5 de setembro de 2025

Carta 88 – O único estudo verdadeiramente liberal é aquele que torna o homem livre

Por lucianakeiko@gmail.com

Queres saber o que eu penso das “artes liberais”: não admiro, nem incluo entre os bens autênticos um estudo que tenha por fim o lucro. São conhecimentos subsidiários, úteis apenas enquanto servem de preparação ao intelecto, mas desde que não sejam a sua única ocupação.

Somente devemos deter-nos na sua prática enquanto o nosso espírito não for capaz de tarefa mais alta; são somente exercícios, não obras a sério. Compreendes por que razão se lhes chama “estudos liberais”: porque são dignos de um homem livre. No entanto, o único estudo verdadeiramente liberal é aquele que torna o homem livre; e esse é o estudo – elevado, enérgico, magnânimo – da sabedoria; os outros são brincadeira de crianças !

Ou julgas tu que há algo de bom em matérias que vês serem professadas pelos mais indignos e prejudiciais dos mestres? Tais matérias devemos tê-las estudado uma vez, e não continuar a estudá-las.

Alguns inquiriram se os estudos liberais são susceptíveis de formar um homem de bem: ora não é esse o seu propósito, nem pretendem sequer arrogar-se tal capacidade. A gramática (1) ocupa-se do estudo da linguagem; se pretender espraiar-se mais longe ocupar-se-á da explicação de textos, e se chegar aos seus extremos limites abordará a poética.

Em que é que estes assuntos aplanam a via para a virtude? A divisão das sílabas, a observação dos significados, o conhecimento dos temas mitológicos, as leis e variações dos versos – em que é que isto contribui para nos livrar do medo, nos libertar do desejo, nos refrear as paixões?

Passemos à geometria e à música: nelas nada encontrarás que nos impeça de sentir receios ou desejos. E quem não adquirir estes conhecimentos essenciais não ganha nada em adquirir outros!

Vejamos(2) se os mestres das artes liberais ensinam ou não a virtude; se não a ensinam, não podem transmiti-la; se a ensinam, então são filósofos. Queres verificar até que ponto é verdade que eles não ensinam a virtude? Repara como a especialidade de cada um difere da de todos os outros; ora, se todos professassem a mesma doutrina haveria semelhança entre eles.

A menos que consigam convencer-te de que Homero foi filósofo, quando os próprios argumentos que usam provam o contrário. Às vezes fazem dele um estóico, que apenas admite a virtude e evita os prazeres, incapaz de se desviar da conduta moral mesmo a troco da imortalidade;(3) outras vezes um epicurista que aprecia a situação pacífica da cidade e passa a vida entre banquetes e recitais; (4) outras, um peripatético, que considera três categorias de bens;(5) outras ainda, um académico, afirmando que tudo quanto existe é incerto(6)

É evidente que em Homero não existe nenhuma destas teorias simplesmente porque as há todas, e todas diferem umas das outras. Admitamos que Homero foi filósofo: nessa altura, é porque foi um sábio ainda antes de saber o que fosse a poesia; estudemos então as matérias que fizeram de Homero um sábio.

Pôr-me a indagar qual dos dois era mais velho, se Homero, se Hesíodo, importa-me tanto como saber por que motivo Hécuba, que de resto era mais nova do que Helena, suportava tão mal o peso da idade. Pois quê? Havemos de considerar matéria de peso saber quantos anos tinham Pátroclo ou Aquiles? Investigar por onde andou Ulisses errante, em vez de procurar não andar errantes nós?(7)

Não há vagar para discretear se Ulisses passou tormentas entre a Sicília e a Itália, ou se ultrapassou os limites do mundo conhecido (já que uma errança tão longa mal caberia em tão curto espaço): é quotidianamente que as tempestades da alma nos assaltam, que a perversidade nos arrasta por todos os males por que passou Ulisses.

