Carta 77 – Na vida é como no teatro: não interessa a duração da peça, mas a qualidade da representação.
Fomos hoje surpreendidos pela chegada dos navios alexandrinos que usualmente costumam partir primeiro, anunciando assim a próxima chegada dos restantes barcos; são conhecidos por navios-correio. Foi com alvoroço que a Campânia os viu chegar; em Putéolos, a multidão aglomerou-se nos molhes e, pelo próprio aspecto do velame, conseguiu distinguir, no meio da massa dos restantes, quais os navios alexandrinos.
De fato, apenas estes conseguem manter desfraldada a vela pequena que todos os navios têm no alto do mastro. Motivo: a parte mais alta do velame é a que mais impele o navio, é no topo que mais se exerce a força do vento. Por isso, sempre que o vento aumenta de intensidade e se torna mais forte do que o desejável, a verga do barco é arreada: a ventania é menos violenta na parte mais baixa. Quando entraram em Cápri e ultrapassaram o cabo onde
“se vê no rochoso cume o alto templo de Palas, “(1)
enquanto os outros barcos tiveram de se contentar com a vela grande, a presença do síparo serviu para identificar os “alexandrinos”.
Ao passo que toda a gente se precipitava para o cais eu saboreava a minha própria indolência: é que, embora esperando correspondência do meu pessoal, não me precipitei a saber qual era por lá o estado dos meus negócios, quais os lucros obtidos: já de há muito que perdas ou ganhos me não afetam!
Ainda que eu não fosse velho, manteria a mesma opinião, mas, nas circunstâncias presentes, mais energicamente a defendo: é que, por muito diminutas que fossem as minhas posses, sobrar-me-ia sempre mais viático do que via, e muito especialmente porque a via em que ingressamos não precisamos de percorrê-la até ao fim.
Uma viagem fica incompleta se paramos a meio do caminho ou não atingimos o local pretendido, ao passo que a vida apenas é incompleta se for imoral. Onde quer que te detenhas, se o fizeres conforme à moral, a tua vida estará completa.
Frequentemente temos de deter-nos com coragem, e nem sempre por motivos de grande relevância; aliás, os motivos que nos mantêm agarrados à vida não são de grande relevância!
Tu conheceste perfeitamente Túlio Marcelino – um jovem calmo, precocemente envelhecido que, ao ver-se atacado de uma doença, embora curável, assaz prolongada, penosa, implicando cuidados extremos, começou a deliberar seriamente sobre a morte.
Chamou vários amigos a sua casa. Uns, os medrosos, aconselhavam-no a fazer o que eles próprios fariam nas mesmas circunstâncias; outros, por adulação ou amabilidade, davam-lhe o conselho que julgavam mais agradável seria à deliberação de Marcelino. Um amigo nosso, de obediência estóica, homem notável, cheio de valor e coragem (tenho de dar aos seus méritos as palavras que ele merece), foi, quanto a mim, aquele que o aconselhou com maior dignidade. Falou-lhe deste modo:
“Meu caro Marcelino, não te tortures como se estivesses deliberando sobre uma grande coisa! Viver não é uma grande coisa! Todos os teus escravos vivem, todos os animais vivem! O que é importante é morrer com nobreza, com plena consciência, com coragem! Repara quantos anos há já que tu repetes sempre os mesmos atos: comer, dormir, fazer amor – a vida resume-se a este ciclo! Para desejar a morte não é indispensável ser-se consciente, corajoso, ou infeliz: pode-se desejar a morte por tédio!”
Marcelino não carecia propriamente de quem o persuadisse, mas sim de quem o ajudasse: é que os escravos se recusavam a obedecer-lhe! O nosso estóico começou por os libertar do medo, demonstrando-lhes que os escravos só incorreriam em perigo se houvesse dúvidas sobre o carácter voluntário da morte do seu senhor; de resto, tão condenável era, por parte dos escravos, assassinar o senhor como impedi-lo de suicidar-se!
Em seguida, aconselhou o próprio Marcelino a que, por humanidade, – tal como no fim dos banquetes se distribuem as sobras pelos escravos de serviço – , ao terminar a vida oferecesse alguma coisa àqueles homens que durante a vida inteira o serviram.
Marcelino era homem de trato afável, e liberal… mesmo do seu património, e assim distribuiu pelos escravos em lágrimas pequenas somas de dinheiro, e dirigiu-lhes também palavras de consolação. Para morrer, nem recurso a arma branca, nem efusão de sangue. Passou três dias sem alimentar-se, e mandou armar uma tenda dentro do quarto; depois, puseram lá uma banheira onde Marcelino se instalou, e foram-lhe deitando . por cima água quente até que ele desfaleceu, sentindo nisso um certo prazer; e eu, que estou sujeito a frequentes desmaios, entendo bem esse prazer que nos dá a moleza do desfalecimento!
Deixei-me espraiar por uma história que com certeza te não desagradará: ficas a saber que a morte do teu amigo nada teve de difícil ou lamentável. Embora decidindo-se pelo suicídio, a sua morte foi suave: Marcelino evaporou-se desta vida!
Também espero que a minha história não tenha sido inútil, pois muitas vezes as circunstâncias tornam necessária a presença de tais exemplos. Muita vez sucede, de fato, que deveríamos morrer e não queremos, ou que morremos mesmo sem o querer!
