Carta 79 – Quem só pensa nos seus contemporâneos veio a este mundo para proveito de escasso número
Aguardo uma carta em que me descrevas todas as novidades que encontraste durante o périplo da Sicília, incluindo informações exatas acerca de Caríbdis. Quanto a Cila, sei perfeitamente que não passa de um rochedo, e nem sequer muito perigoso para a navegação, mas de Caríbdis estou interessado em saber se corresponde à lenda.
Se fores observar o local (e é inegável que mereee uma visita tua!), informa-me se é um único vento que provoca o turbilhão, ou se é a ventania soprando em todas as direções que transforma o mar em sorvedouro. Também pretendo saber se é verdade que um objeto sorvido nesse remoinho marítimo é arrastado por muitas milhas sob as águas para voltar à surperfície perto da costa de Tauroménio.
Se me transmitires todos estes dados, então atrever-me-ei a pedir-te que, em minha honra, subas ao alto do Etna. De acordo com certos autores, a montanha vai sendo consumida e diminui de altitude, o que eles deduzem de antigàmente o Etna ser visível aos navegantes de uma distância um tanto maior.
O fenômeno pode explicar-se, não por uma diminuição de altitude da montanha, mas sim por as chamas internas se acalmarem e serem projetadas com menor energia e amplitude; pelo mesmo motivo vemos a coluna de fumaça mais reduzida durante o dia.
Nenhuma das duas explicações é inverosímil: pode suceder que uma montanha diariamente devorada pelo fogo diminua de tamanho, mas pode suceder também que conserve o mesmo tamanho, por as chamas não corroerem a própria montanha, antes, concentrando-se em algum vale subterrâneo, transbordarem e irem alimentar-se noutro local; o Etna seria, neste caso, não pasto, mas apenas local de passagem para o fogo.
Há na Lícia uma região muito conhecida, a que os indígenas dão o nome de Heféstion, na qual o solo está perfurado em muitos locais dando passagem ao fogo, que aliás se espalha sem qualquer prejuízo para a vegetação.
É um fato que a dita região é muito fértil e toda coberta de ervas; as chamas, em vez de consumirem tudo, parecem ter perdido as forças e limitam-se a brilhar . . Deixemos esta questão por agora.
Voltarei a pôr-ta quando tu me disseres a que distância do cume do monte se estendem as neves que nem o verão derrete, a tal ponto elas se mantêm incólumes apesar da vizinhança do fogo.
Aliás, não me atribuas só a mim esta curiosidade: mesmo que ninguém de tal te incumbisse tu serias louco bastante para querer satisfazê-la… Que presente queres tu que eu te ofereça para te dissuadir de incluíres no teu poema a descrição do Etna, e renunciares a um motivo que tem atraído todos os poetas?
Tema que nem o facto de Virgílio o ter desenvolvido, impediu Ovídio de também o tratar, tal como ambos estes poetas não dissuadiram Cornélia Severo de igualmente o versar. (1)
De resto, foi este um tema que se prestou a todos eles em abundância: parece-me a mim que os poetas mais antigos, longe de esgotarem o assunto, apenas indicaram os tópicos a desenvolver.
Há grande diferença entre um tema já esgotado e outro meramente aludido: neste caso, a matéria vai dia-a-dia ganhando amplitude, e as exposições já feitas não impedem a feitura de outras novas. Pode também dizer-se que a situação do último poeta da lista é privilegiada, pois encontra à sua disposição imagens já feitas que, inseridas em novo contexto, ganham diferente coloração.
Utilizar tais imagens não é, de modo algum, um furto, porquanto elas já são do domínio público. Ou eu não te conheço, ou o tema do Etna faz-te crescer a água na boca! Aí estás tu cheio de vontade de escrever um grande poema, tão bom como os já existentes!
Digo “tão bom” porque da tua modéstia não se pode esperar mais: tal é ela que, julgo bem, te levaria a refrear o teu talento se corresses o risco de escrever melhor que os antigos, tanta é a veneração que por eles sentes!
Entre outras vantagens, a sabedoria também tem isto de bom: só se pode ser ultrapassado por outro durante a fase de ascenção. Quando se chega ao cume, não mais subsistem diferenças: a sabedoria é um estado constante, não passível de qualquer incremento.
Acaso o Sol pode aumentar de tamanho ou a Lua sair da sua órbita? Os ceanos também não crescem; o mundo conserva sempre a sua forma e as suas medidas. Todos os seres que atingiram as suas dimensões ideais já não podem aumentar e, por isso, todos os homens que atingirem a sapiência são de valor inteiramente idêntico.
De entre eles, cada um terá as suas qualidades próprias: um poderá ser mais afável, outro mais desembaraçado, outro de palavra mais pronta, outro dotado de maior eloquência. Mas o ponto que nos interessa – a sapiência que gera a beatitude – essa será igual em todos eles.
Se o teu Etna pode ser interiormente consumido e ruir sobre si mesmo, se a ação contínua das chamas tem força para destruir essa imponente montanha, visível da vastidão do mar – isso ignoro-o! A virtude,contudo , não há chamas ou catástrofes que a abatam; a sua majestade é a única que não admite decréscimo. Não pode ser aumentada, tal como não pode ser reduzida; à semelhança dos corpos celestes, a sua magnitude é constante.
Esforcemo-nos, pois, para nos elevarmos até ela!
