Carta 87 – É diferente a condição das coisas vantajosas e a dos bens. Uma coisa é vantajosa quando tem mais utilidade do que inconvenientes; um bem é um valor absoluto totalmente incapaz de ocasionar o mal.
Naufraguei antes mesmo de embarcar! Não vou dizer-te como isto sucedeu, mas não fiques pensando que se trata de mais algum paradoxo estóico. Quando quiseres, aliás, – e mesmo que o não queiras! – , hei-de provar-te que nenhum destes paradoxos é falso nem tão estranho como parece à primeira vista.
Entretanto este meu passeio ensinou-me como nos agarramos a tantas superfluidades de que, racionalmente, poderíamos prescindir, – tantas coisas de que nem sentiríamos a falta se delas fôssemos privados pela força das circunstâncias.
Com um reduzido acompanhamento de escravos (apenas os que cabiam num só carro), sem outros apetrechos além do que trazíamos no corpo, eu e o meu amigo Máximo estamos já a gozar o segundo dia de uma tranquila existência. Ponho um colchão por terra e deito-me no colchão; de dois capotes que trago, um serve-me de lençol, o outro de cobertor.
As refeições reduzem-se ao imprescindível, e são preparadas sem requintes culinários (1) para todo o lado levo figos secos, a toda a hora tenho comigo o bloco de apontamentos. Se há pão, os figos servem-me de conduto, se não há, ocupam o lugar do pão. Fazem para mim de cada dia um dia de Ano Novo, que eu procuro tornar propício e feliz com bons pensamentos e grandeza de alma.
E esta nunca é maior do que quando renunciamos ao supérfluo e conseguimos a paz pela supressão do medo, bem como a riqueza pela supressão dos desejos.
O carro que me transporta é uma carroça do campo; as mulas só dão sinal de vida porque sempre lá vão caminhando; o carroceiro vai descalço, mas não por causa do calor. Dificilmente consigo de mim próprio a confissão aberta de que uma tal carroça me pertence. Ainda me não libertei por completo desta indigna vergonha de agir bem: sempre que vem ao nosso encontro algum grupo mais aparatoso, coro, embora contrariado. Isto só prova como aquele modo de agir que eu considero digno e louvável ainda se não fixou de modo definitivo e inabalável no meu espírito(2)
Ora, quem se envergonha de uma modesta carroça envaidecer-se-á de uma carruagem de luxo. Portanto, até agora ainda pouco progredi: ainda não ouso praticar a frugalidade em público, ainda me preocupa a opinião dos outros viajantes!
O que eu deveria ter feito era clamar essa oposição à mentalidade generalizada:
“Como sois loucos e insensatos, perdidos de admiração pelas futilidades e incapazes de avaliar alguém por si mesmo! Quando se trata de dinheiro, todos vós, como exímios contabilistas, avaliais com rigor a situação do homem a quem ides fazer um empréstimo ou prestar um favor (já que os favores são tratados como meros investimentos): “Ele tem vastas propriedades, mas está cheio de dívidas; possui uma bela casa, mas comprada com dinheiro emprestado; ninguém exibe um mais bonito grupo de escravos, mas é incapaz de satisfazer os seus compromissos; se ele pagasse aos credores, ficava sem nada.”
O mesmo rigor de apreciação deveríeis usar em relação a tudo o mais, avaliando com exatidão o que cada homem tem mesmo de seu.
Pensas que este homem é rico por mesmo em viagem se fazer servir em baixela de ouro, por ter campos de lavoura em todas as províncias, por folhear um enorme livro de contas, por possuir nos arredores de Roma terrenos com tal extensão que, embora fossem charnecas da Apúlia, despertariam a inveja! Pois apesar de tudo isso, ele é pobre. E porquê? Porque tem dívidas. “Muitas”? – perguntas. – Deve tudo! A menos que penses haver diferença entre pedir um empréstimo a outro homem ou solicitá-lo à fortuna. Para que servem essas parelhas de gordas mulas, todas da mesma cor? Para quê esses carros com baixos relevos em metal?
