10 de setembro de 2025

Carta 93 – Façamos com que a nossa vida, à semelhança dos materiais preciosos, valha pouco pelo espaço que ocupa, e muito pelo peso que tem.

Por lucianakeiko@gmail.com

Na carta em que lamentavas a morte do filósofo Metronacte – como se ele tivesse podido, ou devido, viver mais tempo! – verifiquei a ausência daquele espírito de equidade que possuis em abundância em relação a todas as pessoas e a todas as atividades, mas que te falta precisamente no mesmo ponto em que toda a gente claudica: tenho encontrado muitos que sabem ser justos para com os homens, ninguém que o seja para com os deuses. Diariamente criticamos o destino:

“Porque foi este homem arrebatado a meio da carreira? E aquele, porque não morre, em vez de prolongar uma velhice tão penosa para ele como para os outros?”

Diz-me cá, por favor: o que achas tu mais justo, seres tu a obedecer à natureza ou a natureza a ti? Que diferença faz sair mais ou menos depressa de um sítio de onde temos mesmo de sair? Não nos devemos preocupar em viver muito, mas sim em viver plenamente; viver muito depende do destino, viver plenamente, da nossa própria alma.

Uma vida plena é longa quanto basta; e será plena se a alma se apropria do bem que lhe é próprio e se apenas a si reconhece poder sobre si mesma. Que interessam os oitenta anos daquele homem passados na inação? Ele não viveu, demorou-se nesta vida; não morreu tarde, levou foi muito tempo a morrer! “Viveu oitenta anos!”.

O que importa é ver a partir de que data ele começou a morrer.

“Mas aquele outro morreu na força da vida”.

É certo, mas cumpriu os deveres de um bom cidadão, de um bom amigo, de um bom filho, sem descurar o mínimo pormenor; embora o seu tempo de vida ficasse incompleto, a sua vida atingiu a plenitude.

“Viveu oitenta anos”.

Não, existiu durante oitenta anos, a menos que digas que ele viveu no mesmo sentido em que falas na vida das árvores. Peço-te insistentemente, Lucílio: façamos com que a nossa vida, à semelhança dos materiais preciosos, valha pouco pelo espaço que ocupa, e muito pelo peso que tem.

Avaliemo-la pelos nossos atos, não pelo tempo que dura. Queres saber qual a diferença entre um homem enérgico, que despreza a fortuna, cumpre todos os deveres inerentes à vida humana e assim se alça ao seu supremo bem, e um outro por quem simplesmente passam numerosos anos?

O primeiro continua a existir depois da morte, o outro já estava morto antes de morrer! Louvemos, portanto, e incluamos entre os afortunados o homem que soube usar com proveito o tempo, mesmo exíguo, que viveu.

Contemplou a verdadeira luz; não foi um como tantos outros; não só viveu, como o fez com vigor. Umas vezes, gozou de um céu inteiramente sereno; outras, conforme sucede, o fulgor do astro poderoso brilhou através das nuvens.

Porquê perguntar quanto tempo viveu? Viveu! Transpôs a barreira do tempo e fixou-se na memória da posteridade. Não quer isto dizer que eu vá recusar, sem mais, alguns anos de vida que ainda me caibam; contudo, se o curso da minha existência for quebrado, não direi que me faltou tempo para alcançar a felicidade. A verdade é que não me preparei em função de um certo dia que a minha esperança ávida me prometesse ser o último, pelo contrário, olhei sempre cada dia como se fosse o derradeiro.

Porque me perguntas quando é que eu nasci, ou se ainda posso ser chamado às fileiras? Tenho a minha conta! Do mesmo modo que um homem de diminuta estatura pode ser um carácter exemplar, também uma vida pode ser exemplar ainda que de curta duração.

A idade é um fator totalmente externo. Não me cabe determinar por quanto tempo vivo; está, todavia, na minha mão viver plenamente enquanto existir. Exige de mim que eu não percorra, como que envolto em trevas, uma existência sem sentido, mas que realize a minha vida, em vez de lhe passar ao lado.

