11 de setembro de 2025

Carta 94 – Frequentemente, o nosso espírito finge não ver o que é evidente; há por isso que obrigá-lo a reparar mesmo nas coisas mais banais.

Por lucianakeiko@gmail.com

Aquela parte da filosofia que proporciona os conselhos adequados a cada indivíduo e se destina, portanto, não à formação do homem em geral (1) , mas sim, por exemplo, a indicar ao marido como comportar-se em relação à mulher, ao pai como educar os filhos, ao senhor como dirigir os escravos, houve filósofos que a aceitaram como única e exclusiva, pondo de lado todas as outras partes a pretexto de que elas não oferecem qualquer utilidade prática.

Como se fosse possível alguém ministrar preceitos sobre uma questão particular sem ter em vista toda a complexidade da vida humana.

Aríston, o estóico, pelo contrário, considera esta parte sem interesse, incapaz de nos penetrar até ao mais íntimo, mera soma de conselhos de velhos. O que tem importância real são os princípios básicos da filosofia, é a definição completa do sumo bem. Quem tiver assimilado capazmente tais princípios, diz ele, será capaz de deliberar por si próprio o que fazer em cada situação.

Quem aprende a lançar o dardo, compenetra-se bem do alvo a atingir, exercita o braço para lançar com pontaria e quando, na teoria e na prática, tiver atingido essa habilidade, poderá usá-la para acertar onde quiser (porquanto se treinou para acertar não neste ou naquele alvo, mas sim em qualquer um); do mesmo modo, quem aprende a conduzir-se em todos os aspectos da vida não carece de preceitos particulares, porquanto está apto em qualquer situação, não a lidar, por exemplo, com a mulher ou o filho, mas sim a viver segundo o bem; e “viver segundo o bem” já compreende o modo de viver com a mulher e os filhos.

Geantes, por seu lado, considera útil esta parte da filosofia, mas incompleta se não for derivada da teoria geral, isto é, se ignorar os princípios básicos e as questões fundamentais da filosofia.

O problema da parenética divide-se, portanto, em duas questões : ela é útil ou inútil? É por si só capaz de formar o homem de bem ou não? Em suma, ela é supérflua, ou, pelo contrário, torna supérfluo todo o resto da filosofia?

Aqueles que a consideram supérflua argumentam deste modo: qualquer impureza nos olhos que impeça uma perfeita visão deve ser removida; desde que ela permaneça, é esforço baldado aconselhar

“a marchar deste ou daquele modo, a jogar a mão a isto ou àquilo”.

Da mesma maneira, se algo me tira a clarividência ao espírito e me impede de discernir a hierarquia dos meus deveres, será em pura perda que me aconselharão

“a proceder deste ou daquele modo com o meu pai ou a minha mulher”.

Os preceitos, consequentemente, de nada valem enquanto o erro persistir na nossa mente; eliminado o erro, imediatamente teremos a percepção nítida dos nossos deveres. Proceder de outro modo equivale a aconselhar um doente a atuar como um homem saudável mas sem lhe restituir a saúde.

Ensina-se um pobre a agir como se fosse rico: como é possível isso no caso de ele continuar na miséria? Indica-se a um esfomeado a atuação própria de um homem saciado: melhor seria que o libertássemos da fome que o atormenta.

O mesmo se dirá de todos os outros vícios: o que importa é eliminar os próprios vícios, e não ensinar um comportamento impossível enquanto eles persistirem. A menos que eliminemos as falsas opiniões que nos induzem em erro, não conseguiremos que um avaro aprenda a usar corretamente o dinheiro, ou um medroso consiga desprezar o perigo.

O que interessa é fazer compreender ao primeiro que a riqueza nem é um bem nem é um mal; demonstrar-lhe que os ricos são, afinal, uns miseráveis; fazer compreender ao segundo que aquilo de que habitualmente se tem medo não é tão temível quanto se julga, que a dor não dura sempre, que não se morre mais do que uma vez; que a morte, à qual a lei natural nos sujeita, tem este grande benefício de só nos atingir uma vez; que na dor nos servirá de remédio a firmeza de ânimo que nos leva a suportar mais facilmente o que suportarmos com coragem; que a própria natureza da dor tem isto de notável: nunca é grande uma dor prolongada, nem nunca se pode prolongar uma grande dor; que, finalmente, devemos aceitar com firmeza aquilo que nos é imposto pelas leis do universo.

Quando conseguirmos que o homem, instruído nestes princípios, tenha uma clara noção da condição humana, quando tiver entendido que não é feliz a vida que obedece ao prazer mas sim a que obedece à natureza, quando tiver passado a abraçar, como único bem próprio do homem, a virtude e a evitar como único mal o vício, quando tiver percebido que tudo o mais – riquezas, honras, saúde, força, poder – ocupa uma posição intermédia, sem ser, em si mesmo, nem um bem nem um mal, então ele não precisará de conselheiro para, em cada situação, lhe dizer:

“deves andar deste modo, deves jantar daquele; esta é a atuação correta de um homem, de uma mulher, de um casado ou de um solteiro”.