“Corceis recobertos de púrpura, e coloridos panejamentos: são em ouro os arreios que lhes pendem sobre o peito, e, de ouro cobertos, é de ouro fulvo ainda o freio que mordem!”(3)
Todos estes adornos em nada tornam melhor nem o proprietário nem a mula! Marco Catão, o Censor, cujo nascimento foi tão benéfico à república romana como o de Cipião (pois enquanto um fez a guerra aos inimigos externos, o outro combateu a corrupção moral), deslocava-se montado num macho carregado de alforges onde transportava os objetos de que necessitava.
Bem gostaria eu que se cruzasse com ele algum destes filhos-família, ricaços de exibição, precedidos de escravos batedores, de escolta númida, levantando à sua passagem uma nuvem de poeira! O nosso jovem, sem dúvida, teria uma aparência mais requintada e imponente, do que a de Catão – este nosso jovem que, no meio de todo o seu vistoso aparato, se debate sem saber se se há-de alistar como gladiador ou caçador de feras. (4)
Glorioso século aquele em que um general, um triunfador, um censor e, mais relevante ainda, um Catão, se contentava com um só cavalo, melhor dizendo, meio cavalo, pois os sacos de bagagens pendentes a um lado e a outro ocupavam parte do animal. Quem não preferiria aos rechonchudos póneis, aos corredores asturianos, aos cavalinhos trotadores de hoje em dia aquele solitário cavalo tratado por Catão em pessoa?!
Estou vendo que esta matéria se não esgota caso eu não decida pôr-lhe ponto final. Não vou, portanto, dizer mais nada sobre o assunto; mas é uma verdade que quem primeiro chamou às bagagens ,“empecilhos” (5) adivinhou perfeitamente os hábitos hoje correntes!
De seguida, proporei à tua consideração uns quantos silogismos da nossa escola, que demonstram como a virtude é condição necessária e suficiente para vivermos felizes, conforme nós sustentamos.
“Todo o bem torna o homem bom (por exemplo, aquilo que a música tem de bom faz de um homem um músico); os benefícios do acaso não tornam um homem bom, logo não são bens.”
Os peripatéticos respondem a este argumento afirmando a falsidade da nossa primeira premissa.
“Uma coisa boa”
dizem eles –
“não torna necessariamente os homens bons. Na música há coisas boas – uma flauta, um instrumento de corda, qualquer outro aparelho adequado à produção do canto – , mas nenhum de tais instrumentos faz de um homem um músico.”
A isto responderemos que não entenderam a nossa ideia ao falarmos do “que a música tem de bom.” Nós não falamos do equipamento do músico, mas sim do que faz dele um músico; o nosso opositor fala dos acessórios da arte, não da arte em si mesma.
Por isso mesmo, o bem próprio da arte musical, esse é que faz de um homem um músico. Vou tentar dizer o mesmo de uma forma mais clara. Quando dizemos “o bem próprio da arte musical”, pode entender-se o termo bem em dois sentidos: por um lado, o que faz de um músico um executante, por outro, o que faz dele um artista.
Para efeitos de execução são necessárias flautas, cordas, quaisquer outros instrumentos; mas em termos de arte estes são irrelevantes. Mesmo sem instrumentos o músico continuará artista; poderá, quando muito, ser impedido de praticar a sua arte. Esta duplicidade não se verifica no homem: o bem do homem e o bem da vida são um e o mesmo.
“Tudo quanto está ao alcance do mais desprezível e infame dos homens não deve ser considerado um bem; ora a riqueza está ao alcance de um proxeneta ou de um lanista(6); logo a riqueza não é um bem.”
“A vossa proposição é falsa.”
dizem os nossos antagonistas.
“Nas atividades profissionais de gramático, de médico ou de piloto vemos os respectivos bens serem acessíveis a homens extremamente humildes.”
Só que tais profissões não têm por finalidade a grandeza de alma, não implicam elevação moral, não são hostis aos favores do acaso.
Em contrapartida, a virtude engrandece o homem e eleva-o acima das preferências do vulgo, sem desejar nem temer em excesso o que a opinião corrente toma como bem ou como mal.