Não faltam coisas belas que nos atraiam perigosamente os olhos, não faltam inimigos. De um lado há monstros cruéis, ávidos de sangue humano; de outro, insidiosas lisonjas aos nossos ouvidos; de outro, naufrágios e calamidades de toda a espécie. Ensina-me a amar a pátria, a esposa, o pai; ensina-me como, mesmo após um naufrágio, eu poderei singrar na via da honestidade.

Para quê indagar se Penélope foi casta ou não, se com as suas palavras conseguiu enganar os contemporâneos? . Ou se, ainda antes de ter a certeza, ela já suspeitava de que o homem que estava à sua frente era UlissesEnsina-me, sim, o que é a castidade, até que ponto ela é um bem, e se está dependente do corpo ou do espírito.

Passemos ao músico. Tu ensinas-me de que modo se harmonizam os sons agudos e graves, de que modo produzem um acorde os diferentes sons produzidos pelas cordas: indica-me antes o modo de ter o espírito em harmonia consigo mesmo, de ter consonância nas minhas ideias. Indicas-me quais são os modos plangentes: ensina-me antes a não soltar palavras plangentes mesmo na adversidade.

O geômetra ensina-me a medir os latifúndios, em vez de me ensinar a medir quanto basta para um homem; ensina-me a contar, treina-me no manejo dos números ao serviço da avareza, em vez de me ensinar que tais cálculos nada interessam à minha formação, que um homem cujos bens deixam os contabilistas fatigados não é mais feliz por isso; melhor, como são supérfluos os bens cujo dono seria o mais infeliz dos homens se fosse coagido a contabilizar pessoalmente tudo quanto possui.

Que me importa saber como lotear um terreno se não sei dividi-lo com o meu irmão? Que me importa medir com toda a minúcia as dimensões de uma leira, e ver num relance se alguma fracção ficou sem ser marcada, se a insolência de um vizinho que me subtrai algum torrão me deixar em ânsias?

Ensinam-me a não perder qualquer fração da minha propriedade:ora o que eu quero aprender é a ficar sem ela inteira e manter o rosto alegre. Dir-se-á: “Expulsam-me das terras do meu pai, do meu avô.” Sim? E antes do teu avô quem era o dono dessas terras? És capaz de dizer, já não peço o nome do antigo dono, mas ao menos de que nação era ele?

Ocupaste esse terreno, não como proprietário, mas como colono. E colono em proveito de quem? Se as coisas te correrem bem, do teu herdeiro! Os juristas afirmam que não é possível tomar em usucapião a propriedade pública: logo, aquilo que possuis, que dizes ser teu, é público, mais pertence ao género humano.

Que notável técnica: sabes medir círculos, reduzir à forma de um quadrado qualquer polígono que te apresentem, sabes determinar as distâncias entre os astros, não há nada a que não se apliquem os teus instrumentos de medida: pois se és tão bom técnico, mede o espírito humano, diz até que ponto ele é grande, ou é pequeno. Sabes o que é uma linha reta: de que te serve isso se não souberes andar na vida com retidão?

Passemos agora ao especialista no conhecimento dos astros, aquele que sabe

“onde vai ocultar-se o gélido astro de Saturno, as paragens celestes por onde erra ígneo deus de Cilene!” (8)

Que me adianta este saber? Ficar preocupado cada vez que Saturno e Marte estão em oposição, ou Mercúrio entra no ocaso com Saturno ainda acima do horizonte? Não seria melhor saber que, onde quer que estejam, os astros são propícios e imutáveis? Move-os a ordem constante do destino, o seu curso inevitável; eles seguem a trajetória que lhes foi fixada, e são causa ou indício de todos os acontecimentos.

Se são causa de tudo quanto acontece, em que nos beneficia o conhecimento de algo que é imutável? Se são indício, que nos adianta prever aquilo a que não podemos escapar? Quer previamente saibas, quer não, as coisas acontecem. (9)

“Se reparares no curso do Sol e na marcha ordenada das estrelas, nunca o dia seguinte te enganará, nem te iludirá a aparência falsa de uma noite serena.” (11)

Tomei todas as providências para me defender de qualquer aparência falsa.

