Carta 99 – Ganhes mais coragem contra a fortuna e consideres os seus golpes não apenas como possíveis, mas como inevitáveis e contínuos.
Venho enviar-te uma cópia da carta que escrevi a Marulo aquando da morte de um filho de tenra idade – morte que, dizia-se, ele suportou, com quase nula coragem!
Nesta carta não segui o nosso processo habitual, nem achei por bem falar-lhe brandamente, pois o nosso homem mais merecia ser repreendido que consolado.
Uma pessoa que fica perturbada e mal consegue aguentar um golpe profundo tem de ir recuperando a pouco e pouco, até que a dor vá esmorecendo ou pelo menos perca a violência inicial. Mas a estes homens que fazem do pranto um dever há que chamá-los à ordem diretamente e ensinar-lhes até que ponto as lágrimas podem denotar insensatez. “Estavas à espera de consolo? Pois vais apanhar úma descompostura! Tanta covardia tu mostras pela morte do teu filho? Que farias se tivesses perdido um amigo?
Faleceu-te um filho, de futuro incerto, de pouca idade; perdeu-se apenas um breve espaço de tempo! Nós próprios buscamos motivos de sofrimento, ansiosos por nos queixarmos da fortuna mesmo sem razão, como se não fosse seu papel dar-nos justos motivos de queixa; agora tu, valham-me os deuses!, já me parecias homem de coragem mesmo ante os males reais, quanto mais perante estes simulacros de desgraça que levam os homens a gemer por mera obediência à tradição!…
Mesmo que tivesses sofrido a perda de um amigo (o que seria o máximo dos infortúnios), mesmo assim devias aplicar toda a tua energia em mostrar-te mais alegre por o ter possuído do que triste por o ter perdido.
Muita gente há, contudo, que não sabe avaliar todo o bem de que lhe foi dado gozar. Entre outros defeitos, este tipo de dor possui ainda mais um: não só se revela inútil como ingrato. Lá porque te faleceu um excelente amigo quer isto dizer que foi nula a sua ação? Tantos anos de vida em comum, de íntima comunhão de interesses, resultaram em nada? Ao falecer o amigo faleceu igualmente a amizade?
Porque sofres agora de o teres perdido se de nada te serve teres gozado o seu convívio?
Acredita-me: daqueles a quem amámos, mesmo quando o destino nos roubou a sua companhia, uma parte importante permanece em nós; pertence-nos a passagem do tempo, pois nada goza de maior segurança do que o passado. Nós mostramo-nos ingratos em relação ao que nos foi dado por esperarmos sempre no futuro, como se o futuro (na hipótese de lá chegarmos) não se transformasse rapidamente em passado.
Quem goza apenas do presente não sabe dar o correto valor aos benefícios da existência; quer o futuro quer o passado nos podem proporcionar satisfação, o primeiro pela expectativa, o segundo pela recordação; só que enquanto um é incerto e pode não se realizar, o outro nunca pode deixar de ter acontecido.
Que loucura é esta que nos faz não dar importância ao que temos de mais certo? Mostremo-nos satisfeitos por tudo o que nos foi dado gozar, a não ser que o nosso espírito seja um cesto roto onde o que entra por um lado vai logo sair pelo outro !
“Há inúmeros exemplos de homens que perderam filhos jovens sem soltar uma lágrima, que, ao voltarem do funeral, se dirigiram para o Senado ou qualquer outro serviço público, e logo se lançaram ao trabalho. E assim é que é: primeiro, porque é inútil sofrer quando não se ganha nada com isso; segundo, porque é injusto lamentarmo-nos por algo que aconteceu a um, mas que há-de acontecer a todos; finalmente, porque não há forma mais estúpida de queixume do que a saudade – e sentir saudades é quase a mesma coisa que chorar um morto!
Por isso mesmo – porque nós iremos atrás dos falecidos – tanto maior energia de alma devemos mostrar. Repara na rapidez com que passa o tempo, atenta na exiguidade desta ínfima fração que nós percorremos a toda a velocidade, considera todos estes seres , humanos que se dirigem em massa para um mesmo ponto, separados uns dos outros por intervalos brevíssimos mesmo quando se nos afiguram muito longos: o filho que tu julgas ter morrido apenas partiu à tua frente!