Quelídon, um dos eunucos que rodeavam Cleópatra, chegou a ser dono de um vasto património. Ainda recentemente, Natal, homem de língua tão viperina como debochada, – diz-se que usava a boca para saborear os corrimentos das mulheres! – , foi herdeiro de muitos ricaços, e deixou por sua vez numerosos herdeiros. Que dizer deste caso? Foi o dinheiro que fez dele um debochado, ou ele que conspurcou o dinheiro? Nas mãos de certa gente, o dinheiro até parece um denário caído num cano de esgoto.
A virtude está acima destas contingências; é avaliada pelo seu valor intrínseco; e dos favores da sorte, acessíveis indiscriminadamente a qualquer, nenhum é a seus olhos um bem.
A medicina ou a pilotagem não proíbem aos seus praticantes a admiração por tais benesses; mesmo sem se ser homem de bem pode-se ser médico, piloto, gramático, ou porque não?, cozinheiro! Um homem a quem é dado possuir um bem invulgar não pode considerar-se um homem vulgar. Cada um é tal qual os bens que possui.
Um cofre vale pelo que tem lá dentro, melhor dizendo, o cofre é um mero acessório do conteúdo. Imaginemos um saco cheio de dinheiro: que outro valor lhe atribuimos além do valor das moedas nele contidas? O mesmo se verifica com os donos de grandes patrimónios: não passam de simples acessórios, de suplementos.
A razão de o sábio ser grande está na grande alma que possui. Por conseguinte, é verdade que tudo quanto está ao alcance do mais desprezível dos homens não deve ser considerado um bem.
Nunca direi, por exemplo, que a insensibilidade é um bem: quer a cigarra quer o pulgão são dotados dela! Nem sequer chamarei um bem ao repouso ou à ausência de desgostos: há bicho mais repousado do que um verme? Queres saber o que caracteriza o sábio? O mesmo que caracteriza a divindade. No sábio há que reconhecer algo de divino, de celeste, de superior.
O bem não está à mão de todos nem admite que qualquer um se arrogue a sua posse. Observa como
“cada região produz certas coisas e é hostil a outras: aqui dão-se melhor as searas, acolá as videiras, além crescem as árvores de fruto ou as ervas espontâneas. Não vês como o Tmolo nos dá o odor do açafrio, a Índia o marfim, os moles Sabeus o incenso, os Cálibes semi-nus o ferro?” (7)
Todas estas produções foram disseminadas por várias regiões de modo a tornar imprescindível o comércio entre os homens sempre que cada grupo necessita dos produtos alheios. O supremo bem tem igualmente a sua sede própria; não é peculiar à terra do marfim ou à terra do ferro.
Queres saber que lugar habita o bem supremo? A nossa alma. Mas se esta não for moralmente pura e reta nunca sentirá o divino dentro de si.
“De um mal não pode resultar um bem; ora, a riqueza é o resultado da avidez; logo, a riqueza não é um bem.”
A objeção que nos fazem é que não é exato de um mal não poder resultar um bem:
“A riqueza pode ser o resultado de um sacrilégio ou de um roubo. É certo que o sacrilégio ou o roubo são males, mas sobretudo por darem origem mais a males do que a bens. Podem conseguir proveito, mas acompanhado de medo, inquietação, sofrimento psíquico e físico.”
Quem assim fala admite necessariamente que o sacrilégio, embora sendo um mal porque gera muitos males, é em certa medida um bem, pois pode originar algo de bom! Pode fazer-se afirmação mais monstruosa do que esta? Pouco falta para nos convencermos a incluir no número dos bens o sacrilégio, o roubo, o adultério!
Não há tanta gente que se não envergonha de roubar, tanta gente que se envaidece dos seus adultérios? Mais: os pequenos sacrilégios são punidos, os grandes são exibidos nos cortejos triunfais. Acrescente-se que, se dê alguma forma considerarmos o sacrilégio como um bem, teremos de considerá-lo igualmente como uma acção honesta e moralmente justa (pois uma ação honesta é uma ação moralmente justa) (8), coisa que nenhum ser humano se atreverá seriamente a admitir.