Aqueles que com mais aplicação prodigalizam tais conselhos não são sequer capazes de os adaptar para si mesmos. Conselhos tais dá-os o pedagogo à criança, a avó ao neto; é todo encolerizado que o mestre-escola ensina que não nos devemos encolerizar! E se acaso entramos numa escola primária encontraremos entre as frases que as crianças copiam estas máximas que os filósofos proferem de cenho carregado!

Outro ponto: vamos ministrar conselhos sobre questões evidentes ou duvidosas? Se são evidentes, não é preciso um monitor para nada, se são duvidosas, pode não se dar crédito ao conselheiro; logo, é supérfluo ministrar preceitos. O que eu pretendo dizer é isto: se tu indicas preceitos sobre uma matéria obscura e controversa, terás de apoiar-te em algumas provas; se recorreres a provas, estas terão maior valor que os preceitos e bastarão, portanto, só por si.

“Deves tratar deste modo um amigo, um concidadão, um companheiro.” – “Porquê?” – “Porque é de justiça”.

Ora todos estes casos particulares são-me proporcionados pelo estudo do que é a “justiça”: através deste verei que a equidade é algo que, em si mesmo, devemos procurar, que não somos coagidos a ela pelo medo nem atraídos por premios, e que não é justo quem, na prática desta virtude, tem outro objetivo para lá dela mesma. Se eu me tiver apercebido e embebido desta verdade, se eu já souber esta lição, para que me servirão os preceitos?

Ministrar preceitos a quem já conhece a teoria é supérfluo, a quem ainda a ignora é insuficiente, porquanto não basta conhecer os preceitos, é necessário saber igualmente a respectiva razão de ser. Pergunto eu : os preceitos são necessarios a quem possui uma opinião correta sobre o bem e o mal, ou a quem não a possui?

Quem a não possui nada beneficiará com os teus conselhos, já que tem às ouvidos atentos à opinião do vulgo, a qual é contrária à tua. Quem já possui uma noção correcta do que devemos evitar e procurar, esse sabe muito bem como há-de agir, mesmo que se lhe não diga nada. Toda esta parte da filosofia pode, por conseguinte, ser posta de lado.

Há duas causas que nos podem fazer cair em falta : ou o nosso espírito enferma de qualquer vício contraído no contacto com as falsas opiniões, ou então, ainda que não dominado por opiniões falsas, é propenso à falsidade e facilmente se deixa corromper por uma aparência sedutora mas falaz.

Por isso devemos ou sanar a nossa mente enferma e libertá-la dos vícios, ou então, quando ela carece de ideias justas mas é propensa às falsas, atuar profilacticamente. Ambos estes objetivos são atingidos pelos princípios básicos da filosofia ; logo, o método preceptivo não serve para nada.

Além disso, se pretendêssemos dar preceitas individuais, a tarefa seriá inesgotável: haveria que procurar uns preceitos adequados aos prestamistas, outros aos agricultores, outros aos comerciantes, outros aos cortesãos dos monarcas, outros àqueles que só convivem com os seus pares, ou com os seus inferiores! Para dar preceitos a um homem casado sobre o comportamento a ter com a esposa, haveria que distinguir se ele casou com uma virgem ou com uma mulher já anteriormente casada, com uma ricaça ou com uma mulher sem dote. A menos que se admita não haver qualquer diferença entre uma mulher estéril e uma fecunda, entre uma jovem e uma mulher de certa idade, entre uma mãe e uma madrasta!

Abarcar todos os casos é impossível; ora, enquanto os casos individuais exigem um tratamento particular, os princípios da filosofia são breves e compreendem todos os casos. Acrescente-se ainda que os preceitos da sabedoria devem ser bem definidos, e rigorosos; se não forem bem definidos, então estão fora da sabedoria, já que esta é capaz de definir tudo com exatidão.

Logo, a parte preceptiva deve ser eliminada, porquanto não é capaz de proporcionar a todos o auxílio que se propõe dar a alguns; ora a sabedoria diz respeito a todos. Entre a loucura do vulgo e aquela que confiamos aos médicos só há uma diferença : esta última é motivada por uma doença, a primeira é causada pelas falsas opiniões; a segunda, é loucura motivada por uma perturbação física, a primeira consiste numa deficiência do espírito. Se alguém for preceituar a um louco como ele deve falar, andar, agir em público ou em privado, esse alguém será mais louco ainda do que o . outro; o que interessa é sanar a bílis negra, é eliminar a causa específica da loucura. O mesmo método deveremos seguir no caso da insânia do espírito : devemos eliminar o mal em si, de outro modo os preceitos cairão em saco roto.

São estes os argumentos de Aríston. Vamos agora responder-lhes, um por um. Para começar, quando ele diz que, se há nos olhos alguma impureza que impeça a visão, é preciso eliminá-la, admito que alguém nesta situação não careça de preceitos para ver, mas sim de um remédio que lhe limpe os olhos e remova o obstáculo a uma visão perfeita.

O fato de vermos é um fenómeno da natureza, e quando eliminamos a doença recuperamos o uso da vista. Não é a natureza, no entanto, que indica a cada um de nós os respectivos deveres.

