Carta 86 – Como não hei-de admirar uma grandeza de alma tal que levou Cipião ao exílio voluntário para aliviar a cidade da sua influência?
Escrevo-te esta carta instalado por um tempo na própria vila de Cipião Africano, após ter prestado culto aos seus manes e a um altar que suspeito sirva de túmulo a esse ilustre varão.
Estou persuadido de que a sua alma regressou ao céu donde provinha, persuasão que não vem de ele ter comandado enormes exércitos (afinal, exércitos também os teve o louco Cambises, que soube bem tirar partido da sua insanidade!), mas sim da extraordinária moderação e piedade que ele demonstrou, e que para mim mais admirável foi ainda quando ele abandonou a pátria do que quando a defendeu.
Ou Cipião continuava em Roma, ou Roma preservava a liberdade.
“Não pretendo introduzir qualquer alteração nas nossas leis, nas nossas instituições”
afirmou ele; –
“que entre todos os cidadãos prevaleça a força do direito. Goza, ó pátria, dos benefícios que eu te fiz, mas sem a minha presença. Garanti a tua liberdade, e disso serei eu próprio a prova: parto, já que o meu poder aumentou para além das tuas necessidades.”
Como não hei-de admirar uma grandeza de alma tal que levou Cipião ao exílio voluntário para aliviar a cidade da sua influência? A situação chegara a um ponto em que ou a liberdade pública seria nociva a Cipião ou Cipião seria nocivo à liberdade. Qualquer das hipóteses seria indesejável e assim Cipião cedeu o lugar às leis, e retirou-se para Literno, beneficiando a República com o seu exílio, tal como a beneficiara com o exílio de Aníbal.
Pude contemplar a “vila” construída em cantaria, o muro que circunda o parque, e também as torres erguidas nos flancos para defesa da “vila”, a cisterna que serve quer a mansão quer o cultivo das plantas – uma cisterna que quase daria para dessedentar um exército! Vi ainda o pequeno balneário, bem escuro, segundo a moda de antigamente: os nossos maiores não apreciavam os banhos quentes senão às escuras!
Senti então um grande prazer ao confrontar os costumes de Cipião com os nossos de hoje: era em semelhante cubículo que o grande homem – o “terror de Cartago” – , a quem Roma ficou devendo não ter sido conquistada pela segunda vez (1) , lavava o corpo cansado dos labores agrícolas!
Sim, que ele não se eximia ao trabalho, mas, seguindo os antigos costumes, arava ele próprio a terra. Cipião viveu sob este teto tão sem graça, pisou estes pavimentos tão ordinários! Nos dias de hoje, quem se resignaria a tomar banho em condições semelhantes?
Qualquer um se considera pobre e mesquinho se as suas paredes não resplandecerem com grandes e preciosas incrustações, se os seus mármores de Alexandria não forem decorados com mosaicos da Numídia, trabalhosamente recobertos de verniz como se de pinturas se tratasse, se não tiverem uma cúpula recoberta de vidro, se o mármore de Tasos não revestir as piscinas onde metemos o corpo emaciado pelo banho de vapor, se, enfim, a água não correr de torneiras em prata!
E, por enquanto, até estou falando das canalizações da plebe: que não dizer quando me referir aos balneários dos libertos (2)!
Que multidão de estátuas, que sem número de colunas que nada sustentam, apenas decorativas, só para exibição de riqueza! Que abundância de água caindo ruidosamente em cascatas! Chegamos ao luxo de só poder pisar pedras preciosas! …
No balneário de Cipião não há propriamente janelas, mas apenas umas fendas estreitas que deixam entrar a luz sem pôr em causa a solidez da construção. Hoje dá-se o nome de “banhos para traças” aos balneários cuja construção não permite receber a luz durante o dia todo por janelas enormes. Se é impossível tomar banho e ficar bronzeado ao mesmo tempo, se não se pode contemplar a paisagem de dentro da banheira, já não presta!
E assim é que requintes que suscitaram a admiração dos visitantes aquando da inauguração passam ao rol das velharias mal o luxo descobre alguma novidade em que despender energias. Antigamente, os balneários públicos eram pouco numerosos e sem a mínima decoração (3) .