Por conseguinte é impossível que de um mal resulte algum bem. Se, conforme afirmais, o sacrilégio é um mal apenas na medida em que origina muitos males, caso não o puníssemos com suplícios e lhe garantíssemos a impunidade, então seria plenamente um bem. A maior punição de um crime, contudo, está nele mesmo.
É um erro imaginar que o castigo está nas mãos do carrasco ou do carcereiro: o crime é punido quando é cometido, mais, enquanto é cometido.
Consequentemente, de um mal não pode nascer um bem, tal como numa oliveira não podem nascer figos! O fruto corresponde à semente, e um bem não degenera. Tal como a moralidade não decorre de acções indignas, também de um mal não pode provir um bem, pois o bem e a ação moralmente justa são uma e a mesma coisa.
Certos estóicos contestam a objecção que referi desta outra maneira: “Imaginemos que o dinheiro, seja qual for a sua proveniência, é um bem. Neste caso o dinheiro não é o resultado de um sacrilégio, mesmo se conseguido através de um sacrilégio.
Explicando melhor: dentro do mesmo vaso há uma moeda de ouro e uma víbora; se tirares a moeda do vaso, não é por lá estar também uma víbora que a tiras, isto é, o vaso não me dá o ouro por lá ter dentro uma víbora, dá-mo, sim, embora lá tenha também a víbora.
Similarmente, pode obter-se proveito de um sacrilégio, não por o sacrilégio ser uma ação indigna e criminosa, mas sim porque também é uma ação proveitosa. Tal como no caso do vaso o mal é a víbora, e não o ouro que está ao pé da víbora, também no caso do sacrilégio o mal está no crime, não no lucro.
” Por mim não aceito este raciocínio, pois a situação é completamente diferente . num caso e noutro. No primeiro, eu posso tirar o ouro sem tocar na víbora, no segundo, porém, não posso obter lucro sem cometer sacrilégio. Ou seja, o lucro não está justaposto, mas sim indissociavelmente ligado ao crime.
“Uma coisa que, se a queremos obter, nos sujeita a inúmeros males, não é um bem; ora, se queremos obter a riqueza sujeitamo-nos a inúmeros males; logo, a riqueza não é um bem.” “A vossa proposição” – dizem-nos – “pode entender-se em dois sentidos.
Por um lado significa que, ao querermos obter a riqueza, nos sujeitamos a muitos males. Todavia também nos sujeitamos a muitos males se pretendermos alcançar a virtude; podemos fazer uma viagem a fim de nos instruirmos, e a meio dela naufragarmos ou cairmos nas mãos de piratas.
Por outro lado, pode significar que não é um bem aquilo que nos sujeita ao mal. Ora esta proposição não implica necessariamente que a riqueza ou o prazer nos sujeitem ao mal; ou então, se a riqueza nos sujeita necessariamente ao mal, ela não só não será um bem mas será mesmo um mal, enquanto vós vos limitais a dizer que ela não é um bem. Além disso prosseguem – vós admitis que a riqueza tem certa utilidade, incluindo-a até entre as coisas vantajosas à vida.
No entanto, segundo o raciocínio precedente, nem sequer seria uma coisa vantajosa, pois por sua causa podemos incorrer em muitas desvantagens.”
Alguns dos nossos respondem: “Estais enganados quando atribuís as desvantagens à riqueza. ·A riqueza não faz mal a ninguém; o que faz mal ou é a própria estultícia ou a perversidade alheia. Um gládio também não mata ninguém, é somente a arma do assassino. Não é, portanto, a riqueza que nos faz mal, mesmo que nos façam mal por causa dela.”
Em meu entender, é superior a argumentação de Posidónio. Segundo ele, a riqueza é causa do mal, não porque ela em si o provoque mas porque dá azo a que outros o façam. De fato, uma coisa é a causa eficiente – que necessariamente produz desde logo o mal -, outra é a causa antecedente. A riqueza funciona como causa antecedente: sobe-nos à cabeça, gera o orgulho, desperta a inveja e de tal modo nos perturba a razão que, mesmo sabendo os inconvenientes de ter fama de rico, nem assim desistimos de a ter.
