8 de setembro de 2025

Carta 91 – Todas as obras dos mortais estão afetadas de mortalidade.

Por lucianakeiko@gmail.com

O nosso amigo Liberal anda estristecido com a notícia do incêndio que devastou a colónia de Lião. E, de fato, uma calamidade destas afligiria qualquer pessoa, quanto mais um homem tão apegado à sua terra natal. Este acidente faz com que ele não consiga encontrar aquela firmeza de ânimo que julgava possuir, embora, na realidade, ele só estivesse preparado para desgraças que concebia como possíveis.

Neste caso, contudo, dada a inexistência de precedentes, é perfeitamente natural que ele não estivesse preparado para o embate! É que incêndios, muitas cidades os têm sofrido, mas nenhuma ficou totalmente arrasada. Mesmo quando exércitos inimigos lançam fogo às habitações, muitos lugares há em que as chamas não pegam; e embora por vezes se reatem, raramente devoram tudo de modo a não deixar às armas a conclusão da tarefa! Terremotos – também dificilmente terá havido algum tão intenso e destruidor que arrasasse cidades inteiras.

Nunca, enfim, uma cidade foi pasto de um incêndio tão violento que não sobejasse uma parte para o incêndio seguinte. Em Lião, uma única noite deitou por terra inúmeros edifícios monumentais, tais que cada um só por si faria o orgulho de muitas cidades; em plena paz, Lião sofreu mais destruições do que teria sofrido no meio da guerra.

Quem acreditaria em tal? Por todo o lado as armas mantêm-se tranquilas, o mundo inteiro goza a mais completa segurança – e de Lião, há pouco o orgulho da Gália, nem sequer se encontra o sítio! A todos os homens que a fortuna espectacularmente tem vitimado, deixou-lhes um certo espaço de tempo para encararem com apreensão a aproximação da desgraça; nenhuma calamidade houve que não tivesse levado algum tempo a consumar-se. No caso de Lião, apenas uma noite separou a cidade esplendorosa da cidade inexistente! Numa palavra, a cidade foi aniquilada em menos tempo do que eu levo a contar-te!

Todos estes fatores perturbam o espírito do nosso Liberal, ele que, em relação à sua situação pessoal, mostra sempre a máxima firmeza de ânimo. Convenhamos que há motivos para ele se deixar perturbar: desgraça inesperada é mais difícil de suportar! Além disso, o próprio ineditismo torna as calamidades mais dolorosas, pelo que, se o espanto ante a catástrofe já é enorme, a dor consequente é ainda maior.

Por isso mesmo nós, estóicos, nunca nos devemos deixar apanhar de improviso. O nosso espírito deve prever todas as circunstâncias, deve pensar não no que sucede habitualmente, mas em tudo quanto pode vir a suceder. Se a fortuna assim o quiser, a que não pode ela reduzir um homem, por muito próspero que seja!

E não é verdade que quanto mais uma coisa é bela e sumptuosa mais a fortuna se dispõe a abatê-la? Que para a fortuna nada é duro e difícil? A via que ela trilha nunca é sempre a mesma, nem sequer é muito batida: umas vezes faz de nós mesmos os autores dos nossos males, outras, tirando partido dos seus recursos próprios, inventa calamidades sem responsável direto.

Nenhum momento está isento de perigo: no meio dos prazeres originam-se as causas da dor! No meio da paz nasce a guerra, os instrumentos da segurança transformam-se em motivos de apreensão: o amigo torna-se um rival, o companheiro passa a ser um inimigo. A calmaria estival rebenta em tempestades súbitas, e mais violentas do que as de Inverno.

Sofremos violências mesmo sem inimigos, e, se outros motivos não houver, o próprio excesso de bem-estar nos causará qualquer dissabor. O homem mais moderado não está imune à doença, o mais robusto pode apanhar uma tuberculose, o mais digno e honesto dos cidadãos pode ser condenado, uma desordem pode vitimar mesmo os de vida mais retirada; o acaso escolhe sempre um atalho inesperado para mostrar toda a sua força aos homens que fazem por esquecer-se dele.

Todo o património acumulado ao longo de anos e anos de esforço, sob a proteção da contínua benevolência divina, pode ser destruído e dissipado num único dia. E ao dizer “um único dia” já estamos a dar um grande prazo à aproximação do infortúnio: uma hora, um mero instante chega para derrubar um império! Seria um certo alívio para a nossa fragilidade e para a de todas as obras do homem, se tudo levasse tanto tempo a ruir como levou a edificar: só que enquanto o processo de crescimento é lento a destruição é sempre rápida!

