6 de julho de 2025

Carta 27 – A virtude não se conquista por procuração

Por lucianakeiko@gmail.com

“Quem és tu para me dar conselhos? Acaso já te aconselhaste a ti próprio, já corrigiste o teu caráter, para te poderes armar em diretor da consciência alheia?” Objeção justa, a tua; eu, contudo, não sou tão descarado que, doente eu próprio, me aplique a dar remédio aos outros!

É como companheiro de sanatório que eu falo contigo da nossa comum enfermidade e te dou parte dos medicamentos que uso. Escuta, portanto, as minhas palavras como se me estivesses ouvindo a falar com os meus botões; é como se eu te permitisse o acesso aos meus segredos e discutisse comigo mesmo na tua presença.

Aqui tens o que eu repito sem cessar a mim próprio: “Pensa na idade que tens, Séneca, e sentirás vergonha por teres as mesmas vontades e objetivos que tinhas em jovem. Já que está próximo o dia da tua morte, vê se consegues ao menos que os teus vícios morram antes de ti. Desfaz-te desses prazeres desordenados de que só a muito custo te verás livre: tais prazeres não são mais nocivos antes do que depois de satisfeitos.

Podemos não ser surpreendidos na altura de cometer um crime, mas nem por isso a angústia nos abandona. Com os prazeres ilícitos é o mesmo: depois de os satisfazermos, ficamos com o remorso. Não são prazeres constantes e durádouros; mesmo que não sejam nocivos, são pelo menos efémeros.

Procura antes um bem que seja de fato duradouro, e o único nestas condições é aquele que a alma consegue extrair de si própria. Unicamente a virtude nos proporciona uma alegria perene e inabalável. Algum obstáculo que intervenha tem tanta consistência como as nuvens que se movem abaixo do sol sem nunca poderem ocultar por completo a sua luz!

Quando nos será dado aceder a uma tal alegria?

Se bem que não tenhamos estado parados, é hora de apressarmos o passo. Ainda resta muito trabalho a fazer. Se desejas atingir este objetivo, careces de muita atenção da minha parte, mas também de bastante esforço da tua.

A virtude não se conquista por procuração. A mera erudição pode servir-se de auxiliares. Lembro-me ainda de um ricaço, Calvísio Sabino, de sua graça! Este homem tinha os bens de fortuna e a inteligência próprias de um liberto. Nunca vi ninguém tão exageradamente favorecido pela sorte. A sua memória era tão má que de vez em quando até esquecia os nomes de Ulisses, de Aquiles ou de Príamo, embora todos conheçam os seus nomes tão bem como nós conhecemos os nomes dos nossos pedagogos.

Nenhum nomenclador (1) senil, daqueles que já não sabem o nome às pessoas e dizem o que lhes vem à cabeça, citaria tão erradamente os apelidos de família como Sabino fazia aos Troianos e aos Aqueus! Apesar disto ele queria fazer-se passar por erudito. E aqui tens o método que congeminou: comprou a peso de ouro uma série de escravos, um que sabia Homero de cor, outro, Hesíodo, e mais nove a quem encarregou de decorar os poetas líricos.(2)

Que tais escravos lhe tivessem custado uma fortuna não é de admirar: não os encontrou assim tal qual, teve de os mandar treinar expressamente. Mal conseguiu dar por pronta esta tropa toda, desatou a massacrar os seus convidados. Os escravos sentavam-se-lhe aos pés; quando queria citar alguns versos, ele pedia que lhos soprassem … mas continuamente falhava-lhe a memória a meio de uma palavra!

Então Satélio Quadrado, parasita habitual de ricaços estúpidos, e, consequentemente, seu adulador (seu crítico também, pois este atributo é sempre concomitante dos dois primeiros), aconselhou-o a comprar novos escravos para acabarem a frase que ele deixava em meio! Sabino replicou que cada escravo lhe ficava por milhares e milhares de sestércios; diz-lhe o outro: “Terias gasto menos dinheiro se tivesses comprado uma biblioteca!” O nosso homem, porém, continuou convencido de que ter em casa alguém erudito era o mesmo que ser erudito ele próprio!

Satélio tentou também convencer Sabino a praticar luta livre, embora ele fosse um homem doente, pálido, enfezado. “Mas como é isso possível, se eu mal me aguento nas pernas?” – dizia Sabino. “Não me venhas com essa, por favor!” – replicou o outro. “Então para que servem todos estes robustos escravos que tu tens?”

Um espírito virtuoso não é coisa que se peça emprestada ou se possa comprar! E mesmo que existisse à venda, receio bem que não encontrasse comprador … O vício, esse todos os dias tem quem o adquira.

Mas já é tempo de pagar-te o que devo e despedir-me.

“A verdadeira riqueza consiste na pobreza capaz de prover à satisfação do que por lei da natureza necessitamos.”

Epicuro repetiu incansavelmente esta máxima, mas nunca é demais repetir uma coisa que nunca se aprende devidamente. A certos doentes basta que se lhes indique os remédios; outros têm de ser obrigados a tomá-los!

Passar Bem!

(1) O nomenclador (/at. nomenclator) era um escravo especialmente encarregado de lembrar ao senhor os nomes dos clientes que lhe vinham apresentar os cumprimentos matinais (e receber a respectiva espórtula!). As suas funções, vemo-las pitorescamente descritas em Juvenal, 1, 97 ss.

(2) Os nove poetas líricos gregos do cânone alexandrino : Álcman Estesícoro Íbico, Alceu, Safo, Anacreonte, Sim6nides, Píndaro e Baquílides.

Passar Bem!