6 de setembro de 2025

Carta 89 – A sabedoria é o bem supremo do espírito humano, enquanto a filosofia é o amor, o impulso pela sabedoria; aquela aponta o fim que esta alcança.

Por lucianakeiko@gmail.com

Pretendes conhecer uma matéria útil, necessária mesmo, a quem deseja iniciar-se na filosofia: quais são as suas divisões, como se reparte toda essa massa de conhecimentos, pois nos é mais fácil abarcar o todo se o formos abordando por partes.

Seria bom que, tal como a totalidade do aspecto do universo se nos apresenta ante os olhos, assim também a filosofia – ciência com as dimensões do universo! – nos pudesse ser dada na sua totalidade! Se tal fosse o caso, sem dúvida ela suscitaria a admiração de toda a gente, e o abandono de todas as ocupações que hoje nos parecem grandes porque ignoramos a verdadeira grandeza.

Mas como tal hipótese é irrealizável, temos de aceder à filosofia do mesmo modo que acedemos aos segredos da natureza.

espírito do filósofo, contudo, abarca-a em toda a sua amplidão, é capaz de percorrê-la toda com velocidade idêntica àquela que a nossa vista emprega a percorrer o céu; mas àqueles de nós que ainda temos de romper as trevas, àqueles cuja vista se fica pelo que está próximo, incapaz ainda de abraçar a totalidade, é mais fácil expor as matérias uma por uma. Vou, portanto, fazer o que me pedes, e dizer-te, não em que fragmentos, mas em que áreas se divide a filosofia. Dividi-la é, de fato, útil, mas fragmentá-la não, pois não é menos difícil entender o demasiado pequeno que o demasiado grande.

A população distribui-se em tribos; o exército em centúrias. As grandes unidades apercebem-se melhor se considerarmos as suas partes, desde que, como já disse, elas não sejam em excessivo número nem demasiado diminutas. Na realidade, uma divisão em excesso enferma do mesmo defeito que a ausência de divisão; aquilo que se dividiu até ficar em pó é tão confuso como uma massa indistinta.

Para começar, se achas bem, dir-te-ei qual a diferença entre sabedoria e filosofia. A sabedoria é o bem supremo do espírito humano, enquanto a filosofia é o amor, o impulso pela sabedoria; aquela aponta o fim que esta alcança.

A origem do termo “filosofia” é transparente: o próprio nome indica qual é aqui o objeto do amor. A sabedoria tem sido definida por alguns como a ciência das coisas divinas e humanas; para outros, a sabedoria consiste em conhecer o divino e o humano, e as respectivas causas.

Esta adenda parece-me supérflua, porquanto as causas do divino e do humano são, em si, uma parte do divino. Também a filosofia tem sido definida de várias maneiras: uns consideram-na o estudo da virtude, outros o estudo do modo de adquirir ideias corretas; por alguns outros foi ainda definida como a busca de uma razão justa.

Onde há, praticamente, acordo é em considerar que a filosofia e a sabedoria são duas coisas diferentes. De fato, é impossível que a busca de uma finalidade se confunda com essa finalidade. Do mesmo modo que há grande diferença entre a avidez e o dinheiro, pois aquela é sujeito e este objeto de desejo, assim diferem a filosofia e a sabedoria. Esta é o objeto, o prémio que aquela obtém; aquela caminha, esta é o fim do caminho.

Sabedoria corresponde àquilo a que gregos chamam σοφία . Antigamente os romanos usavam esta palavra sohia, tal como hoje se emprega filosofia. As nossas antigas comédias “de toga”(1) comprovar-to-ão, bem como a inscrição gravada no túmulo de Dosseno:

“Detém-te, estrangeiro, e lê de Dosseno a sofia!” (2)

Dentro da nossa escola, se bem que a filosofia seja o estudo da virtude, sendo esta o fim procurado, aquela a forma de o atingir, houve quem pensasse que as duas eram indissociáveis, argumentando que tanto era impossível filosofia sem virtude, como virtude sem filosofia.

A filosofia é o estudo da virtude, mas através da própria virtude; não pode existir virtude sem o estudo dela mesma, e não pode haver estudo da virtude na ausência desta. A situação é, pois, diferente daquela em que se encontra alguém que pretenda atingir um alvo a partir de um lugar distante: o lançador está num local, o alvo em outro. Não é exato que, tal como as estradas que levam às cidades estão fora das cidades, assim as vias que levam à virtude estejam fora desta. À virtude chéga-se através dela mesma, a filosofia e a virtude são duas coisas inseparáveis.