Na vida privada ou na vida pública, nada há que permaneça estável: sejam homens, sejam cidades, o destino está sempre em mudança. O perigo pode surgir na mais pacífica das situações; mesmo sem nenhumas causas exteriores de perturbação, o mal pode irromper donde menos se espera. Quantos impérios, incólumes no meio de guerras, civis ou externas, ruíram sem que ninguém os derrubasse!

Quantas foram, afinal, as cidades que conheceram sem perigo o seu período de esplendor? Devemos ter sempre no espírito estas considerações, e robustecer o ânimo contra todas as eventualidades. Medita no exílio, na tortura, na guerra, nos naufrágios. Um golpe do acaso pode afastar-te da pátria, ou privar-te da pátria, pode atirar contigo para o deserto, pode suceder que esta cidade em que a multidão mal consegue mover-se venha a tornar-se um deserto.

Tenhamos diante dos olhos todos os fatores que determinam a condição humana, consideremos no nosso espírito não a frequência de cada fator, mas sim a intensidade máxima que ele pode atingir, a menos que queiramos deixar-nos abater e abrir a boca de espanto ante alguma desgraça menos usual como se ela fosse inédita.

Devemos pensar na fortuna – na sua máxima força – Quantas vezes tem havido cidades, na Asia Menor ou na Acaia, que ruíram com um único sismo. Quantas praças-fortes da Síria ou da Macedónia não foram já devoradas pela terra! Quantas vezes esta catástrofe não devastou já a ilha de Chipre! Quantas vezes já a ilha de Pafos não ruiu sobre si mesma! Frequentemente nos chega a notícia da destruição de de cidades inteiras … , e nós, os destinatários dessas frequentes noticias, que ínfima parte somos da humanidade!

Afrontemos então com coragem as eventualidades, estejamos conscientes de que, aconteça o que acontecer, não será decerto tão grave como a opinião pública pretende fazer crer. Ardeu Lião, uma cidade opulenta, o orgulho da província em que se situava, destacando-se sobre as demais! No entanto, ela erguia-se sobre um único monte, e nem por isso muito espaçoso.

De todas estas cidades esplendorosas e nobres de que hoje ouves falar o tempo corroerá todos os vestígios. Não vês como na Acaia até as fundações das mais ilustres cidades já estão destruídas, a ponto de nada haver no local para indicar que elas existiram algum dia? Mas não são apenas as obras do homem que perecem, não são somente os edifícios erguidos pela técnica e pelo talento humanos que a passagem do tempo deita por terra: os cumes dos montes desgastam-se, regiões inteiras afundam-se, encontram-se cobertas pelas ondas zonas que ficavam longe da vista do mar; a força intensa do fogo corrói as colinas onde se ateou, e reduz a nada picos outrora bem altos : – que até serviam aos marinheiros de consoladores pontos de referência.

As próprias obras da natureza estão sujeitas à destruição: mais um motivo para aceitarmos sem perturbação a ruína das cidades. Elas erguem-se hoje, mas cairão qualquer dia! Será esse o fim delas todas: ou porque a força do ar violentamente comprimido no interior da terra, sob a pressão, faça um dia ir pelos ares o terreno que o comprime; ou porque uma torrente rebenta impetuosa do subsolo destruindo tudo o que encontra; ou porque a violência das chamas provoca largas fendas no solo; ou porque a velhice, à qual nada escapa, as vai destruindo a pouco e pouco; ou porque o agravamento do clima faz desertar a população, e a degradação acaba por vencer a cidade abandonada.

Seria infindável enumerar todas as vias que o destino pode seguir. Uma coisa tenho por certa: todas as obras dos mortais estão afetadas de mortalidade; vivemos entre coisas que hão-de perecer um dia!

Estas e outras semelhantes consolações dirijo eu ao nosso amigo Liberal quando o vejo dominado pelo intenso amor que devota à sua cidade natal. Talvez, afinal, ela tenha ardido para renascer ainda mais esplêndida! Frequentemente sucede que uma calamidade dá azo a uma prosperidade maior ainda: muitos edifícios arruinados ressurgiram mais altos do que tinham sido. Timágenes, como inimigo da prosperidade romana, dizia que os frequentes incêndios em Roma só o afligiam por saber que a cidade renascia ainda maior das próprias cinzas!