Queres saber qual a duração ideal da vida? Quanto baste para atingir a sabedoria. Alcançar este fim significa cortar, não a mais distante, mas a mais importante das metas.

O homem que o conseguir deve sentir-se justamente orgulhoso; deve dar graças aos deuses e, entre estes, a si mesmo; deve fazer a natureza sentir-se devedora por ele ter existido. E de pleno direito o fará, já que lhe restitui uma vida melhor do que quando da natureza a recebeu. Determinou o modelo ideal de homem de bem, mostrou quais as suas qualidades e a sua grandeza; se a sua vida se prolongasse continuaria igual ao que já era.

E, afinal de contas, até quando pretendemos viver? Nós dispomos do conhecimento de todas as coisas: sabemos em que princípios se fundamenta a natureza, de que modo mantém ordenado o universo, qual o ciclo das estações do ano, de que modo compreende dentro dos limites de si mesma todos os fenómenos que alguma vez hão-de ocorrer; sabemos que os astros se movem pela sua própria energia, que nenhum está fixo a não ser a Terra (1), enquanto os restantes se deslocam a velocidade uniforme; sabemos de que forma a Lua deixa para trás o Sol, por que razão ela, que é mais lenta, deixa atrás de si um astro mais veloz, sabemos de que modo ela recebe ou perde a sua luminosidade, qual a causa que origina a noite e qual a que traz de volta o dia. Só nos resta ir para um ponto donde se possam contemplar mais de perto estes fenómenos. Dirá, no entanto, o sábio:

“Não é a esperança de, segundo penso, ter aberto o caminho para junto da família divina, que é a minha, que me faz deixar mais corajosamente esta vida. Estou certo de ter merecido juntar-me aos deuses, já estive mesmo entre eles; a minha mente já os visitou, como a deles me visitou a mim. Mas mesmo imaginando que a destruição é total, e que depois da morte nada mais resta do homem, a minha energia permanecerá idêntica, ainda que daqui saia para não chegar a parte alguma!”

Não viveu tantos anos quantos poderia ter vivido. Um volume, todavia, pode ter poucas linhas sem deixar de ser apreciável e útil; quanto aos Anais de Tanúsio (2), sabes bem quanto eles pesam e por que nome são conhecidos!

A longa vida de certas pessoas merece precisamente o mesmo epíteto que os Anais de Tanúsio. Pensas que é mais feliz o gladiador morto no último minuto dos jogos do que o que caiu a meio do espectáculo? Achas que estes homens são tão estupidamente apegados à vida que prefiram ser degolados no espoliário a sê-lo na arena? Não, é maior o intervalo que nos separa uns dos outros. A morte atinge todos; o criminoso segue atrás da vítima. É uma ínfima fracção de tempo essa por que as pessoas tanto se angustiam.

E, afinal, que importância tem o tempo que se leva a tentar evitar o inevitável?!

Passar Bem!

(1)Que a estabilidade da terra (geocentrismo) era uma teoria pelo menos contestável prova-o a discussão de Séneca acerca dos comeras no liv. VII das Naturales Quaestiones (v. por ex. o cap. II) .

(2) Tanúsio (Tanusius Geminus) é um historiador mencionado por Suetónio em Diuus Julius, IX. Catulo, em 36, 1, menciona os annales Volusi, cacata carta! A expressão de Séneca (“por que nome são conhecidos”) é uma reminiscência nírida de cacata carta do poema de Catulo. Conforme nota C J Fordyce ( Catullus, a commentary by .. ., Oxford, 1961, pp. 179-80), a semelhança dos nomes (Tanúsio, Volúsio) deve ter levado alguém a verrinosamenre aplicar à obra de Tanúsio o epírero dado por Catulo aos Anais de Volúsio.