“Então o dia seguinte nunca me enganará? O engano provém de suceder o que se não espera.”

Eu por mim ignoro o que vai suceder; sei, todavia, tudo o que pode acontecer. E disto não peço descontos: espero tudo quanto venha. Se algo me for poupado, aceitarei o benefício. Engana-me o dia seguinte se me não for fatal; não, nem assim me engana. Tal como sei que tudo pode suceder, também sei que não sucede tudo ao mesmo tempo.

Por isso, aguardo que suceda o melhor, embora me prepare para o pior.

Neste ponto hás-de permitir-me que não siga a tradição: não consigo admitir no número das “liberais” a arte do pintor, do escultor, do marmorista ou de outros artesãos de peças de luxo. Também elimino do número das artes liberais a prática da luta, técnica toda baseada no óleo e no pó, a menos que deva incluir nelas a arte dos perfumes, a culinária e todas as demais que existem para servir os nossos prazeres!

O que há de liberal, pergunto eu, nestes indivíduos que vomitam em seco, que quanto mais engordam o corpo mais deixam o espírito macilento e letárgico? Podemos considerar alguma destas artes como estudo liberal para os nossos jovens, os jovens cuja formação os nossos maiores asseguravam fazendo-os brandir lanças, atirar chuços, dominar cavalos, lidar com armas? ‘Antigamente não ensinavam aos filhos nada que estes pudessem aprender deitados!

Diga-se que nem um nem outro tipo de educação ensina e desenvolve a virtude. Que importa, de fato, saber dominar um cavalo e refrear a sua corrida, se nos deixarmos levar pelas mais desenfreadas paixões? Que interessa ser capaz de vencer na luta ou no pugilismo muitos adversários, se nos deixarmos vencer pela cólera?

“Nesse caso, os estudos liberais não nos são de qualquer utilidade?”

Têm muita utilidade em outros aspectos, nenhuma no que concerne à virtude. Na realidade, também as artes “manuais”, que são reconhecidamente inferiores, têm grande importância no que toca aos acessórios da vida, mas nada têm a ver com a virtude.

“Então, porque instruímos os nossos filhos através dos estudos liberais?”

Não é porque estes lhes possam transmitir a virtude, mas porque preparam o espírito para recebê-la. Do mesmo modo que a “cartilha”, como lhe chamavam os antigos, pela qual as crianças aprendem as letras do alfabeto, não lhes ensina as artes liberais, mas torna-as aptas a poderem aprendê-las mais tarde, também as artes liberais não guiam o espírito até à virtude, mas facilitam-lhe o trajeto.

Posidónio considera que há quatro tipos de artes: as vulgares e inferiores, as recreativas, as educativas e as liberais.

São vulgares as dos artesãos, simplesmente manuais, e dirigidas apenas aos objetos acessórios que usamos; nelas não há qualquer aproximação com a formação intelectual e moral. As recreativas são as que têm por objeto o prazer dos olhos e dos ouvidos: entre elas incluirás, por exemplo, a arte dos maquinistas de teatro inventores de cenários que surgem sem se saber como, de estrados que se elevam no ar silenciosamente, ou ainda de outras invenções inesperadas: elementos antes unidos que se afastam, outros antes afastados que parecem unir-se por si mesmos, outros que se erguem no ar e lentamente vão descendo. Tudo isto atrai a atenção dos ignorantes, prontos a admirar todos os efeitos inesperados de que desconhecem as causas.

São educativas aquelas artes, já com algo de comum com as liberais, que os gregos chamam “enciclopédicas’’, e os romanos igualmente chamam “liberais”.(11)

Mas verdadeiramente liberais, ou com mais propriedade, verdadeiramente “livres”, são aquelas cujo objetivo é a virtude.

Uma objeção possível:

“Tal como a filosofia tem uma parte natural, outra moral e uma terceira racional,(12) assim também o conjunto das artes liberais exige lhe seja dado um lugar dentro da filosofia. Quando se abordam as questões naturais, é imprescindível o contributo da geometria; logo, esta é a parte da ciência a que dá o seu contributo.”