Muito do trabalho necessário já está feito; ou melhor, para dizer a verdade, não muito!… Quando partimos do mais baixo grau, tornarmo-nos melhores não significa atingir o bem: alguém se orgulha dos seus olhos só por vislumbrar a claridade do dia? O homem que vê o Sol luzir através do nevoeiro, se tem razão para se mostrar contente de ter já escapado às trevas, nem por isso goza ple namente dos benefícios da luz!
A nossa alma só terá motivo para se congratular quando, liberta das trevas em que ainda se debate, não se limitar a ver uma débil luminosidade, mas receber em pleno a luz do dia, quando for restituída ao espaço celeste e reocupar o lugar que era o seu antes do nascimento.
É para lá que a chama o seu estado primordial, e lá poderá a nossa alma residir mesmo antes de subtrair-se à prisão do corpo desde que, expulsando por completo os vícios, se eleve subtil e pura até ao pensamento divino!
Aqui tens o nosso objetivo, caríssimo Lucílio, esta a meta para onde devemos dirigir-nos com todo o empenho, ainda que poucos, ou mesmo ninguém, saiba do nosso esforço. A fama é para a virtude como uma sombra: segue-a ainda que esta não o pretenda.
Ora, a sombra umas vezes precede-nos, outras projeta-se para trás de nós: o mesmo se passa com a fama, que umas vezes nos precede com a maior evidência, e outras só nos alcança mais tarde ~ mas tornando-se tanto maior quanto mais tardia, quando já toda a inveja se desvaneceu.
Quanto tempo não se julgou que Demócrito era louco! Como foi diminuta a celebridade de Sócrates! Quanto tempo ignorou Roma o valor de Catão, a quem rejeitou, a quem só apreciou na justa medida quando o perdeu!
A pureza e a virtude de Rutílio permaneceriam ignoradas se ele não tivesse sido vítima de uma injustiça, mas refulgiram à luz do dia quando a violência se abateu sobre ele. Porventura não se mostrou ele grato ao destino e aceitou com entusiasmo o exílio que lhe impuseram?
Estou-te falando de homens a quem a fortuna, ao mesmo tempo que os abateu, tornou famosos. Mas quantos outros não alcançaram sucesso senão após a morte! E quantos ainda a fama, mais do que envolver, não foi por assim dizer exumar!…
Vê a multidão, e não só de gente culta mas mesmo de pessoas pouco letradas, que hoje pasma de enlevo por Epicuro, esse Epicuro que viveu nos arredores de Atenas sem que a cidade desse pela sua presença!
Muitos anos depois de o seu amigo Metrodoro ter falecido, Epicuro, numa carta em que calorosamente se referiu à amizade que o unira a Metrodoro, escreveu a terminar que, no meio da sua felicidade, nem ele nem Metrodoro em nada se sentiram lesados pelo fato de a nobre Grécia não só os ter ignorado mas mesmo quase lhes não conhecer os nomes.
Não é verdade que Epicuro só foi descoberto depois de terminados os seus dias? Não é exato que só então a sua fama resplandesceu? O próprio Metrodoro também afirma numa carta que tanto ele como Epicuro eram pouco conhecidos; mas acrescentou que, depois da morte de ambos, grandemente famosos seriam os que se dispusessem a seguir os seus sentimentos (2)
A virtude nunca passa despercebida mas, se passar, isso em nada a diminui: um dia virá que traga ao conhecimento de todos a virtude ignorada e como que soterrada pela perversidade da sua época!
Quem só pensa nos seus contemporâneos veio a este mundo para proveito de escasso número. Muitos milhares de anos e de gerações se sucederão: pensa na posteridade. Ainda que a inveja dos teus coetâneos cubra de silêncio o teu nome, outros homens virão capazes de te julgarem sem má vontade nem parcialidade (3).
Se a glória dá algum valor à virtude, esse valor nunca perecerá. Não chegará aos nossos ouvidos o que os pósteros dirão de nós, mas decerto nas suas palavras, embora sem o sentirmos, continuaremos a ser uma presença.
Vivo ou morto, todo o homem tirou benefício da virtude, na condição de a ter praticado com sinceridade, de não a ter usado como mero adorno postiço, de ter agido sempre de forma idêntica perante os visitantes, quer estes se fizessem anunciar quer, pelo contrário, lhe surgissem diante inesperadamente.
De nada vale a hipocrisia; podem alguns deixar-se iludir por uma ligeira afetação de virtude superficialmente afivelada no rosto,a verdade, essa, é sempre constante em todos os pormenores.
As aparências ilusórias carecem de solidez. Toda a mentira é frágil, e imediatamente se denuncia como tal se a analisares com atenção.
Passar Bem!
(1) Vergílio, Aen., III, 570 ss.; Ovídio, Met., XV, 340 ss.; nos reduzidos fragmentos conservados de Cornélio Severo (Morei, pp. 116-119) não figura qualquer referência ao Etna. Quanto ao poema intitulado Aetna nada prova, nem mesmo este passo de Séneca, que a sua autoria deva ser atribuída a Lucílio Júnior, apesar de vários filólogos se terem pronunciado nesse sentido.
(2) Este passo forma o fr. 188 Usener, de Epicuro. V. também Epicuro, fr. 551 Usener, a máxima λάθε βιώσας
(3) Sine ira et studio, dirá Tácito no prefácio dos seus Annales (I, 1, 4).