Além disso, quando alguém se cura das cataratas, pelo fato de ter recuperado a vista, nem por isso pode restituir a vista a outros. No entanto, alguém que se liberte do vício é capaz de libertar outros também. Não são precisos incitamentos ou conselhos para que os olhos distingam as propriedades das cores; mesmo sem preceptor qualquer um sabe distinguir o branco do preto.

O espírito, pelo contrário, carece de muitos preceitos até saber como agir na vida. O médico, aliás, não se limita a curar os doentes dos olhos. Dirá: “Não deves expor a vista ainda fraca a uma luz muito intensa; deves avançar do escuro para a penumbra, depois continuar, até acabares por, gradualmente, te habituar à luz do dia.

Não deves pôr-te a estudar logo após o jantar, não deves forçar os olhos ainda cheios de líquido e inchados; evita receber no rosto uma corrente de ar frio”, e outros conselhos semelhantes, cuja utilidade não é inferior à dos medicamentos. Aos remédios, a medicina faz seguir os conselhos.

“A causa das nossas faltas” diz Aríston “é o erro. Os preceitos não nos livrarão do erro, nem destruirão as falsas opiniões sobre o bem e o mal.”

Eu admito que, por si só, os preceitos não sejam eficazes para corrigir as convicções falsas do nosso espírito; são, todavia, úteis, desde que aliádos a outros métodos. Por um lado, avivam a memória; por outro, questões que, vistas na globalidade, podiam parecer confusas são entendidas com maior clareza quando encaradas separadamente. Se assim não fosse teríamos de considerar supérfluas as consolações e as exortações; ora nem umas nem outras são supérfluas; logo, os conselhos também o não são.

“É estupidez” diz Aríston – “prescrever a um doente o que ele deve fazer como se estivesse saudável, quando o que importa é restituir-lhe a saúde, sem a qual os preceitos são ineficazes.”

Mas não é verdade que os doentes e sãos têm aspectos em comum, sobre os quais devam ser aconselhados? Por exemplo, que não devem comer com sofreguidão, que devem evitar fatigar-se. Há preceitos que tanto se aplicam ao pobre como ao rico.

“Cura a avareza” – diz ele – “e deixará de ser preciso aconselhar tanto o pobre como o rico, uma vez dominada a cupidez de um e de outro.”

Mas não é verdade que deixar de ambicionar a riqueza é uma coisa, e outra diferente saber usar dela? Ora, se o avaro não tem a justa medida do dinheiro, mesmo o não avaro ignora o modo de usá-lo.

“Livra-nos do erro” afirma Aríston -“e os preceitos serão supérfluos.”

É falso. Imagina que a avareza desapareceu, que o **luxo foicontido**, que a temeridade foi refreada, que a indolência foi acicatadamesmo depois de eliminados estes vícios há que aprender o que fazer e como agir.

“De nada valem” diz ele – “os preceitos dados a pessoas dominadas por graves vícios.”

Também a medicina de nada vale contra as doenças incuráveis, no entanto usamo-la para curar algumas, ou para aliviar outras. Nem o esforço combinado de toda a filosofia, ainda que para tal fim fizesse apelo a todas as suas forças, poderia extrair-nos do ânimo um vício endurecido, já inveterado; mas o fato de não curar tudo não implica a incapacidade de curar alguma coisa.

Pergunta Aríston:

“Qual a utilidade de apontar verdades evidentes?”

Muita. Às vezes sabemos as coisas, e não reparamos nelas. Uma advertência não ensina, mas chama a atenção, mantém-nos atentos, conserva a memória concentrada, sem permitir que se disperse. Quantas vezes passamos sem dar por coisas que temos diante dos olhos: fazer uma advertência é como fazer uma exortação.

Frequentemente, o nosso espírito finge não ver o que é evidente; há por isso que obrigá-lo a reparar mesmo nas coisas mais banais. Devemos recordar a este propósito a frase de Calvo no discurso contra Vatínio:(2)

“Vós sabeis que houve corrupção eleitoral, e todos sabem que vós o sabeis!”

Sabes que a amizade deve ser religiosamente conservada, mas não o fazes. Sabes que é desonesto exigir fidelidade à tua esposa, e andar ao mesmo tempo a cortejar as mulheres dos outros; sabes que, se ela não deve ter amantes, também tu não deves ter “amigas”; mas não é assim que procedes. Por isso mesmo, a tua memória deve ser avivada; não interessa que estes princípios lá estejam guardados, mas que estejam ativos.

Todas as ideias salutares devem estar em movimento, em permanente atuação, de modo a serem para nós não só objecto de conhecimento mas também de prática. Acrescenta a isto que, assim, as verdades evidentes se tornam ainda mais evidentes.

Acrescenta Aríston: “Se é controversa a matéria sobre que dás preceitos, terás que apresentar provas; logo, as provas, e não os preceitos, é que são proveitosas.”

Mas não é verdade que, mesmo sem prova, a autoridade do conselheiro pode valer por si só? É o que sucede com o valor atribuído aos pareceres dos juristas, mesmo quando não acompanhados da respectiva justificação. Além disso, os próprios preceitos ministrados podem ter por si só muita força, se vierem, por exemplo, sob forma métrica ou, mesmo em prosa, sob forma de uma sentença concisa.