Há muitas coisas que nos prestam o seu contributo sem por isso serem parte de nós mesmos; digo mais, se fossem parte não dariam contributo.

alimentação é um contributo, mas não uma parte do nosso corpo. A geometria presta-nos um determinado serviço, e por isso a filosofia necessita dela, tal como ela necessita de um técnico, mas nem é parte da geometria nem a geometria é parte da filosofia.

Além disso, cada uma tem o seu domínio próprio: o sábio investiga e descobre as causas dos fenómenos naturais, o geómetra procura e calcula os números e as medidas. O sábio descobre as leis que regem os corpos celestes, qual o seu alcance e a sua natureza: estudar o curso da respectiva órbita, as inclinações que apresentam e devido às quais descendem e ascendem, e por vezes parecem ficar parados (embora ‘ os corpos celestes nunca possam parar), essa é a tarefa do matemático.

O sábio descobre a causa pela qual um espelho reflecte uma imagem: o geómetra saberá dizer-te que distância deve existir entre o corpo e a imagem, e qual o tipo de espelho que produz este ou aquele tipo de imagem.

O filósofo demonstrar-te-á que o Sol é grande, o matemático, baseado na prática e na experiência, dir-te-á quanto ele mede. Mas como base o matemático necessita de alguns postulados fundamentais, pois nenhuma arte existe de pleno direito se os seus fundamentos forem deficientes.

A filosofia não depende de nada, constrói sozinha todo o seu edifício. A matemática, por assim dizer, é usufrutuária, edifica em terreno alheio; recebe os elementos de base cuja utilização lhe permite ir mais além. Se através dela fosse possível atingir a verdade, se ela fosse capaz de abarcar a natureza do universo, eu diria que ela era de grande utilidade para o espírito humano, o qual se eleva pelo estudo do mundo celeste e como que recebe em si algo do céu.

Um único caminho conduz a alma humana à plenitude: a ciência imutável do bem e do mal; nenhuma outra arte existe dedicada à investigação dos bens e dos males.

Passemos em revista cada uma das virtudes.

A coragem consiste em desprezar as causas de terror; tudo o que inspira medo e subjuga a nossa liberdade, tudo ela despreza, desafia, derruba. Acaso as artes liberais nos ajudam a conseguir isto?

A lealdade é o mais sagrado bem do coração humano, nenhuma imposição a pode obrigar a trair, nenhuma esperança de lucro a corrompe; “Queima, tortura, mata”! diz ela – “Não trairei; quanto mais a dor me tentar arrancar os segredos, mais fundo eu os esconderei!” Acaso as artes liberais são capazes de provocar uma tal coragem?

A temperança refreia os prazeres, odeia e afasta uns, modera outros e redu-los a limites justos, nunca busca o prazer pelo prazer; sabe que a medida justa para aquilo que desejamos não é o nosso apetite, mas apenas a quantidade de que é lícito desfrutar.

A simpatia humana impede a soberba e a agressividade para com o próximo; mostra-se amável e afável com todos em palavras, atos e sentimentos; não considera como alheio o mal dos outros, e dos seus bens próprios nenhum estima mais do que aqueles que podem ser Úteis a outrem. Acaso as artes liberais podem formar em nós um tal carácter?

Não, tal como nos não podem ensinar a simplicidade, a modéstia, a moderação, nem sequer a frugalidade ou a parcimónia, nem sequer a clemência – que nos ensina a poupar a vida alheia tanto como a nossa própria e que sabe que um homem não deve desperdiçar a vida de outro homem.

Poder-se-á objetar:

“Vós dizeis que sem as artes liberais é impossível atingir a virtude; por que razão dizeis agora que elas em nada contribuem para a virtude?”

Pela mesma razão por que sem comida não se atinge a virtude, e nem por isso a comida tem qualquer coisa a ver com a virtude; também um monte de tábuas não faz um navio, embora não possa haver um navio sem tábuas.