Os verdadeiros bens, esses, devem estar ao abrigo da censura; são puros, não corrompem a alma, não a enchem de inquietação. Exaltam a alma, sim, elevam-na, mas sem vaidades.
Os bens dão-nos confiança, a riqueza só nos dá audácia; os bens dão-nos grandeza de alma, a riqueza dá-nos insolência. E a insolência não passa de uma falsa aparência de grandeza. “Deste modo” – diz ele – “a riqueza, não só não é um bem, como é mesmo um mal.”
A riqueza seria um mal se ela própria causasse o mal, se, como disse acima, fosse uma causa eficiente. Ela é porém uma causa antecedente; não apenas desperta a atenção como ainda tem um efeito de sedução, pois apresenta uma aparência de bem que parece real e digna de crédito à maioria.
A virtude funciona também como causa antecedente em relação à inveja; tanto a sabedoria como a justiça despertam muito frequentemente a inveja. Todavia, esta causa não se origina na própria virtude, nem corresponde inteiramente à verdade. Esta é bastante mais visível quando o aspecto com que a virtude se apresenta aos espíritos vai antes no sentido de os incitar ao respeito e à admiração.
Posidónio reformula o silogismo como segue:
“Tudo o que não nos proporciona grandeza de alma, confiança, segurança, não deve ser considerado um bem; a riqueza, a saúde e coisas semelhantes não nos proporcionam nada disto; logo não são bens.”
E completa ainda o silogismo com este outro:
“Tudo o que não dá à alma grandeza, confiança, segurança, mas pelo contrário, desperta nela a insolência, o orgulho, a arrogância, deve ser considerado um mal; os favores da sorte causam em nós estes defeitos; por conseguinte, não são bens.”
“Segundo este raciocínio” – pode objetar-se – “a riqueza nem sequer é uma coisa vantajosa.”
É diferente a condição das coisas vantajosas e a dos bens. Uma coisa é vantajosa quando tem mais utilidade do que inconvenientes; um bem é um valor absoluto totalmente incapaz de ocasionar o mal. Uma coisa não é um bem por ser muito útil, mas sim por não poder deixar de ser útil.
Além disso, uma coisa vantajosa pode ter interesse para os animais, para os homens imperfeitos ou mesmo estultos. Pode conter ainda em si algo de desvantajoso, embora se considere uma coisa vantajosa na maior parte dos casos. O bem, esse, somente está ao alcance do sábio, e tem necessariamente de ser impoluto.
Tem coragem, meu amigo, só te resta mais um problema, se bem que este seja um trabalho de Hércules!
“O bem não provém de um conjunto de males; a riqueza provém de um conjunto de pobrezas; logo, a riqueza não é um bem.”
Este silogismo não é originário da nossa escola; foram os peripatéticos quem o inventou e resolveu. Posidónio, por seu lado, afirma que este sofisma, debatido em todas as escolas de dialéctica, foi refutado por Antípatro conforme segue:
“Quando falamos ém pobreza não temos em vista a posse, mas sim a privação” (ou orbatio, como- se dizia antigamente; κατά ατέρησιν , como se diz em grego);
“a palavra não implica a ideia de possuir, mas a de não possuir. Com uma série de vazios não se consegue encher nada: a abundância de objetos é que constitui a riqueza, não a abundância de carências. Estais a interpretar o termo pobreza incorrectamente. A pobreza não consiste em possuir poucas coisas, mas em haver muitas coisas que se não possuem. Ou seja, o termo alude não às posses, mas às carências. ” (9)
Eu expressar-me-ia com mais facilidade se em latim existisse um vocábulo com o sentido de ανυπαρξία (10)
É este, segundo Antípatro, o traço distintivo da pobreza. Assim, não consigo ver em que consiste a pobreza senão na posse de poucas coisas. (11)
Um dia que tenhamos tempo havemos de examinar a questão da substância da riqueza e da pobreza. Nessa altura veremos também se não será melhor encarar com menos severidade a pobreza e tirar à riqueza os seus ares altivos, em vez de estarmos aqui a discutir sobre palavras convencidos de que ajuizamos sobre a essência das coisas !