Haverá algo de mais estúpido do que chorá-lo por te ter precedido numa viagem que tu também hás-de fazer? Alguém chora por qualquer coisa que sabe de certeza vir a acontecer? Se não pensamos que o homem é mortal estamos a iludir-nos a nós mesmos. Alguém chora por qualquer coisa que sempre disse ser inevitável? Quem se lamenta por alguém ter morrido está a lamentar a existência do homem.
Todos nós estamos submetidos às mesmas leis: quem nasce tem por força de morrer. Não partimos todos juntos, mas o fim é igual para todos. O espaço que medeia entre o primeiro e o último dia da nossa vida é incerto e variável: se pensarmos nas doenças, até uma criança pode ter uma vida longa; se atentarmos na rapidez do tempo, até a vida de um velho é curta. Nada temos que não seja instável, ilusório, mais transitório do que o próprio tempo; tudo o que é humano se altera e, se a fortuna o quiser, se converte no seu oposto; na imensa voragem da existência humana a única certeza que temos é a morte; e apesar disso todos se queixam da única coisa que não engana ninguém!
“Mas ele morreu ainda criança!”
Bom, eu não direi que seja preferível deixar rapidamente esta vida. Mas observemos o caso de um velho e repara quão exíguo é o tempo que ele tem de vantagem sobre a criança. Representa no teu espírito toda a vastidão das profundezas do tempo até atingires a dimensão do universo, compara depois a essa imensidão aquilo a que nós chamamos o tempo de uma vida humana e verás até que ponto é diminuta essa extensão por que nós ansiamos e que fazemos por prolongar.
E desse breve espaço quanto não cabe a lágrimas e angústias? Quanto, ao desejo da morte prematura, à doença, ao medo? Que espaço não ocupam os anos inúteis da inexperiência? Metade da vida passamo-la a dormir. Junta a isto os sofrimentos, as dores, os perigos e verás como, mesmo numa vida assaz longa, é muito pouco aquilo que vivemos.
Quem te garante que não foi afinal mais feliz o teu filho ao ser-lhe dado partir depressa daqui, e terminar o seu percurso antes de se cansar dele? A vida em si não é nem um bem nem um mal, mas apenas o local onde se encontra o bem e o mal.
Ele nada perdeu, portanto, senão uma contingência – com maior probabilidade de insucesso! Ele poderia vir a ser um homem comedido e avisado, poderia, sob a tua orientação, vir a tornar-se um bom carácter; mas também poderia (causa de justas apreensões!) vir a tornar-se igual à maioria.
Vê todos esses jovens de excelente família que, por pura extravagância, vão combater no circo (1); vê todos esses outros que nada mais fazem senão excitar os mais baixos prazeres em si e nos outros, numa libertinagem generalizada, e que nunca chegam ao fim do dia sem uma bebedeira ou qualquer outra insigne perversão: nestes casos é bem evidente que teria havido melhores motivos para temer do que para esperar!
Não deves, portanto, buscar tu próprio razões para sofrer, nem aumentar com a tua revolta o que não passou de ligeira contrariedade. Não te estou incitando a que faças um grande esforço para reagir: não penso tão mal de ti que considere ser teu dever recorrer a todas as forças da virtude contra este caso.
De fato, a morte do teu filho não é uma verdadeira ferida, mas somente um arranhão; tu é que transformas o arranhão em ferida. Não tenho dúvidas de que a filosofia te terá sido de grande utilidade nô dia em que conseguires recordar com tranquilidade um filho que ao morrer conhecia melhor a ama do que o próprio pai!
“Quer isto dizer que eu te esteja persuadindo à dureza, a manter o rosto empedernido mesmo durante o funeral, a não sentir o mínimo aperto na alma?”
De modo nenhum! Seria prova não de virtude mas de desumanidade contemplar os parentes mortos com o mesmo olhar que se contemplem os parentes vivos, ou não sentir qualquer comoção pela primeira separação dos familiares. Ainda mesmo, aliás, que eu quisesse proibir tais sentimentos, a natureza tem as suas leis e, embora procuremos evitá-las, as lágrimas caem e, caindo, aliviam o espírito.
O que eu pretendo é que deixemos as lágrimas correr, mas sem nos forçarmos ao pranto; choremos apenas em proporção com os nossos sentimentos, e não em obediência a tradições. Não prolonguemos artificialmente a nossa tristeza, não a estiquemos segundo o padrão comum.