Não há alguém tão estúpido a ponto de ignorar que, mais tarde ou mais cedo, há-de morrer; no entanto, quando a morte se aproxima, as pessoas vacilam, tremem, choram. Não te parece o cúmulo da imbecilidade alguém chorar por não ter vivido mil anos atrás?
Pois não é menos imbecil alguém que chore por já não viver daqui a mil anos. As situações são idênticas: não existiremos no futuro, tal como não existimos no passado; um e outro espaço de tempo ser-nos-á alheio. Tu foste projetado para este ponto do tempo: por muito que o alargues, até quando poderás alargá-lo? Poique choras? Por que anseias? Tudo será em vão:
Não esperes alterar com preces o destino fixado pelos deuses!Vergílio, Aen. VI, 376.
Os destinos estão determinados de uma vez por todas, e prosseguem a sua marcha em obediência à lei eterna do universo: tu irás para onde vai tudo o mais! Que vês nisto de estranho? Nasceste já sujeito a esta lei: o mesmo já sucedeu ao teu pai, à tua mãe, a todos os teus avós, a todos os homens que viveram antes de ti e a todos os que viverão depois de ti!
Uma mesma necessidade ineluctável e inflexível domina todos os seres e arrasta-os consigo. Que multidão de gente não há para te seguir na morte, que multidão para nela te acompanhar!… Creio bem que a tua coragem seria maior se visses muitos milhares de pessoas a morrer ao mesmo tempo que tu; pois fica sabendo que no preciso momento em que tu vacilas ante a morte muitos milhares de homens e de animais estão, de uma forma ou de outra, exalando a alma. Julgavas, se calhar, que não havias um dia de chegar ao ponto para onde sempre te encaminhaste? Não há estrada que não chegue ao fim!. ..
Pensas que irei agora citar-te exemplos de homens famosos? Não, vou citar-te exemplos de crianças. Ficou na história o gesto de um jovem da Lacónia, imberbe ainda, que, ao ser feito prisioneiro, começou a gritar no seu dialecto dórico:
“Nunca serei escravo”(V. Séneca-o-Retor, Suasoriae, II, 8.)
E comprovou as palavras pelos atos: a primeira vez que o mandaram desempenhar um trabalho servil e indigno (tratava-se de ir buscar um vaso para excrementos) ele despedaçou a cabeça contra uma parede. Como pode alguém sujeitar-se a ser escravo tendo a liberdade assim à mão?! Não preferirias tu ver morrer assim um filho teu a vê-lo chegar à velhice por covardia?
Como te deixas perturbar pela ideia da morte se até crianças sabem enfrentá-la com coragem? Se não obedeces a bem ao destino, obedecerás a mal! Faz por vontade própria uma coisa que não tens poder para alterar. Não serás capaz de adaptar a atitude desta criança e gritar: “Não serei escravo”?
Desgraçado de ti, que serás servo dos homens, das coisas, da vida – pois a vida não passa de servidão se nos faltar a força para morrer!… Que possuis tu ainda para te alimentar a esperança? Já esgotaste todas as volúpias que te entravam e detêm: nenhuma te trará novidade, nenhuma te não será odiosa à força de as saciares a todas!
Já conheces o sabor do vinho e do hidromel: que diferença faz então que pela tua bexiga passem cem ou mil ânforas? Não passas de um filtro!… Conheces na perfeição a que sabe uma ostra ou um rascasso: os teus luxos não te reservarão para o futuro qualquer novidade. E aqui estão as coisas de que tanto te custa apartar-te!
Que mais há ainda que possas lamentar perder? Os amigos? Tens a certeza de que és amigo de alguém? A pátria? Acaso a amas tanto que por ela atrases a hora da ceia? O Sol? Se pudesses até o apagarias, já que nada fizeste na vida digno da sua luz… Confessa que não é com saudades do Senado ou do foro, nem sequer da natureza, que tu te mostras relutante em morrer!
Tu vais abandonar um mercado de que experimentaste todos os produtos. Tens medo da morte, mas esqueces-te dela mal te ponham à frente um prato de cogumelos! Dizes que sabes viver: sabes mesmo?!. .. Tens medo da morte: e porquê? Essa tua vida não é igual à morte?
Um dia que G. César ia passando pela Via Latina, aproximou-se dele um prisioneiro, que ia numa leva de forçados, com uma barba caída até ao peito, e pediu-lhe que o matasse.
“Pois tu ainda estás vivo?!” – respondeu César.
Aqui está o que devemos dizer àqueles de quem a morte se aproxima: “Tens medo da morte; então ainda estás vivo?!” Há quem diga que pretende viver porque comete muitas boas ações, que a custo se resigna a subtrair-se aos deveres da vida, porque no seu desempenho põe o maior empenho e boa vontade.
Ora essa! Ignoras então que um dos deveres da vida é morrer? Tu não te eximes a nenhum dever, pois não é possível delimitar um número exato de deveres que tenhas de cumprir. Toda a vida é sempre breve. Em confronto com a ordem da natureza foi breve a vida de Nestor, foi-o a de Sátia ~ que mandou inscrever no túmulo: “Vivi até aos noventa e nove anos”. Podes ver pessoas que se gabam de uma idade provecta: mas quem as suportaria se durassem até aos cem anos?
Na vida é como no teatro: não interessa a duração da peça, mas a qualidade da representação. Em que ponto tu vais parar, é questão sem a mínima importância. Pára onde quiseres, mas dá à tua vida um fecho condigno!
Passar bem!
(1) Auctorum incert. fr. 24 p. 359 Baehrens (= inc. fr. 42 Morei).