Pra quê, de fato, decorar uma coisa de valor mínimo, de finalidade meramente utilitária e não destinada ao prazer? Não havia água corrente como que brotando continuamente de uma fonte quente, nem os antigos se preocupavam com a iluminação do espaço onde iam libertar-se da sujidade.
Porém, santos deuses ! , como é agradável entrar nesses balneários sombrios revestidos de estuque vulgar, quando se sabe que quem cuidava deles por suas próprias mãos eram edis como Catão, Fábio Máximo ou algum dos nobres Cornélios !
Sim, os mais nobres edis desempenhavam outrora a função de entrar nesses lugares frequentados pela multidão, de assegurar a sua limpeza, de manter uma temperatura adequada à saúde, e não este calor que hoje está na moda e mais parece calor de incêndio, a ponto de quase se poder castigar um escravo criminoso… mandando-o simplesmente tomar banho!
Balneário aquecido ou incêndio no balneário – por mim não vejo onde estaria a diferença! Abunda hoje quem acuse Cipião de perfeito provinciano por não ter nos seus banhos quentes largas vidraças para deixar entrar o sol, e não se deixar destilar no meio da luz à espera de fazer a digestão no banho.
“Oh!, pobre homem! Nem sabia viver!”
Cipião não se lavava com água filtrada, frequentemente ela estava turva, e quando chovia mais, quase ficava com lodo. A ele, aliás, não lhe fazia diferença lavar-se assim, pois ia ao banho para se limpar do suor, e não dos perfumes. Não imaginas o que dizem disto os delicados de hoje?
“Não invejo esse Cipião! Tomar banho em condições semelhantes é de fato viver exilado!…”
Pois digo-te ainda mais: ele não tomava banho todos os dias. Segundo os eruditos que referem os velhos costumes de Roma, os antigos lavavam todos os dias os braços e as pernas, ou seja, a parte do corpo onde se juntava a sujidade proveniente do trabalho. Banho completo, só de nove em nove dias. Nesta altura haverá certamente quem diga:
“Que porcos deviam eles andar!”
A que julgas tu que eles cheiravam? A vida militar, a trabalho, a homem, em suma. Depois que se inventaram estes impecáveis balneários os homens tornaram-se mais porcos. O que diz Horácio quando quer retratar um indivíduo de maus costumes, notável pelos seus excessivos requintes? Diz que
“Bucilo cheira a rebuçados!”(4)
Se Bucilo vivesse hoje em dia, por pouco pareceria cheirar a bode, faria o papel daquele Gargónio que, na mesma sátira, Horácio põe em confronto com Bucilo (5) Usar perfume hoje não basta: é preciso renová-lo duas e três vezes por dia para que o cheiro se não desvaneça. E todos se ufanam do perfume, como se fosse esse o seu cheiro natural!
Se as minhas considerações te parecem demasiado pesimistas atribui as culpas a esta vila onde Egíalo, um chefe de família extremamente ativo (o atual dono desta propriedade), me ensinou que qualquer planta, por velha que seja, pode sempre ser transplantada. Aqui está uma coisa que nós, os velhos, devíamos ter o cuidado de aprender, porquanto nenhum de nós plantará um olival que nao venha a passar as maos e outro…………..(6) Tu gozarás do apoio daquela árvore que
“crescendo lenta, só dará sombra aos teus futuros netos, (6)
conforme escreveu Vergílio. O nosso poeta, aliás, cuidava menos da verdade que da beleza literária, interessado como estava em proporcionar prazer aos seus leitores, e não em dar lições aos homens do campo! Sem referir mais pormenores, citar-te-ei um preceito erróneo que hoje mesmo me vi forçado a constatar:
“na primavera semeiam-se as favas; e também tu planta da Média, és lançada aos sulcos abertos pelo arado; igualmente se prestam ao milho os cuidados anuais”(8)
Até que ponto é verdade que estas plantas devem ser semeadas na mesma época e que, para todas, a sementeira se deve fazer na Primavera, poderás ajuizá-lo por este fato: eu estou-te escrevendo no mês de Junho, já com Julho à porta. Pois bem, no mesmo dia vi eu os homens a colherem as favas e a semearem o milho.