A ostentação da dor exige mais de nós do que a própria dor: sozinhos, a quanto monta a nossa tristeza?! Quando as pessoas se sabem ouvidas gemem com mais força e, enquanto se conconservam caladas e tranquilas isoladamente, derramam nova enxurrada de lágrimas mal vêem outros a aproximar-se; é nesta altura que se lembram de arrepelar a cabeça (coisa que poderiam ter feito mais à vontade quando sozinhas!), que desejam morrer, que se revolvem no leito; quando não há espectadores, a dor passa logo!
Tal como em tudo o mais, também nestas circunstâncias nos deixamos levar pelo vício da imitação dos outros e atuamos, não conforme devemos, mas sim conforme é costume. Abandonamos a lei natural e confiamo-nos ao critério das massas – mau conselheiro em tudo e modelo de inconstância nestes casos, como de resto em todos!
Quando elas vêem alguém suportar com coragem a sua dor, chamam-lhe desumano e sem coração; quando vêem alguém cair por terra e abraçar-se ao cadáver, dizem-no efeminado e fraco. Na realidade, tudo deve ser aferido pelo critério da razão.
Nada há mais estúpido do que querer ganhar a reputação de sofredor e fazer ostentação de lágrimas; lágrimas que, num homem sábio, eu entendo que podem ser consentidas ou espontâneas. Já te explico a diferença. Quando nos chega a notícia dolorosa de um falecimento, quando seguramos nos braços o cadáver que nos aprestamos a entregar às chamas, as lágrimas tombam por uma necessidade natural, o espírito, atingido pela força da dor, abala-nos todo o corpo e, portanto, também os olhos, dos quais espreme, por assim dizer, a humidade neles habitual.
Estas lágrimas caem sob pressão mesmo contra a nossa vontade. De tipo diferente são aquelas lágrimas que nós deixamos correr quando recordamos os entes queridos já falecidos: sentimos algo de doce na tristeza com que relembramos as suas palavras alegres, a sua conversação risonha, a sua prestimosa familiaridade; os olhos então afrouxam, numa como que satisfação. As lágrimas deste tipo, consentimo-las; as outras, somos forçados a elas.
Não há, por conseguinte, motivo algum para que tu retenhas ou soltes as lágrimas em função de quem te rodeia ou se senta ao pé de ti: nunca as lágrimas são tão indignas (quer tombem quer não) como quando são representadas! Deixa-as correr espontaneamente. Pode-se chorar sem perder a tranquilidade e a compostura; muitos sábios houve que choraram sem perda da sua autoridade, antes com tal comedimento que, mesmo chorando, deram mostra tanto de humanidade como de dignidade.
É possível, repito, obedecer à natureza sem perder o decoro. Tenho visto pessoas que assistem ao funeral de parentes impondo respeito, mostrando no rosto todo o amor que tinham pelo falecido mas sem armarem minimamente ao sofrimento : em suma, com o comportamento exigido por uma emoção autêntica. Mesmo na dor há que manter a decência; o sábio deve conservá-la e observar nas lágrimas o mesmo justo limite que em tudo o mais. Os insensatos, esses tão exagerados são na alegria como na dor.
“Aceita com equanimidade o inevitável”.
Acaso te sucedeu algo de extraordinário, de inédito? Quantos outros estão preparando um funeral, comprando roupas de luto, quantos estão agora chorando já depois da morte do teu filho? Quando pensares que ele morreu criança, pensa também que ele era um ser humano e como tal marcado pela incerteza, um ser humano a quem a fortuna não deixou chegar à velhice, antes despediu desta vida quando bem lhe pareceu.
Fala dele sempre que tiveres ocasião, conserva a sua memória tanto quanto puderes, e essa memória tanto mais frequentemente te acudirá quanto mais o puder fazer sem azedume; ninguém tem prazer em fazer companhia a um homem triste, ninguém pode passar a vida na tristeza. As conversas dele, as brincadeiras de infância que fazia, se tu as escutaste com prazer, relembra-as frequentemente; afirma com decisão que ele poderia ter realizado todas as esperanças que tu conceberas no teu espírito de pai. Esquecer os parentes e enterrar as recordações juntamente com os corpos, chorar com abundância mas não recordar minimamente os desaparecidos só denota uma alma desumana. Afetos destes são próprios das aves ou das feras, que amam com extrema energia, quase com fúria, mas cujo amor se extingue totalmente quando os companheiros morrem. Uma tal atitude não é própria de um homem sensato, mas sim conservar a lembrança embora cessando o sofrimento.