A maioria dos filósofos, e os melhores de entre eles, consideram três partes na filosofia: a ética, a física e a lógica. A primeira forma o carácter, a segunda estuda a natureza, a terceira estuda o valor dos vocábulos, a estrutura do discurso e as formas de argumentação, não vá a falsidade sobrepor-se à verdade (3) pertence à física, e a argumentação é parte integrante da lógica. Mas também se encontram autores que dividem a filosofia num número inferior ou superior de partes.

Alguns peripatéticos introduziram como quarta parte a política, porquanto esta exige uma exercitação particular e se ocupa de uma matéria específica. Outros acrescentaram-lhe uma nova parte a que chamam οικονομική (oikonomikê), ou seja, a ciência da administração do património familiar. Outros ainda reservaram uma parte especial ao estudo dos diversos géneros de existência. Na realidade, qualquer destas matérias tem o seu lugar próprio na ética.

Os epicuristas admitiram somente duas partes na filosofia, a física e a ética; a lógica rejeitaram-na. Em seguida, porém, como se vissem compelidos à necessidade de evitar as ambiguidades e de desmascarar as falsidades escondidas sob a aparência de verdade, acabaram por introduzir uma área a que chamaram “sobre as regras do juízo” ou seja, a lógica com outro nome -, considerando-a como parte introdutória à filosofia natural (4)

Os cirenaicos excluíram simultaneamente a física e a lógica, contentando-se, portanto, com a ética (5) Também eles, contudo, introduziram com outro nome aquilo que tinham excluído. De fato eles dividem a ética em cinco partes: a primeira trata dos fins a evitar e a procurar; a segunda das paixões; a terceira das ações; a quarta das causas; a quinta da argumentação. Ora o estudo das causas pertence à física, e a argumentação é parte integrante da lógica.

Aríston de Quios considerou a física e a lógica não só supérfluas como ainda contraproducentes. A própria moral, a única que conservou, amputou-a daquela parte dedicada aos conselhos de ordem prática, dizendo que isto é tarefa de pedagogo, e não de filósofo, como se o filósofo-sábio não fosse precisamente o pedagogo do género humano (6)

Admitida a tripartição da filosofia, comecemos por ver como, por sua vez, se organiza a ética. A ética entende-se que igualmente deve ser tripartida. A sua primeira parte consiste na análise e atribuição do valor legítimo a cada coisa, na apreciação de como cada coisa deve ser valorizada; esta parte é sobremaneira útil, pois o que há de mais necessário do que saber dar às coisas o justo valor? A segunda parte ocupa-se das tendências. A terceira, enfim, das ações. Antes de mais, em verdade, tu deves ajuizar quanto cada coisa vale, em seguida manifestar para com cada uma tendência controlada e na medida justa; finalmente importa que estejam de acordo a tua tendência e a tua ação, de modo que em todos os teus atos te mostres consequente contigo mesmo.

Se alguma das três partes faltar, todo o sistema fica alterado. De que te serve, afinal, teres construído uma justa e completa escala de valores se fores demasiado impetuoso nas tuas tendências? De que te serve saber moderar as tendências e dominar os desejos se, ao empreenderes uma ação, não souberes decidir o momento, a natureza, o local e o modo oportunos de a levar a cabo? Uma coisa é conhecer o valor justo de cada coisa, outra, a conjugação das oportunidades, outra ainda, dominar os impulsos e empreender uma ação sem precipitações.

A vida só estará de acordo consigo mesma quando a ação não desmentir o impulso e quando o impulso for à medida do valor de cada coisa, mostrando-se mais ou menos intenso conforme essa coisa merecer que a procuremos.

filosofia natural divide-se em duas partes: o estudo dos seres corpóreos e o estudo dos seres incorpóreos. Cada uma destas admite, por assim dizer, diversos graus. No estudo dos corpóreos há que distingui-los: uns são os seres geradores, outros os que são gerados; a estes dá-se o nome de elementos. A parte que trata dos elementos, segundo alguns, é simples; segundo outros, contém o estudo da matéria, o da causa responsável pelo movimento, o dos elementos propriamente ditos.

Resta-me indicar a divisão da filosofia racional. Todo o discurso ou é contínuo ou é dividido por dois interlocutores em sistema de pergunta e resposta. Ao estudo deste segundo tipo costuma chamar-se διαλεκτική (dialektikê), ao do primeiro, ρητορική (rhetorikê). A ρητορική ocupa-se das palavras, das ideias, da estrutura do discurso; a διαλεκτική divide-se em duas partes, os termos e os significados, isto é, os conceitos que queremos exprimir e os vocábulos pelos quais os exprimimos. Ambas as matérias podem ainda sofrer uma divisão em pormenor, mas eu vou pôr aqui um ponto final, limitando-me a

“percorrer os altos cumes”(7) ,

pois de outro modo, se quisesse enumerar todas as partes de cada parte, acabaria por compor um manual exaustivo.