Mas voltemos às oliveiras. Vi-as serem plantadas segundo dois processos. Egíalo pega nos troncos de árvores grandes, corta-lhes os ramos, redu-los à altura de um pé e transplanta-o com o nó das raízes, mas cortando-lhes as raízes e deixando apenas o bolbo donde elas estavam pendentes. Depois mete numa cova este tronco com bastante estrume, e, não só o recobre de terra, como pisa essa terra até ficar bem calcada.
Diz ele que não há processo mais eficaz do que este das “pisadelas”! O objetivo, ao que parece, é proteger a planta do frio e do vento; além disso, há menos possibilidade de a planta se deslocar, e assim é possível brotarem as raízes e fixarem-se ao solo; de fato, como as raízes são a princípio muito frágeis e se fixam com dificuldade, a menor deslocação do tronco arrancá-las-ia.
O nosso homem, portanto, poda o nó das raízes antes de o meter na terra; diz ele que dos nós assim cortados brotam raízes novas. O tronco, aliás, não deverá elevar-se acima do solo mais do que três ou quatro pés; deste modo começa imediatamente a vicejar desde o solo, sem que grande parte dele se apresente seco e retorcido como se vê nas oliveiras muito velhas.
O outro sistema de plantação é o seguinte: enterra de maneira idêntica os ramos fortes mas com a casca ainda não muito dura, como são habitualmente os das árvores jovens. Estes ramos desenvolvem-se um pouco mais lentamente mas, dado que crescem como que brotando da própria planta, têm um aspecto em nada rugoso ou repulsivo.
Também assisti à transplantação de uma videira extremamente velha. Todos os seus raminhos, se for possível, devem ser reunidos, e em seguida deita-se a videira estendida na terra para que produza raízes mesmo do tronco.
Vi videiras serem plantadas não só em Fevereiro mas até mesmo no fim de Março; e elas aguentam-se bem, agarrando-se, para se amparar, ao tronco dos ulmeiros. Todas estas árvores, “troncudas”, passe a expressão, diz Egíalo que serão regadas com água da cisterna; se esta água é boa, temos chuva sempre à nossa disposição!
E não estou disposto a ensinar-te mais nada por hoje, para que, assim como eu estive sempre a contradizer Egíalo, não me venhas tu agora fazer o mesmo a mim!
Passar Bem!
(1) Ao longo da sua história Roma só fora conquistada uma única vez, aquando das invasões gaulesas na guerra de -390-383.
(2) Sobretudo no tempo de Cláudio, os libertos (em especial os do imperador) adquiriram uma enorme importância política e social e acumularam fortunas consideráveis, como por exemplo os famosos Narcisso e Palante (libertos e “ministros” de Cláudio). Uma das acções conduzidas pela classe senatorial no início do principado de Nero consistiu precisamente em reduzir a influência enorme desses homens: Narcisso, por exemplo, acabou, vítima de intrigas de Agripina, por ver-se constrangido ao suicídio (Tácito, Ann., XIII, 1, 5,), Palante foi mandado envenenar por Nero (Tácito, ibid., XIV, 65, 1). – O comportamento de “novos ricos” dos libertos ficou imortalizado na literatura pelo Tri-malquião de Petrónio (Satiricon, XXVI, 7 ss.).
(3) No séc. 1 a.C., a profusão dos balneários aumenta consideravelmente: em 33 a.C. uma contagem efecruada por Agripa recenseava, só em Roma, 170 banhos públicos.
(4) Horácio, Sat., 1, 2, 27: 4, 27 (onde, aliás, o nome da personagem é Rufilo, e não Bucilo).
(5) Nos mesmos passos referenciados na nota anterior, Horácio fala igualmente de um certo “Gargónio (que cheira) a bode”.
(6) Texto muito corrupto, pelo que será preferível deixar a lacuna do que tentar uma reconstituição duvidosa.
(7) Vergílio, Georg., II, 58.
(8) Vergílio, Georg., I, 215-6. – A planta da Média deve ser a luzerna (medicago sativa L.), planta originária do sudoeste asiático (d. Plínio, N. H., XVIII, 144).