Tal sucede, por exemplo, com as famosas máximas de Catão:

“Não compres o necessário, mas apenas o imprescindível; o que não é necessário, mesmo por um tostão já é caro”Catão, ad filum, frg. 10 lordan.

ou então com as não menos célebres sentenças oraculares, ou semelhantes: “aproveita o tempo”“conhece-te a ti mesmo”. Porventura vais exigir justificação se alguém te recitar estes versos:

“O esquecimento é o remédio para as ofensas” Publílio Siro, 1, 21 Meyer. “A fortuna protege o audaz, o medroso é um tropeço para si próprio?”(3)

Tais máximas não carecem de advogado; atuam diretamente sobre as paixões, a sua utilidade nasce do fato de elas exercerem a sua acção por força da sua natureza.

De tudo quanto é honesto o nosso espírito contém em si as sementes, as quais são despertadas pela admonição tal como a fagulha, excitada por um sopro ligeiro, desenvolve de novo as suas chamas. A virtude alça-se mal recebe estímulo e impulso. Além disso, existem no espírito disposições pouco prontas a atuar, mas que começarão a desentorpecer mal sejam evocadas; outras ainda estão, por assim dizer, dispersas, sem que uma mente pouco dextra consiga combinar as respectivas forças. Importa por isso congregá-las e uni-las, para que aumente o seu poder e elevem mais o nosso ânimo.

Nota: se os preceitos não servem para nada, então acabe-se de vez com a educação e fiquemos contentes com o que a natureza nos deu. Quem assim fala não vê que há pessoas de espírito ágil e atento, outras de espírito lento e pesado, em suma, . que umas são mais inteligentes do que outras. Ora, o vigor da inteligência alimenta-se e robustece-se com os preceitos, adiciona novas convicções às inatas, corrige os erros em que labora.

“Se alguém” – afirma Aríston – “não possui princípios justos, para que lhe servem as admonições, manietado como está por ideias incorretas ?”

Precisamente para isso, para se libertar de tais ideias. A índole natural não está extinta nele, mas apenas obnubilada e reprimida. Assim, pode tentar ressurgir e lutar contra os seus erros; obtendo auxílio, valendo-se dos preceitos, pode recobrar forças, desde que uma prolongada enfermidade a não tenha contaminado e aniquilado por completo; neste caso, nem toda a doutrina filosófica, com todos os seus recursos, a conseguiria ressuscitar! Que outra diferença há, afinal, entre os princípios da filosofia e os seus preceitos, senão que aqueles são preceitos de carácter geral, e estes de carácter particular? Num caso e noutro trata-se de preceitos, uns de alcance universal, outros limitados ao individual.

Aríston:

“Quando alguém possui princípios justos e baseados na moralidade, é supérfluo ministrar-lhe preceitos.”

De modo nenhum. Tal homem pode saber em teoria o que tem o dever de fazer sem que o distinga claramente na prática. Ou seja, não são somente as paixões que nos impedem de fazer o que a razão nos indica, mas também a incapacidade de achar a atuação indicada em cada circunstância. Pode suceder que tenhamos um espírito dotado de excelente disposição, mas indeciso e incapaz de descobrir a via do cumprimento do dever: aqui está o que os preceitos podem indicar.

“Rejeita as falsas opiniões sobre o bem e o mal, em seu lugar forma opiniões corretas, e a preceptística nada terá que fazer.”

Não há dúvida de que este método contribui para introduzir a ordem no espírito; por si só, contudo, não chega. De fato, ainda que se demonstre por meio de argumentos em que consiste o bem e o mal, nem por isso os preceitos deixam de ter o seu papel. A prudência e a justiça implicam o cumprimento de deveres: ora, são preceitos que discriminam tais deveres. Além disso, o nosso próprio juízo sobre o mal e o bem é confirmado através da prática de deveres, e a essa prática são os preceitos que nos conduzem Preceitos e deveres estão em perfeito acordo entre si: aqueles não podem ocorrer sem que estes se lhes sigam, mais, estes seguem-se pela ordem conveniente, donde se conclui que aqueles têm a precedência.

“Os preceitos são em número infinito.”

É falso; no que concerne às questões de maior importância e urgência não são em número infinito. É certo que há ligeiras diferenças entre eles, segundo as épocas, os lugares, as pessoas. Em todo o caso, é sempre possível formular preceitos de carácter geral.

“Ninguém cura a loucura com preceitos; o mesmo se diga do mau carácter.”

Não é o mesmo caso. Se se eliminar a loucura, restitui-se a saúde, ao passo que se se repelirem as falsas opiniões não se segue automaticamente o discernimento dos deveres a cumprir; para tal se conseguir é necessário que a preceptística venha corroborar o justo juízo sobre o bem e o mal. De resto, também não é exacto que os preceitos não sejam úteis aos insensatos. Se é certo que por si só nada conseguem, nem por isso deixam de ajudar à cura, na medida em que a repreensão e a censura refreiam os insensatos (falo, naturalmente, daqueles insensatos cujo espírito se encontra alterado, mas não perdido de todo).

“As leis não nos conseguem obrigar a fazer o que devemos. Ora o que são as leis senão preceitos entremeados de ameaças?”

