Carta 98 – Esquecido do trampolim que é a vida humana, convence-se de que no seu caso, por exceção , o acaso deixará de se fazer sentir.
Acredita que ninguém é feliz quando teme pela sua felicidade. Não se apoia em bases sólidas quem tira a sua satisfação de bens exteriores, pois acabará por perder o bem-estar que obteve. Pelo contrário, um bem que nasce dentro de nós é permanente e constante, e vai sempre crescendo até ao nosso último momento; todos os demais bens ante os quais se extasia o vulgo são bens efémeros.
“E então? Quer isso dizer que são inúteis e não podem dar satisfação?”
É evidente que não, mas apenas se tais bens estiverem na nossa dependência, e não nós na dependência deles. Tudo quanto cai sob a alçada da fortuna pode ser proveitoso e agradável na condição de o seu beneficiário ser senhor de si próprio em vez de ser servo das suas propriedades.
É um erro pensar-se, Lucílio, que a fortuna nos concede o que quer que seja de bom ou de mau; ela apenas dá a matéria com que se faz o bom e o mau, dá-nos o material de coisas que, nas nossas mãos, se transformam em boas ou más. O nosso espírito é mais poderoso do que toda a espécie de fortuna, ele é quem conduz a nossa vida no bom ou no mau sentido, é nele que está a causa de nós sermos felizes ou desgraçados.
Um homem mau faz tudo redundar em mal, mesmo quando aparentemente as coisas se apresentavam excelentes; um espírito justo e íntegro sabe corrigir os erros da fortuna, sabe, pela sua mesma sabedoria, temperar as ocorrências adversas e difíceis de suportar; um tal espírito é capaz de acolher a felicidade com gratidão e temperança, de enfrentar a adversidade com firmeza e coragem. Imaginemos um homem experiente, que não faz nada sem ter analisado totalmente a questão, que nunca tenta nada que esteja acima das suas forças: tal homem nunca alcançará aquele supremo e completo bem acima de todas as contingências se não se sentir seguro em face da insegurança.
Se observares os outros (já que costumamos ser melhores juízes em causa alheia), ou se te analisares a ti próprio sem parcialidade, serás forçado a admitir que aqueles bens que tens por desejáveis e preciosos te serão inúteis se previamente não te prepares para a felicidade do acaso e do condicionalismo que o acompanha, se, com insistência mas sem amargura, repetires a ti próprio em cada contrariedade que os deuses decidiram de outro modo!” … (1)
Melhor ainda, por Hércules!, deixa-me arranjar um verso mais enérgico e correto para robustecer o teu espírito: sempre que te aconteça alguma coisa contrária à tua expectativa diz a ti mesmo que os deuses tomaram uma decisão superior! Com semelhante disposição de espírito, nada terás a temer. Esta disposição de espírito consegue-se pensando na instabilidade da vida humana antes de a experimentarmos em nós, olhando para os filhos, a mulher, os bens como algo que não possuiremos para sempre, e evitando imaginarmo-nos mais infelizes um dia que deixemos de os possuir.
Será a ruína do espírito andarmos ansiosos pelo futuro, desgraçados antes da desgraça, sempre na angústia de não saber se tudo o que nos dá satisfação nos acompanhará até ao último dia; assim, nunca conseguiremos repouso e, na expectativa do que há-de vir, deixaremos de aproveitar o presente.
Situam-se, de fato, ao mesmo nível a dor por algo perdido e o receio de o perder. Isto não quer dizer que te esteja incitando à apatia! Pelo contrário, procura evitar as situações perigosas; procura prever tudo quanto seja previsível; procura conjecturar tudo o que pode ser-te nocivo muito antes de que te suceda, para assim o evitares. Para tanto, ser-te-á da maior utilidade a autoconfiança, a firmeza de ânimo apta a tudo enfrentar.
Quem tem ânimo para suportar a fortuna é capaz de precaver-se contra ela; mas nada de angústias quando tudo estiver tranquilo! O cúmulo da desgraça e da estupidez está no medo antecipado: que loucura é esta, ser infeliz antecipadamente? Em suma, para numa palavra te resumir o que eu penso e te descrever como são estes homens que, à força de se preocuparem, só conseguem fazer mal a si próprios: tanta falta de moderação eles mostram em plena desgraça como antes dela!
Quem sofre antes de tempo sofre mais do que o devido; uma mesma incapacidade leva-o a não prever a presença da dor onde não a espera; uma mesma imoderação fá-lo imaginar permanente a sua felicidade, imaginar que os bens que o acaso lhe deu não só hão-de perdurar como também de multiplicar-se; esquecido do trampolim que é a vida humana, convence-se de que no seu caso, por exceção , o acaso deixará de se fazer sentir.
Por isto mesmo eu dou toda a razão a Metrodoro quando, numa carta dirigida à irmã por ocasião da morte de um filho de nobre carácter, lhe disse:
“Todo o bem relativo aos mortais é mortal.”(2)
Ele refere-se àqueles bens que correntemente os homens procuram alcançar, porquanto o verdadeiro bem – a sabedoria e a virtude – é seguro e eterno; é este bem, aliás, a única coisa imortal que é concedida aos mortais.