Não há razão para considerar contributo qualquer coisa indispensável à existência de outra coisa. Ainda te digo mais : é possível chegar à sabedoria sem as artes liberais, pois embora a virtude se aprenda não é através delas que se aprende.

Que razão me impede de pensar que pode vir a ser sábio um homem que desconhece o alfabeto, uma vez que a sabedoria não reside no alfabeto ? A sabedoria cinge-se às ações, não às palavras; não sei mesmo se não será mais segura a memória que dispensa qualquer auxílio exterior.

A sabedoria é algo de grande e de vasto; exige para si todo o espaço; temos de nos debruçar sobre o divino e o humano, sobre o passado e o futuro, sobre o transitório e o eterno, sobre o tempo. E vê quantas questões apenas este último suscita: primeiro, se ele em si mesmo é alguma coisa; depois, se antes de haver tempo, alguma coisa existiu sem tempo; se apareceu quando começou o universo, ou se, porque ainda antes do universo já existiu algo, o tempo também então existiu.

Apenas sobre a alma, como são inúmeros os problemas: donde provém, de que natureza é, quando começa a existir, quanto tempo dura, se transita de um lugar a outro, passando a residir alternadamente inserida em diversas formas animais, ou se apenas uma vez vive na escravidão do corpo e depois, liberta, vai vagueando pelo todo; se é ou não um corpo; o que é que faz quando deixar de agir por nosso intermédio, de que modo usufrui da sua liberdade uma vez saída deste cárcere; se se esquece daquilo por que passou e apenas começa a conhecer-se desde que, arrancada ao corpo, se eleva nos espaços.

Qualquer área que abordes dentro do estudo do divino e do humano, aí encontrarás enorme cópia de matérias a investigar e a aprender até à exaustão. Para teres campo livre onde alojar todos estes assuntos tão numerosos e tão vastos, deverás libertar o espírito de tudo quanto é supérfluo. A virtude não surgirá em espaço tão apertado; grande matéria exige espaço sem limite. Manda tudo o mais embora, consagra-lhe todo o teu ânimo.

“No entanto, é interessante possuir noções sobre as diversas artes.”

Seja, mas retenhamos delas apenas o indispensável. Então, tu consideras censurável quem compra coisas de uso supérfluo, quem faz em casa ostentação de objetos de luxo, e não censuras quem se enreda num aparato de conhecimentos supérfluos?

Querer saber mais do que o necessário é uma forma de intemperança. Que dizer desta paixão pelas artes liberais que torna as pessoas pedantes, palavrosas, inoportunas, amigas de se ouvir, incapazes de aprender o indispensável porque andaram estudando coisas inúteis?

O gramático Dídimo (13) escreveu quatro mil livros: eu já teria pena dele se se tivesse limitado a ler tanta bagatela! Nuns livros investiga qual a Pátria de Homero, noutros qual foi a verdadeira mãe de Eneias; noutros se Anacreonte se entregou mais à vida de prazer ou à bebida; noutros se Safo foi prostituta; em suma, coisas que, se as soubéssemos, deveríamos esquecer. E vem-me dizer agora que não é longa a vida! …

Mesmo pelo que toca aos nossos estóicos, poderei indicar-te muita coisa que deveria ser cortada. Uma saudação como esta:

“Oh! Que homem erudito!”

, implica um enorme gasto de tempo e uma enorme maçadoria para os ouvidos alheios. Contentemo-nos com este mais modesto título:

“Oh! Que homem de bem!”

Pois então? É preciso ir revolver a história de todos os povos e investigar quem foi o primeiro homem a escrever poemas? À falta de arquivos, terei de pôr-me a conjecturar quanto tempo decorreu entre Orfeu e Homero? Hei-de aprender os sinais com que Aristarco(14) expurgava os poemas os outros, e gastar a minha vida ocupado em sílabas? Ou hei-de permanecer fixo no pó da geometria?(15)

Já me teria passado da lembrança aquele salutar preceito:

“Aproveita bem o tempo ?”