Antes de mais, as leis não nos conseguem persuadir precisamente pelo fato de nos ameaçarem, enquanto os preceitos não pretendem coagir-nos, mas sim apelar à nossa obediência. Depois, enquanto as leis visam afastar-nos do crime, os preceitos exortam-nos ao nosso dever. Podemos dizer mesmo que as leis favorecem os bons costumes, desde que pretendam não só impor como também instruir. Neste ponto, não concordo com Posidónio, quando este afirma:

“Não aprovo Platão quando ele acrescenta às leis princípios teóricos. Uma lei, convém que seja breve, para mais facilmente ser entendida pelo homem comum. Deve ser como uma voz emanada da divindade, deve ordenar e não discutir. Nada me parece mais abstruso e inábil do que uma lei com prólogo. Aponta-me, indica-me o que queres que eu faça; não pretendo aprender, mas sim obedecer.”

As leis são, em todo o caso, úteis, e por isso se vê proliferarem os maus costumes nas cidades que dispõem de más leis.

“Mas as leis não aproveitam a toda a gente.”

Também a filosofia não ! E isso não significa que ela seja inútil ou ineficaz na formação do espírito. E o que é, afinal, a filosofia senão a lei que rege a totalidade da vida? Mas admitamos que as leis não têm utilidade: isso não implica que os preceitos também não tenham utilidade. Ou então, deveremos negar utilidade aos tratados de consolação, de dissuasão, de exortação, de admoestação, de exaltação.

Tais tratados ministram variados tipos de preceitos, e graças a eles consegue chegar-se a um estado de espírito perfeitamente equilibrado. Nada nos induz mais no espírito os princípios justos, nada reconduz melhor ao bom caminho os hesitantes ou os propensos ao mal do que a convivência com as pessoas de bem; vê-las frequentemente, escutá-las frequentemente é algo que a pouco e pouco se nos vai gravando no íntimo, a ponto de atuar com o vigor de preceitos. Que digo, o simples encontro com os sábios é proveitoso, há sempre algo de profícuo na presença de um grande homem, ainda que em silêncio.

Não me é fácil explicar-te até que ponto isso pode ser útil, muito embora compreenda claramente em que medida me foi de fato útil!

“Há pequenos insetos” – diz Fédon – “cuja mordedura se não sente, tanto é subtil e disfarçada a sua periculosidade; apenas o inchaço revela que houve mordedura, embora no próprio inchaço se não distinga qualquer ferida.”

O mesmo te sucederá se conviveres com os sábios: tu não darás conta de como e quando tal convívio te está sendo útil, mas virás a compreender que te foi útil.

“Onde pretendes chegar?”

A isto: que os bons preceitos, se te acompanharem com frequência, te serão de tanta utilidade como os bons exemplos. Diz Pitágoras que ganham uma alma nova os crentes que entram no templo, contemplam de perto a imagem dos deuses e aguardam a revelação de algum oráculo. Quem negará que há preceitos capazes de impressionarem fortemente mesmo as pessoas menos esclarecidas? Como por exemplo estes, tão parcos de palavras quanto ricos de conteúdo :

“Nada em excesso”(4) “Alma avara, nenhum lucro a sacia” Publílio Siro, A 55 Meyer. “Espera dos outros o que aos outros fizeres”. Publílio Sim, A 2 Meyer.

Estas máximas atingem-nos como uma pancada, sem permitirem que duvidemos ou nos perguntemos porquê! Mesmo sem recurso à razão, a sua verdade aparece-nos com transparência.

Se o respeito refreia a arrogância e reprime os vícios, porque não hão-de os preceitos conseguir o mesmo? Se uma repreensão impõe um sentimento de vergonha, porque não há-de a preceptística conseguir o mesmo, usando os seus preceitos sem recorrer à violência? É bem mais profícua, naturalmente, e penetra mais a fundo uma preceptística que apoie os seus preceitos na razão, que não omita os motivos por que se deve agir desta ou daquela maneira, que indique os frutos ao alcance de quem aceita e obedece aos preceitos. Se o uso da autoridade é útil, também o é o da preceptística; ora o uso da autoridade é útil, logo também o é o da preceptística .

A virtude reveste dois aspectos: um, a contemplação da verdade; outro a ação. O estudo teórico leva-nos à contemplação, a preceptística conduz-nos à ação. Uma ação justa exercita e revela a virtude. Quando alguém quer agir, se a exortação lhe pode ser útil, também o conselho o será. Por conseguinte, se uma ação justa é necessária à virtude, e se a preceptística aponta quais são as ações justas, então a preceptística também é necessária.

Duas coisas há que sobretudo contribuem para nos dar força de ânimo: a fé na verdade, a confiança em nós mesmos. Ora, a preceptística consegue incutir uma e outra.

Começamos por crer na verdade e, quando cremos nela, o nosso espírito ganha ânimo e elevação, e enche-se de autoconfiança; a preceptística, portanto, não é supérflua.

M. Agripa, homem de forte carácter, o único daqueles Se admitirmos que isto é verdade, então também a quem as guerras civis deram fama e poder que pôs a sua fortuna ao serviço do bem público, costumava dizer que devia muito a esta máxima: “Quando há concórdia, mesmo as pequenas nações prosperam; quando há discórdia, até as maiores se arruinam”(5) Graças a ela, dizia, é que se tornara um irmão e um amigo excelente.