Quanto à cidade de Lião, é natural que todos os cidadãos se venham a empenhar ao máximo para que a cidade agora perdida se reerga maior e mais nobre do que foi. Oxalá ela possa perdurar e assentar sob melhores auspícios em fundações que desafiem o tempo! De resto, a colónia de Lião foi fundada há somente cerca de cem anos, período de tempo exíguo, mesmo à escala humana. Instituída por Planco, ficou devendo a sua população atual à excelência da situação geográfica; e, no entanto, quantas calamidades gravíssimas a atingiram no breve espaço de tempo que um homem leva da infância à velhice!

Que a nossa alma, portanto, se habitue a entender e a suportar o seu destino, a saber que nada é interdito à fortuna, que esta tanto se abate sobre os impérios como sobre os imperadores, que tanto poder tem sobre as cidades como sobre os homens.

não devemos indignar-nos contra as desgraças: nós entramos num mundo que se rege precisamente por esta lei. Se a lei te agrada, obedece-lhe; se não, sai deste mundo pelo processo que quiseres! Indigna-te, sim, com alguma iniquidade que o destino te tenha feito somente a ti; mas as leis que regem o mundo constrangem tanto os grandes como os humildes, e por isso deverás reconciliar-te com o destino: ele dará solução a tudo! Não deves avaliar os homens pelos túmulos, pelos monumentos fúnebres que, uns maiores outros menores, se erguem ao longo das estradas: reduzidos a cinzas, todos os homens são iguais. Desiguais no nascimento, todos somos iguais na morte.

E o que digo dos cidadãos igualmente direi das cidades: tanto foi conquistada Árdea como Roma! O criador da condição humana somente nos torna diferentes, em função do nascimento ou da glória do nome, enquanto somos vivos; quando chegarmos ao termo da existência, ele dir-nos-á: “Vai-te, ambição! Idêntica há-de ser a lei para todos os seres que pisam a terra!” Todos somos iguais perante a sorte comum: nenhum homem é mais frágil do que outro qualquer, nenhum pode estar mais seguro do que lhe reserva o amanhã!

Alexandre, rei da Macedónia, começou a estudar geografia, pobre homem!, apenas para ficar sabendo como era exíguo este planeta de que ele somente ocupava uma diminuta parcela. E chamo-lhe “pobre homem” porque ele devia ter ficado a perceber como era falso o seu cognome: pois como pode alguém ser Grande dentro de tão estreitos limites?!

A matéria que lhe davam a estudar era complicada e exigia um grande esforço de atenção para ser assimilada, ou seja, estava para além das capacidades de um homem nervoso que só pensava em conquistar para lá dos oceanos! Disse Alexandre ao mestre: “Ensina-me uma matéria fácil!”, ao que o outro respondeu:

“Esta matéria é igual para todos, e para todos igualmente difícil.”

Imagina que a natureza nos fala deste modo:

“Estas leis de que te queixas são as mesmas para todos os homens; não as posso tornar mais fáceis de aceitar por quem quer que seja, mas quem quer que seja as pode tornar, se quiser, mais fáceis de aceitar por si próprio.”

Sabes como? Com calma e paciência. Como homem, estás sujeito à dor, à sede, à fome, à velhice (no caso de te calhar em sorte uma mais prolongada demora neste mundo), à doença; estás sujeito a perder os bens, a perder a vida. Mas não há razão para acreditares nos clamores que ouves à tua volta: nenhuma destas coisas é em si um mal, nenhuma é insuportável ou terrível. É a opinião pública que nos faz sentir medo diante delas. Tu receias a morte, tal como receias os boatos: há coisa mais ridícula do que ver um homem com medo… de palavras?

O filósofo Demétrio costumava dizer, com humor, que tanta importância dava aos clamores dos insensatos como aos ruídos que produzimos no baixo ventre!… “Que diferença me faz”– dizia ele “que o som saia por cima ou por baixo?!”

Que loucura temer que gente indigna propale indignidades sobre nós! E se não há razões para temer os boatos, também não as há para sentir medo por coisas que só receamos em função dos boatos que sobre elas ocorrem. Em que podem boatos injustos lesar um homem de bem? Não deixemos, pois, que a má opinião que se faz da morte nos leve a julgar mal dela. As pessoas que falam mal da morte ainda a não experimentaram, e condenar o que não se conhece é pelo menos ousadia.

Tu sabes, afinal, como muita gente há a quem a morte pode ser útil, quanta gente há a quem ela liberta das aflições, da miséria, das angústias, dos suplícios, do tédio.

Não existe ninguém que possa ter poder sobre nós quando temos a morte sob o nosso poder!

Passar bem!