Tenho de saber tudo isso? O que posso ignorar então? O gramático Ápion (16), que no tempo de Gaio César percorreu toda a Grécia e foi adoptada por todas as cidades em Honra de Homero, dizia que o Poeta, após ter terminado toda a sua obra, a Odisseia e a Ilíada, tinha acrescentado aos poemas um prólogo no qual narrava toda a guerra de Tróia. E apresentava como prova o fato de Homero ter colocado no primeiro verso duas letras pelas quais indicava subtilmente o número total dos seus cantos (17)

Ora aqui está o tipo de coisas que deve saber quem quiser saber muito ! Já te dispuseste a pensar quanto tempo te é roubado pelos problemas de saúde, pelos teus deveres oficiais, pelos teus deveres particulares, pelos teus deveres quotidianos, pelo sono?

Mede a duração da tua vida: não cabe lá muita coisa. Eu estou falando dos estudos liberais; mas mesmo os filósofos, quanta superfluidade, quanta coisa inútil neles encontramos! Também eles desceram até à divisão das sílabas, às propriedades das conjunções e preposições, rivalizaram com os gramáticos, rivalizaram com os geômetras; e quanto naquelas artes era supérfluo, transferiram-no para a filosofia. Daqui proveio que dessem mais aplicação ao falar do que ao viver.

Ouve este exemplo do mal que pode fazer a subtileza excessiva, e de como pode ser nociva à verdade. Protágoras afirma que em toda a questão se pode argumentar validamente pró e contra, a começar pela questão de saber se toda a questão pode ser argumentada pró e contra.

Nausífanes afirma que de tudo quanto parece existir, tão provável é a existência como a não existênciaParménides diz que nada existe no universo (18) de tudo quanto parece ex1st1r. Zenão de Eleia resolveu o problema de uma vez por todas: para ele nada existe. Sobre isto têm opinião quase idêntica os pirrónicos, os megáricos, os erétricos e os académicos, os quais introduziram uma nova ciência: a ciência de não saber nada!

Podes atirar tudo isto para o meio do armazém de superfluidades que são os estudos liberais: estes oferecem-me uma ciência que não me ajuda em nada, aqueles roubam-me a esperança de toda e qualquer ciência; apesar de tudo sempre é melhor saber uma coisa supérflua do que não saber nada! Os primeiros não me trazem qualquer luz que ilumine o caminho para a verdade, mas os outros até me arrancam os olhos. Se dou ouvidos a Protágoras, não há na natureza nada que não seja incerto; se escuto Nausífanes, só há uma coisa certa: que nada é certo; se acredito em Parménides , só existe o uno; se em Zenão, nem sequer o uno existe.

Então o que somos nós? O que é isto que nos rodeia, nos cria, nos sustenta? Toda a natureza é uma sombra, ou vazia ou ilusória. Nem poderei dizer quais são os que mais me irritam, se aqueles que nos não permitem saber nada, se os que nem seqúer nos deixam saber que nada sabemos!

Passar bem!

(1) O ensino da gramática estava a cargo do “gramático”, o qual ministrava aos jovens o que poderíamos chamar o primeiro grau de ensino, o ensino primário. Em que consistia esse ensino, quais as matérias e a metodologia utilizadas pode ver-se em Quintiliano, I, 9.

(2) Este vejamos corresponde à lição uidendum oferecida por alguns manuscritos inferiores. Nos principais manuscritos o início deste parágrafo apresenta uma lacuna.

(3) Alusão ao célebre episódio (Odisseia, V, 206 ss.) em que Calipso oferece a Ulisses a imortalidade, que o herói rejeita.

(4) A ilha de Calipso, por exemplo, é um verdadeiro “jardim de Epicuro” (Odisseia, V, 63 ss.); também epicurista se pode considerar a vida no palácio de Alcínoo (ibid., IX, 5 ss.)

(5) Possível alusão à “tripartição dos bens” mencionada em Ilíada, XXIV, 376-7: a beleza física ( bens do corpo), agudeza do espírito ( bens do espírito), a prosperidade ( bens externos), cf L. Robin, La morale antique, Paris, 1963, pp. 43-49.