Ora se máximas deste tipo, quando perfeitamente interiorizadas, são capazes de formar o carácter, como não há-de conseguir o mesmo resultado aquela parte da filosofia que consiste precisamente em tais máximas? A virtude assenta em parte na teoria, e em parte na prática. É necessário não só aprender mas também confirmar pela ação aquilo que se aprendeu. Uma vez que assim é, são-nos proveitosos não só os prinápios da sabedoria como igualmente os seus preceitos, os quais exercem, por assim dizer, direito de coerção e direito de exílio sobre as nossas paixões.

“A filosofia” – continua Aríston – “divide-se em dois pontos: o conhecimento teórico, a formação do carácter. Aquele que estuda a teoria e aprende a distingir o que deve fazer-se e o que deve evitar-se só se torna um sábio quando, graças àquilo que aprendeu, uma transfiguração se opera no seu espírito. Essa terceira parte da filosofia, que é a preceptística, comparticipa das outras duas, isto é, de doutrina e de formação; é, portanto, supérflua como forma de realizar a virtude, uma vez que as duas outras são bastantes”.

Se admitirmos que isto é verdade, então também a consolação é supérflua (pois também ela comparticipa das duas outras partes da filosofia), bem como a exortação, a persuasão e a própria argumentação, pois esta, para se desenvolver, pressupõe desde logo um carácter completa e perfeitamente formado.

No entanto, se bem que estes tipos de discurso procedam de uma perfeita disposição do espírito, é certo que uma perfeita disposição do espírito também é procedente daqueles; ou seja, esta simultaneamente origina-os e é originada por eles. De resto a tua objeção é válida para um homem que já atingiu a perfeição e o mais alto grau de felicidade humana.

Só tarde, todavia, se atinge um tal estádio; entretanto, a um indivíduo ainda imperfeito mas em progresso, há que indicar a via correcta de agir. Talvez a sabedoria, por si só, mesmo sem conselhos, possa indicá-la a si mesma, porquanto já conduziu a alma a um ponto tal que lhe é impossível mover-se senão segundo a justiça. Os espíritos mais fracos, contudo, necessitam de alguém que os guie, dizendo:

“Deves evitar isto, deves fazer aquilo”.

Além disso, se quisermos esperar a altura em que, por nós mesmos, saibamos qual o melhor modo de agir, iremos entretanto cometendo erros, e esses erros impedir-nos-ão de atingir um ponto em que possamos estar contentes connosco; devemos deixar-nos guiar enquanto ainda estamos aprendendo a guiar-nos por nos mesmos.

Também as crianças aprendem a escrever pelo exemplo: pega-se-lhes nos dedos, a mão do mestre guia-os sobre os desenhos das letras, depois diz-se-lhes que imitem o modelo apresentado, e que por ele corrijam a sua caligrafia. Um tal auxílio deve ser dado ao nosso espírito enquanto aprende a guiar-se por um modelo.

Estes argumentos demostram como não é supérflua esta parte da filosofia. Falta agora ver se por si só é bastante para a formação do sábio. Esta questão tratá-la-emos em outra oportunidade. (6)

Por agora, e deixando os argumentos, não é simplesmente claro que necessitamos todos de um conselheiro que nos acautele contra os preconceitos do vulgo? Palavra alguma nos chega impunemente aos ouvidos: uns prejudicam-nos por nos desejar bem, outros prejudicam-nos por nos amaldiçoar. As imprecações destes incutem em nós falsos receios, a simpatia daqueles, na melhor das intenções, aconselha-nos o mal, enquanto nos incita a procurar bens distantes, incertos, efémeros, quando podemos achar a felicidade ao pé da porta.

Repito: não somos livres de seguir o caminho justo. Os próprios pais nos desviam para o mal, os escravos também. E os erros de cada um não recaem só sobre si, antes pegam a insânia ao próximo e por este se deixam reciprocamente contaminar. Os vícios de cada um são-no também da sociedade, pois foi a sociedade que os gerou. Se alguém incita outro ao mal, tende para o mal ele próprio; aprende más condutas, ensina-as em seguida, e atinge-se a perversidade generalizada quando numa sociedade se concentra o que há de pior em cada indivíduo. Arranjemos, portanto, um protector que de vez em quando nos puxe as orelhas, que dissipe as opiniões do vulgo, que proteste contra as preferências da multidão.

Enganas-te se pensas que os vícios nasceram conosco: vieram por acréscimo, foram incutidos em nós! Que frequentes admoestações nos ajudem a repelir as opiniões que à nossa volta se difundem!