Lucílio, meu amigo carrísmo eu não te desaconselho a leitura destas matérias, desde que extraias imediatamente as respectivas implicações morais. Corrige os teus costumes, reanima o que em ti esteja débil, reforça o que não é assaz firme, domina as tuas teimosias, reprime quanto puderes as tuas ambições, privadas e públicas. E a quem te objetar:

“Mas até quando andarás assim?”

, responde:

Eu é que vos deveria perguntar: até quando laborareis em erro? Quereis que os remédios cessem antes das moléstias? Repetirei tantas mais vezes a minha pergunta, teimosamente, porquanto vós persistis no erro. Quando num corpo insensível um simples toque provoca a dor, é sinal de que o remédio está a atuar. Portanto, mesmo contra a vossa vontade, eu continuarei a repeti-la. Algum dia vos chegarão aos ouvidos estas palavras duras; já que não quereis ouvir a verdade individualmente, então escutai-a em público.

Até onde estendereis os limites das vossas propriedades? Um espaço capaz de conter um povo inteiro será insuficiente para um só dono? Até onde alargareis as vossas terras aráveis, incapazes como sois de limitar o tamanho dos vossos domínios à própria fronteira das províncias? Cursos de água célebres atravessam uma única propriedade privada; grandes rios, outrora fronteiras entre povos ilustres, são agora vossos da foz até à nascente.

Mas isto não chega: é preciso levar os vossos latifúndios até à beira-mar, é preciso que o vosso feitor exerça a sua função para além do Adriático, do mar Jónio, do mar Egeu. É preciso que as ilhas, outrora morada de reis insignes, se contem entre os menos importantes dos vossos bens! Apropriai-vos de tudo quanto quereis, transformai em propriedade o que antes foi um império, tomai nas vossas mãos o que quiserdes,… até que as dívidas vos esmaguem!

Dirijo-me agora a vós, cujo luxo se expande tão dilata do como a ganância dos outros. A vós pergunto: onde há um lago a cuja volta se não guindem as vossas vivendas? Um rio cujas margens não estejam cobertas das vossas construções? Onde quer que brotem fontes de água quente, logo aí nascerão novas mansões de recreio. Em qualquer lugar onde a costa forme uma reentrância, logo aí edificareis molhes; não vos contentando senão com o solo fabricado por vós, entrais pelo mar adentro! Podem por toda a parte resplandecer os vossos palácios, aqui implantados nos montes para gozar o panorama da terra ou do mar, além elevados na planície como se fossem colinas; por mais e maiores que sejam os vossos edifícios, vós nunca passareis de uns seres minúsculos! De que vos servem muitos quartos, se só vos deitais num? Não é verdadeiramente vosso o local onde não estais!

“Passo agora a vós, cuja gula infinita, insaciável, devassa ora o mar ora a terra, perseguindo a presa com anzóis, com armadilhas, com redes de toda a espécie e através das maiores dificuldades. Só a saturação deixa os animais em paz! Que ínfima parte desses manjares, preparados por tantas mãos, a vossa boca embotada de prazeres é capaz de saborear! Que ínfima parte desta fera, caçada com tanto risco, pode provar o senhor, cheio de náuseas, incapaz de digerir! Que ínfima parte destes mariscos vindos de tão longe acaba por ir parar a este estômago insaciável! Não vedes, desgraçados, até que ponto o vosso apetite é maior do que o vosso estômago?”

Diz estas palavras aos outros, para que, ao dizê-las, as escutes também, escreve-as, para que, ao escrevê-las, também as leias, tirando de tudo proveito para a tua formação moral, para a repressão das paixões nocivas. Estuda, em suma, não para saberes mais, mas para saberes melhor!

Passar bem!

(1) A comédia “de roga” (/abula togata) distingue-se da comédia de imitação grega (/abula palliata) apenas por a acção, o local da mesma e as personagens serem romanas, ao contrário do que sucede com a palliata, em que as personagens conservam os nomes gregos e a acção decorre em locais vários do mundo grego

(2) Cf. Ribbeck, Com. Rom. Frg.3, pp. 241 e 265. – Dosseno, o Corcunda, era uma das personagens-tipo da comédia arelana (fabula atellana), remoro antepassado da commedia dell’arte.

(3)V. S. V.F., I, 45-46; II, 37-39, e d. Pohlenz, Die Stoa, I, p. 33 ss.

(4) Epicuro, fr. 242 Usener.

(5) Cyren. frg. 147 B Mannebach.

(6) S. V.F., I, 357. – Cf. infra a carta 94, em que Séneca discute amplamente estas posições de Aríston.

(7) Vergílio, Aen., 1, 342.