Imaginemos que somos convocados para uma assembleia onde se vai discutir uma lei sobre a abolição da riqueza. Iremos nós persuadir os presentes, num sentido ou noutro, com silogismos deste tipo? Conseguiremos convencer com eles o povo romano a preferir com entusiasmo a pobreza – fundamento e causa do seu poderio! – e a suspeitar das suas próprias riquezas, refletindo em que as conquistou aos povos vencidos, que delas resultou a introdução, nesta cidade de tão puros e austeros princípios, da corrupção eleitoral, da venalidade, da agitação social? (12)
Fá-lo-emos reconhecer que é excessiva a ostentação de troféus dos vencidos ? E que tudo quanto um único povo roubou a todos os outros, todos estes o poderão roubar facilmente por sua vez àquele povo único ? Aqui está a tese que nos importa propagar; e também erradicar as paixões, em vez de tentar dar delas definições exatas. Se tal nos for possível, falemos com maior vigor; se não, falemos em termos mais claros!
Passar bem!
(1) Tradução da conjectura non magiri cura, lit ” sem intervenção do cozinheiro”. Os mss. apresentam a lição non magiri hora, o que daria a tradução “as refeiçôes … não levam mais de uma hora a preparar”; mesmo uma hora, contudo, parece excessivo para preparar uma refeição de pão e figos secos!
(2) Séneca, de fato, está longe de se considerar a si proprio como um sapiens, um sábio; mais modestamente, ele tem-se apenas por um proficiens, por um homem que sabe qual a meta ideal a atingir, e para lá caminha com o maior empenho conquanto saiba que ainda lhe falta muito a percorrer.
(3) Vergílio, Aen., VII, 277-9.
(4) Não era raro que cidadãos arruinados se alistassem como gladiadores. Também se encontram aristocratas que, por snobismo, decidem exibir-se no circo (cf. infra, carta 99, 13). A paixão pelos espectáculos levou Nero a actuar no Circo Máximo como condutor de quadrigas (Suerónio, Nero XXII); Juvenal (II, 143 ss.) refere um certo Graco que, no tempo de Nero, se exibiu como reciário. Até as mulheres participavam, por vezes, como a Mévia que caçava javalis na arena, conforme diz o mesmo Juvenal (1, 22-3).
(5) Em latim, impedimentum “impedimento, empecilho, entrave” ; no plural, impedimenta “impedimentos, bagagem, equipamento (de um exército)”
(6) Lanista : proprietário de uma escola onde se treinavam os gladiadores para o circo (ludus gladiatorius) .
(7) Vergílio, Georg. I, 53-8.
(8) Texto corrupto; a tradução proposta corresponde à conjectura de Hense honesta enim actio recta actio est.
(9) = S. V.F., III p. 252.
(10) ανυπαρξία , lit “inexistência”.
(11) Segundo a óptica de Antípatro, a pobreza poderia ser definida, não como posse (de pouco), mas como não-posse, utilizando um termo negativo em correspondência exata com o termo grego empregado.
(12) Cf. Salúsrio, Cat. , XII, 1 : “Quando se começou a honrar a riqueza e a atribuir aos seus possuidores a glória, os altos cargos e o poder, a virtude degenerou concomitantemente, a pobreza foi vista como vergonha e o desinteresse interpretado como censura”; Tiro Lívio, prefácio a ab Vrbe condita, 11: “Ou a paixão com que inicio a minha obra me engana, ou nunca houve nação alguma maior, mais digna, mais rica de bons exemplos do que Roma l, nem onde tão tardiamente tivessem feito a sua entrada a avareza e o luxo, nem que por tanto tempo honrasse a pobreza e a austeridade”; um pouco antes (§ 9), este mesmo historiador referia-se ··a estes tempos de hoje, em que sucumbimos aos nossos vícios e nos mostramos incapazes de os remediar“; também Juvenal (VI, 294-5) afirma que “nenhum crime ou perversão ficou por cometer desde que cessou a pobreza em Roma”. A associação da pobreza com a grandeza da Cidade Eterna e a visão da prosperidade económica como marcando o início da decadência constituem, como muitas outras abonações ainda poderiam confirmar, um verdadeiro tópico para os escritores latinos.