A natureza não nos predestinou para nenhum vício, antes nos gerou puros e livres. Não expôs à superfície nada que fosse susceptível de despertar a nossa avareza: pôs-nos debaixo dos pés o ouro e a prata, para que pisássemos e calcássemos algo que só merece ser pisado e calcado. A natureza ergueu-nos o rosto para o céu, para que tudo quanto criou de belo e magnificente fosse visto de cara ao alto: o nascer e o pôr das estrelas, o movimento vertiginoso do mundo que durante o dia nos revela a vista da terra e durante a noite a do céu; a marcha dos astros, tão lenta à escala do universo, mas tão rápida se pensarmos no espaço enorme que percorrem com velocidade constante; os eclipses do Sol e da Lua quando situados em oposição; e tantos outros fenómenos dignos de admiração, quer ocorram regularmente quer resultem de causas inesperadas, tais como os rastos de fogo durante a noite, os relâmpagos que, sem ruído de trovão, como que despedaçam o céu, as colunas, as traves e outras variedades de fogos celestes! (7)

Tudo isto colocou a natureza sobre as nossas cabeças, ao passo que escondeu o ouro e a prata, e também o ferro, o qual, por causa dos metais preciosos, nunca descansa em paz sinal de que é por nosso mal que os obtemos! Nós é que expusemos à luz do dia esses metais que nos levam à guerra, nós é que rasgamos o ventre da terra para dele / extrair a causa e o instrumento das nossas desgraças, nós é que imputámos à fortuna os nossos males, sem corar de colocarmos acima de nós aquilo que jazia nas profundezas telúricas.

Queres saber até que ponto é ilusório esse fulgor que te deslumbra? Nada há mais sujo, nada menos brilhante do que esses metais enquanto jazem imersos, cobertos de lama. Como não seria assim, se eles são extraídos das trevas de intérminas galerias? Nada há mais informe do que eles quando são trabalhados e depurados das suas impurezas. Repara ainda nos operários cujas mãos os limpam de toda a terra impura que trouxeram das minas, e verás quanta sujidade neles se acumula.

Esses metais, contudo, ainda contaminam mais as almas do que os corpos, mais sujidade se encontra nos seus donos do que nos trabalhadores. É por isso que é imprescindível receber conselhos, ter alguém que desperte em nós um espírito justo, ouvir, enfim, no meio do tumultuoso estrépito da falsidade – ouvir uma voz! E que voz será essa? Uma precisamente que murmure palavras salutares aos teus ouvidos ensurdecidos pelo desenfreado clamor da ambição, que te diga não haver motivo para invejar aqueles a quem a multidão considera grandes e afortunados; não haver motivo para que a aprovação do vulgo destrua em ti a sã disposição de um espírito justo; não haver motivo para que os adornos da púrpura e dos fasees te faça aborrecer a tua tranquilidade de espírito; não haver motivo para julgares que é mais feliz do que tu (a quem o lictor afasta do caminho) aquele diante de quem se abrem alas. Se queres exercer uma autoridade, útil a ti mesmo e não gravosa para alguém, então reprime os vícios.

Muitos há que ateiam fogo a cidades, que destroem monumentos poupados pelos séculos e seguros durante gerações, que erguem muros de cerco altos como cidadelas e que arrasam com aríetes e outras máquinas muralhas de enorme altura. Muitos há que fazem avançar exércitos e perseguem com violência os inimigos, que atingem o alto banhados em sangue de massacres. Todos estes, para vencerem o adversário, deixaram-se vencer pela cobiça. Ninguém consegue resistir ao seu avanço, tal como eles não resistem à ambição e à crueldade!

Uma vontade furiosa de devastar terras alheias incita o infeliz Alexandre e leva-o até remotas paragens. Ou consideras tu são de espírito um homem que começou a sua carreira infligindo sucessivos golpes à Grécia, a terra em que fora educado, e que roubou a cada cidade o seu bem mais caro, forçando Esparta à servidão e Atenas ao silêncio? E não contente com a destruição de tantas cidades, já conquistadas ou compradas por Filipe, foi ainda destruir outras em outras terras, levando as suas armas a todo o globo. Em parte alguma sossegou a sua crueldade fatigada, à maneira das bestas feras que matam mais do que a fome exige. Muitos reinos se amontoaram para formar o seu império, ante ele tremem tanto os Gregos como os Persas, e muitas nações que Dario conservara livres caem sob o seu jugo. Atravessa o oceano a caminho do oriente, incapaz de suportar que a sua marcha vitoriosa se detenha onde pararam Hércules e Baco, intenta forçar a própria natureza. Avança, não porque o queira, mas porque é incapaz de parar, tal como os objetos em queda que só param quando chegam ao chão!

Também não foram a virtude ou a razão que persuadiram Gneu Pompeio à guerra no estrangeiro ou à guerra civil, mas sim uma paixão insana por uma falsa grandeza. Ora marchava sobre a Hispânia contra as forças de Sertório, ora ia reprimir a pirataria e pacificar o Mediterrâneo: tudo era apenas pretexto para prolongar o seu poder. Que força o fez ir até à África, até ao Norte, até ao reino de Mitrídates, até à Arménia, até aos recônditos da Ásia? Somente uma infinita vontade de poderio, pois era ele o único que não se considerava suficientemente grande!

O que moveu G. César a provocar a sua própria queda e a da república? A glória, a ambição, uma vontade extrema de superar os demais. Não podia admitir um único homem acima de si, ao passo que a república era forçada a aguentar dois !

Pensas tu que G. Mário, cônsul uma só vez (pois só uma vez obteve o consulado, das outras todas usurpou-o!), ao esmagar os Teutões e os Cimbros, ao perseguir Jugurta pelos desertos da África, era movido a afrontar tantos perigos por instinto da virtude? Mário dirigia o exército, mas quem dirigia Mário era a ambição.