“Não aprovo de forma alguma o que diz Metrodoro, que há uma certa forma de prazer inerente à tristeza, prazer esse que se deve obter simultaneamente com ela”.
Tenho aqui citadas as próprias palavras de Metrodoro :
‘Das cartas de Metrodoro à irmã:’ – ‘Há um certo prazer que nasce simultaneamente com a dor, e que é preciso captar no próprio momento’(2)
Não duvido um instante do que tu pensarás de tais palavras. Haverá algo de mais indigno do que sentir prazer no meio da dor, melhor dizendo, graças à dor, e buscar no meio das lágrimas uma fonte de satisfação?
E são estes homens os que nos acusam de rigidez? que censuram a dureza dos nossos princípios quando nós dizemos que a dor ou não deve encontrar acolhimento no nosso espírito ou deve ser dele expulsa quanto antes!
O que é mais incrível e desumano: não sentir dor pela perda de um amigo ou fazer dessa dor um motivo de prazer? Os nossos princípios são perfeitamente corretos: quando o nosso afeto tiver pago o tributo às lágrimas, tiver, passe a expressão, “desnatado” o desgosto, há que não deixar o espírito mergulhado na dor. E dizem os epicuristas que devemos misturar o prazer com a dor! Isto é o mesmo que consolar os garotos com um bolo, ou fazer os bebés deixarem de chorar dando-lhes leite!
Nem no próprio instante em que um filho arde na pira ou um amigo solta o último suspiro eles querem que o prazer cesse, mais, querem fazer do sofrimento uma excitação! O que será mais correto: eliminar a dor do espírito ou fazer o prazer acompanhar a dor?
‘Acompanhar’? Mais do que isso: originar-se na própria dor!
Há uma certa forma de prazer inerente à tristeza, diz Metrodoro.
Que nós, estóicos, digamos isso está certo, mas vós, epicuristas, não tendes tal direito. Para vós não existe senão um bem, o prazer, e um mal, a dor: como é então possível haver ligação entre o bem e o mal? Mas imaginemos que há: seria este o melhor momento para ela se verificar? Vamos perscrutar a dor a ver se nas suas imediações há algo de agradável e aprazível?
Certos remédios, salutares quando aplicados em determinadas partes do corpo, não podem ser utilizados noutras por repugnantes ou indecentes; um processo que em certas áreas do corpo seria benéfico e não atentaria ao pudor torna-se inconveniente dado o local em ferida: vós não tendes vergonha de querer remediar a dor com o prazer? A dor é uma ferida que tem de curar-se com mais dignidade! Seria preferível mostrar como nenhuma sensação de mal pode afetar quem já morreu, pois só pode ser afetado quem não está morto.
Nenhuma coisa, repito, pode lesar quem já nada é; se alguém é lesado, é porque está vivo. O que imaginas tu poder causar mal a alguém: já não ser alguém, ou ser ainda alguém? Uma pessoa não pode ser atormentada nem pelo fato de não ser (pois quem nada é nada sente) nem pelo fato de ser, pois desconhece o principal óbice da morte, que é precisamente o não ser.
Digamos, portanto a um homem que chora com saudades de um filho arrebatado na primeira infância: no que concerne à brevidade da existência, todos nós, jovens ou velhos, em comparação com o universo, estamos em pé de igualdade.
O que nos cabe de toda a sucessão dos tempos é menos que uma ínfima parte, porque uma parte, mesmo ínfima, é uma parte, enquanto o tempo da nossa vida é praticamente nulo.
Mas, ó loucura humana!, que planos grandiosos nós fazemos para esta nulidade que é a existência!
“Dirijo-te esta carta não porque tu esperes de mim um consolo já tão tardio (sei muito bem que tu já decidiste o que havias de ler ou não), mas sim para te censurar por, embora por pouco tempo, teres andado alheado de ti mesmo; e também para te aconselhar a que, de futuro, ganhes mais coragem contra a fortuna e consideres os seus golpes não apenas como possíveis, mas como inevitáveis e contínuos.”
Passar Bem!