17 de junho de 2025

Carta 8 – Nada nos pertence daquilo que o acaso nos traz

Por lucianakeiko@gmail.com

Uma objeção tua: “Então tu mandas-me evitar a multidão, conservar-me retirado, contentar-me com a minha consciência? Que é feito daquelas vossas máximas que nos obrigam a morrer em plena ação?

Bom, ao que parece eu estou-te aconselhando a inércia?

Se eu me recolhi em casa e fechei as portas foi para poder ser útil a um maior número.

Nem um único dia me chega ao fim na ociosidade; parte da noite, reservo-a para os meus estudos; não me disponho ao sono — sucumbo a ele, e deixo repousar sobre o meu trabalho os olhos cansados da vigília e já prestes a cerrar-se.

Retirei-me não só dos homens, como dos negócios, começando com os meus próprios: estou trabalhando para a posteridade.

Vou compondo alguma coisa que lhe possa vir a ser útil; passo ao papel alguns conselhos, salutares como as receitas dos remédios úteis, – conselhos que sei serem eficazes por tê-los experimentado nas minhas próprias feridas, as quais, se ainda não estão completamente saradas, deixaram pelo menos de me torturar.

Indico aos outros o caminho justo, que eu próprio só tarde encontrei, cansado de atalhos. Vou gritando:

“Evitai tudo quanto agrade ao vulgo, tudo quanto o acaso proporciona; diante de qualquer bem fortuito parai com desconfiança e receio: também a caça ou o peixe se deixa enganar por esperanças falaciosas.

Julgais que se trata de benesses da sorte? São armadilhas! Quem quer que deseje passar a vida em segurança evite quanto possa estes benefícios escorregadios nos quais, pobres de nós, até nisto nos enganamos: ao julgar possuí-los, deixamo-nos apanhar!

Esta corrida leva-nos para o abismo; a única saída para uma vida “elevada”, é a queda!

E mais: nem sequer poderemos parar quando a fortuna começa a desviar-nos da rota certa, nem ao menos ir a pique, cair instantaneamente: não, a fortuna não nos faz tropeçar, derruba-nos, esmaga-nos. Prossegui, pois, um estilo de vida correto e saudável, comprazendo o corpo apenas na medida do indispensável à boa saúde.

Mas há que tratá-lo com dureza, para ele obedecer sem custo ao espírito: limite-se a comida a matar a fome, a bebida a extinguir a sede, a roupa a afastar o frio, a casa a servir de abrigo contra as intempéries.

Que a habitação seja feita de ramos ou de pedras coloridas importadas de longe, é pormenor sem interesse: ficai sabendo que para abrigar um homem tão bom é o colmo como o ouro!

Desprezai tudo quanto, com supérfluo trabalho, se acrescenta para ornamento e decoração; pensai que só o espírito merece admiração, e para um grande espírito nada há que seja grande.”

Ao formular estas reflexões, tanto para mim próprio como para a posteridade, não te parece que estou a ser mais útil do que se comparecesse como consultor numa citação judiciária, se imprimisse o meu sinete no fim dum testamento, ou se fosse ao senado dar o meu voto e o meu apoio a um candidato qualquer?

Acredita: os que mais fazem são os que menos parecem fazer, pois tratam ao mesmo tempo dos planos humano e divino. Mas já é altura de terminar e como tenho por hábito há que enviar um brinde com esta carta. Não me pertence, o brinde. Tenho andado a respigar Epicuro, e dele li hoje esta frase:

“Deves ser servo da filosofia se pretendes obter a verdadeira liberdade”

Não será posto de lado quem a ela se entregar confiadamente: logo ela lhe prestará os seus benefícios. É nesta entrega total à filosofia que consiste a liberdade. Talvez me queiras perguntar por que razão te cito eu tantas belas máximas de Epicuro, em vez de as extrair dos nossos autores. Por que motivo, porém, deveremos considerá-las de Epicuro, e não propriedade de todos?

Quantos poetas há que já disseram o que os filósofos já disseram também ou hão-de dizer um dia! Nem preciso de recorrer aos trágicos, ou às nossas pretextas (peças estas que possuem uma certa seriedade que as coloca a meio caminho entre as comédias e as tragédias): até nos mimos, que quantidade se não encontra de versos excelentes! Quantos versos não escreveu Publílio dignos de personagens de coturno, e não de gente descalça! Vou citar-teum verso dele que trata matéria filosófica, e precisamente aquele ponto que estive a discutir atrás, ou seja, que não devemos ter por nosso aquilo que o acaso nos dá:

Nada nos pertence daquilo que o acaso nos traz

A mesma ideia exprimiste tu, bem me lembro, num verso não menos brilhante e conciso:

Não é verdadeiramente teu o que é teu por dom da sorte

Não me esqueço também de outro verso teu melhor ainda:

Bem que se pode dar, pode também tirar-se

Mas isto já não faz parte do brinde: só te devolvo o que é teu.

Passar bem!