Estes homens, ao abalarem tudo e todos, eram eles próprios abalados, à maneira dos tornados que fazem girar tudo o que agarram mas são eles os primeiros a girar e por isso mesmo se abatem com tanto maior força quanto carecem de qualquer força que os reprima; assim, se foram causadores da desgraça de muitos, acabaram por sentir também eles o efeito da força perniciosa com que causaram o infortúnio alheio. Não penses que alguém pode ser feliz à custa da infelicidade dos outros.

Todos estes exemplos que nos enchem os olhos e os ouvidos, devemos desmontá-los, devemos purificar o espírito de tantos falsos discursos que o ocupam; devemos introduzir a virtude no espaço que aqueles ocupavam, para que ela destrua as mentiras e tudo quanto falsamente nos seduz, para que ela nos afaste da multidão a que damos excessivo crédito e reinstale em nós opiniões justas. Nisto consiste a sabedoria: em regressar à natureza, em retornar ao ponto donde nos afastou o erro do vulgo! Uma grande parte da sanidade de espírito consiste em virar as costas aos conselheiros de insensatez, em ir para bem longe dessa convivência reciprocamente nocivaPara ver até que ponto isto é verdade, observa o diferente comportamento das pessoas quando em público e quando isoladas. Não é que por si só a solidão nos reconduza à inocência, tal como a vida no campo não nos ensina a frugalidade; mas, quando não há testemunhas e espectadores, os vícios, cujo principal aliciante consiste em atrair as atenções, perdem intensidade. Quem se vai vestir de púrpura senão para se exibir? Quem usa baixela de ouro para comer sozinho? Quem, estendido sozinho no campo à sombra de uma árvore, faz estadão de todo o seu luxo? Ninguém se adorna para se autocontemplar, nem sequer para se apresentar diante de alguns amigos e familiares; adequa, sim, o aparato dos seus vícios às dimensões da multidão que o observa!

É assim mesmo: se alguém admira ou conhece o objeto das nossas loucuras, ainda mais nos comprazemos nelas. A falta de ocasião para os exibir afastar-nos-á de desejos insensatos. Ambição, luxo, excessos, precisam de um palco: tira-lhes o público, sanarás esses vícios. Por isso mesmo, quando estivermos no meio do estrépito da cidade, tenhamos ao lado um conselheiro que, ao contrário dos apreciadores de enormes patrimónios, elogie antes os que são ricos com pouco e possuem bens à escala das necessidades.

Ao contrário dos que exaltam a reputação e o poder, fale ele para defender o ócio dedicado ao estudo e o retorno a si próprio do espírito liberto das preocupações exteriores.

Explique de que modo aqueles a quem o vulgo considera afortunados vivem receosos e incertos entre as invejas que a sua posição suscita e têm de si uma opinião bem diferente da que os outros deles fazem, pois o que aos outros se apresenta como uma altura é para os próprios um precipício! Por isso eles perdem coragem e estremecem cada vez que olham a sua grandeza à beira do abismo: eles conhecem os- caprichos da fortuna, e sabem que quanto maior é a altura mais fácil é a queda.

Arreceiam-se então dos bens que haviam desejado; a sua fortuna, que os tornava gravosos aos demais, torna-se mais gravosa ainda para eles próprios. Nessa altura põem-se a louvar o ócio sem peias nem preocupações, o esplendor causa-lhes repulsa, procuram fugir à sua situação antes da queda. Então, e só então, verás como o medo os leva à filosofia, como uma fortuna oscilante os conduz a resoluções sensatas. Parece que a boa fortuna e o bom senso são coisas incompatíveis entre si: o facto é que somos mais sábios na adversidade, ao passo que a prosperidade nos afasta do justo caminho.

Passar Bem!

(1) A moral prática, que ministra conselhos (praecepta), em grego παραiνητική (parenética), por oposição à moral teórica (δογματική /, dogmática) que estabelece os princípios de base (decreta).

(2) G. Licínio Calvo, orador e poeta contemporâneo de César e Cícero (cf. Brutus, 283 ss.), amigo íntimo de Catulo (carme 14), célebre sobretudo pelos seus discursos contra Vatínio (cf. Catulo 53), ainda lidos e admirados no tempo de Tácito (dia!. de orat., 21, 2) e Plínio-o-Moço (epist., I, 2).

(3) Vergílio, Aen., X, 284. – Os códices vergilianos apenas têm o primeiro hern istÍquio (audentis fortuna iuuat) ; o resto da frase é acrescemo de Séneca, não se sabendo se se trata de criação sua ou se o encontrou em alguma edição “corrigida” de Vergílio.

(4) Sentença oracular (em grego μηδέν άγαν ), como as citadas acima no § 28.

(5) Salústio, Bell. lugurt., X, 6.

(6) O tratamento desenvolvido deste problema, a saber, se a parenética, ou preceptística, e por si só “bastante para a formação do sábio”, será reservado para a carta 95.

(7) Sobre esta classe de fenómenos pronunciou-se Séneca longamente nos livros I (fenómenos luminosos na atmosfera) e II (relâmpagos e trovões) das suas Naturales Quaestiones.