Estes, porém, são tão falhas, tão esquecidos do caminho que seguem, do termo para que cada dia os vai arrastando que se admiram quando perdem alguma coisa – eles que, mais tarde ou mais cedo, hão-de perder tudo! Tudo aquilo de que és considerado dono está à tua mão, mas sem ser verdadeiramente teu; um ser instável nada possui de estável, um ser efémero nada possui de eterno e indestrutível. Perder é tão inevitável como morrer; se bem a entendermos, esta verdade é uma consolação para nós. Perde, pois, imperturbavelmente: tudo um dia morrerá.
Que socorro podemos conseguir contra todas as nossas perdas? Apenas isto: guardemos na memória as coisas que perdemos sem deixar que o proveito que delas tiramos desapareça também com elas. Podemos ser privados de as possuir, nunca de as ter possuído. É extremamente ingrato quem pensa que já nada deve porque perdeu o empréstimo! O acaso privou-nos do objeto, mas deixou em nós o uso e proveito que dele tiramos, e que nós deixamos esquecer pelo perverso desejo de continuar a possuí-lo!
Diz a ti próprio que “tudo o que se nos afigura terrível pode ser superado”. Muitos tem havido que triunfaram de um ou de outro obstáculo: Múcio triunfou do fogo, Régulo da cruz, Sócrates do veneno, Rutílio do exílio, Catão do suicídio pela espada; triunfemos nós também de qualquer coisa!
Também muitos têm existido que desprezam aqueles bens por cuja beleza e promessa de bem-estar o vulgo se deixa atrair. Fabrício recusou a riqueza quando general, recusou-a quando censor; Tuberão entendeu que a pobreza não o deslustrava, nem a ele nem ao Capitólio, quando, ao utilizar no banquete público uma baixela de barro, demonstrou que os homens se deviam contentar com os utensílios de que até os deuses se serviam.
Sêxtio, o pai, recusou as magistraturas, ele que, pelas suas qualidades inatas merecia chefiar a República, e não aceitou a banda larga (3) que o divino Júlio lhe oferecia; bem consciente estava de como o que pode dar-se pode igualmente tirar-se! Façamos nós também algo que mostre grandeza de alma; sejamos nós também um exemplo.
Porquê perder a coragem? Porquê perder a esperança? O que outros puderam, também nós o podemos, desde que limpemos o nosso espírito e sigamos a natureza, pois a quem dela se afasta só resta ser presa de desejos e receios, só resta a servidão perante o efémero. É possível voltarmos ao bom caminho, recobrarmos a nossa integridade; recobremo-la, pois, para sermos capazes de fazer frente à dor por onde quer que ela nos ataque o corpo, para podermos dizer à fortuna:
“Estás lidando com um homem! Procura quem tu possas vencer!”
(4) Com discursos como este, ou semelhantes a este, apazigua-se a intensidade da úlcera, que aliás faço votos por que se reduza e se cure ou, pelo menos, estacione e vá envelhecendo com o nosso homem! Por ele próprio, aliás, eu nada receio; nós é que ficamos a perder quando ficarmos sem a presença deste ilustre velho (5).
Ele continua cheio de vida, e se deseja que esta se prolongue não é por si, mas por aqueles a quem a sua presença é útil. O fato de continuar vivo é uma liberalidade da sua parte. Outro qualquer já teria posto fim a semelhante sofrimento. Ele, porém, entende que tão vil é fugir da morte como buscar refúgio na morte.
“Que dizes? Se as condições a isso aconselharem não se deve sair voluntariamente desta vida?”
Claro que sim, quando o homem já não for de utilidade para alguém, quando a sua sobrevivência só servir como pasto para a dor. Este caso, amigo Lucílio, é uma lição prática de filosofia, uma experiência real: observa que coragem um homem experimentado tem de usar em luta com a morte e com a dor, quando se vê assediado por uma e golpeado pela outra.
Há que aprender a agir vendo alguém a agir. Até agora, servi-me de argumentos para discutir se é possível a resistência à dor, ou se a proximidade da morte basta para quebrantar mesmo as almas fortes.
Mas para quê palavras? Considera este caso real: ao nosso amigo, nem a morte o torna mais resistente à dor, nem a dor mais resistente à morte. Contra ambas é em si apenas que ele confia, nem padecendo pacientemente com esperança na morte, nem morrendo voluntariamente por saturação da dor; limita-se a ir suportando esta enquanto vai aguardando por aquela!
Passar Bem!
(1) Vergílio, llen., II, 128.
(2) Metrodoro, fr. 3 5 Koerre. (3) A banda larga (de púrpura) ornava a roga dos senadores, por oposição à handa estreita que decorava a roga dos cavaleiros. Sêxtio, portanto, re<.usou a oferta que César (“o divino Júlio”’) lhe fazia de inserir o seu nome na lista dos membros da classe senatorial.
(4) Na sequência de Muret, na sua edição de 1587, todos os filólogos estão de acordo em marcar aqui uma lacuna. Hense pensa que a carta 98 termina no § 14, e que o texto a partir do § 15 já pertencerá a outra epístola, cujo inicio se perdeu.
(5) Cf. a nota antecedente. Ignora-se quem será este “ilustre velho”, amigo comum de Sêneca e de Lucílio