(6) Cf. a oposição entre o saber das Musas e a ignorância dos homens em Ilíada, li, 485-6.

(7) Entre os “profundos conhecimentos” que o gramático devia ser capaz de ensinar aos seus discípulos, Juvenal enumera o nome da ama de Anquises, a terra onde nasceu a madrasta de Anquémolo, a idade de Acestes ou o número de ânforas de vinho oferecidas pelos Sículos aos Troianos (Sat., VII, 233-6) !

(8) Vergílio, Georg., I, 336-7; o “ígneo deus de Cilene” é o planeta Mercúrio.

(9) No universo predeterminado do estoicismo a astrologia era um dos modos possíveis de os deuses comunicarem com os homens, embora já mesmo na Stoa antiga nem todos aceitassem a validade dos horóscopos (por ex. S. V.F.., III, Diógenes de Babilónia, fr. 36). Panécio, em vez da influência dos astros, prefere sublinhar o papel da influência das condições geográficas (v. Cícero, de diuinatione, II, 44, 93 ss.), mas Posidónio retoma a aceitação da astrologia. A posição de Séneca pode não parecer inteiramente clara: aceita o pré-determinismo do fatum, aceita a tese da providência ( προνοια ) mas ao referir-se, por exemplo, aos cometas diz que eles, ao contrário da superstição reinante, se são sinal de alguma coisa são-no apenas no mesmo sentido em que os equinócios “anunciam” a aproximação do Verão ou do Inverno (N. Q., VII, 28, l); logo a seguir alude em tom depreciativo aos horóscopos dos “Caldeus” (ibid.), e em todo o livro (i. e., N. Q., VII) trata dos cometas com rigoroso espírito científico. Cf., no entanto, N. Q., II, 32, 7 em que reconhece a influência dos astros, embora afirme a dificuldade de determiná-la, ou N. Q., II, 38, 3, em que refere a contradição (apenas aparente) entre determinismo e livre-arbítrio. Uma coisa, pelo menos, é transparente: a distinção nítida entre a ciência dos astros e a superstição vulgar, bem como a utilização política de tal superstição (N. Q. II, 42, 3).

(10) Vergílio, Georg., I, 424-6. – No texto vergiliano, porém, em vez de stellas … sequentes, lição citada por Séneca, lê-se !unas … sequentes, lit. “as sucessivas luas”, ou seja, “a sucessão das fases da lua”. A substituição de lunas por stellas pode dever-se a um lapso de Séneca (que citava de memória) ou ao desejo de generalizar o valor do argumento, tornando-o extensível a todos os corpos celestes.

(11) Ou seja, aquelas artes a que Séneca se referiu no início da carta: gramática, música, geo1netria, astronomia.

(12) “Filosofia natural”, “filosofia moral” e “filosofia racional”: respectivamente a fisíca, a ética e a lógica segundo a tripartição aceite pelo estoicismo, cf. infra carta 89, 9 ss.

(13) Gramático alexandrino do séc. 1 a. C., autor, entre outras obras, de um compendioso comentário dos poemas homéricos.

(14) O mais célebre dos gramáticos alexandrinos (séc. II a. C.), autor de edições justamente famosas de Homero, Hesíodo e outros poetas. Em alguns escólios dos manuscritos homéricos conservam-se várias das suas observações críticas ao texto dos poemas.

(15) Os geómetras resolviam os seus problemas desenhando numa superfície coberta de areia as figuras que estudavam

(16) Retor do tempo de Tibério, cf. Plínio 30, 18.

(17) As duas primeiras !erras do primeiro verso da Ilíada são efecrivamenre, MH. Se lhes atribuirmos o valor numérico habitual do sistema grego de numeração obremos μυ = 48, ou seja o número roral dos canros da Ilíada mais o número roral de canros da Odisseia.

(18) Texto duvidoso; nenhuma das diversas tentativas de solução se apresenra inteiramente convincente.