de mais estulto do que admirar num homem aquilo que lhe é exterior?

Onde há maior loucura do que na admiração por coisas que, de um momento para o outro, podem mudar de proprietário? Um cavalo não é melhor por ter um freio de ouro. Não é similar a atitude do leão que entra na arena de juba dourada, já cansado pelos tratos que levou até submeter-se à imposição de ornamentos, e a do leão sem ornatos, mas conservando intacto o seu vigor.

Este surge cheio de impetuosa violência, tal qual como a natureza o quis, belo na sua bravura, sem outro ornamento para além do terror que inspira, bem superior ao outro leão, amolecido e coberto de folhas douradas! Ninguém deve vangloriar-se senão do que lhe pertence.

O que gostamos na videira é de ver-lhe os sarmentos carregados de fruto, é vê-la fazer tombar as estacas em que se enrola sob o peso dos cachos; ou será que alguém apreciaria mais uma videira de que pendessem uvas de ouro e folhas de ouro? A virtude própria da videira é a fecundidade; similarmente, no homem o que devemos admirar é aquilo que lhe é peculiar.

Alguém possui um belo grupo de escravos, uma casa magnífica, vastas terras de cultura, abundante capital a render: nada disto está nele próprio,mas apenas à sua volta.

No homem, enalteçamos só aquilo que se lhe não pode tirar, nem dar, aquilo que é específico do homem. Queres saber o que é? É a alma, e, na alma, uma razão perfeita (1)

O homem é, de fato, um animal possuidor de razão; por conseguinte, se um homem consegue a realização do fim para que nasceu, o seu bem específico atinge a consumação. A razão não exige do homem mais do que esta coisa facílima: viver segundo a sua própria natureza! O que torna este objetivo difícil de atingir é a 1oucura generalizada que nos leva a empurrarmo-nos uns aos outros na direção do vício. E como reconduzir ao caminho da salvação homens a quem ninguém consegue deter, e a quem o vulgo ainda mais acicata? …

(1) Ratio perfecta: a razão levada ao máximo das suas potencialidades, identificando-se com a “virtude”.

Passar Bem!