21 de agosto de 2025

Carta 73 – Os bens importantes e autênticos não são divisíveis de modo a que cada homem obtenha só uma pequena porção

Por lucianakeiko@gmail.com

Em minha opinião laboram em erro aqueles que pensam serem os fiéis praticantes da filosofia homens insolentes e obstinados, que apenas sentem desprezo em relação aos magistrados, aos reis, a todos enfim a quem cabe o encargo da administração pública.

É precisamente o contrário que se passa: nenhuma classe de pessoas lhes tem maior gratidão e com toda a justiça, pois a ninguém os seus préstimos são mais notórios do que aos filósofos, aos quais proporcionam as benesses de uma vida de ócio e tranquilidade.

Os filósofos, portanto, que nos seus esforços com vista a uma vida consagrada à moral só têm a beneficiar com a segurança social, veneram como a um pai o príncipe a quem devem tal benesse; têm mesmo para com ele uma dívida muito superior à dos que vivem no meio da agitação da política, pois estes, embora muito devam aos príncipes, muito também exigem deles, como gente cujas ambições, tanto maiores quanto mais são satisfeitas, liberalidade alguma pode contemplar a ponto de as deixar saciadas.

De fato, quem pensa no que está para receber, esquece com facilidade os benefícios já recebidos: o maior mal que a ambição arrasta consigo é a sua permanente ingratidão.

Acrescente-se ainda que nenhum político pensa no número de adversários que já venceu, mas apenas naqueles por quem foi vencido; para os políticos é menos grato ver muitos em posição inferior à sua do que penoso lhes é ver alguém na sua dianteira. É este um vício comum a toda a espécie de ambição: nunca olhar para trás.

Aliás, não é somente a ambição que é instável, mas todo o tipo de desejo, porquanto sempre começa pelo fim. Em contrapartida, o homem sincero e puro que abandona o senado, o foro e todos os demais cargos administrativos do Estado, esse homem só sente estima pelo príncipe que lhe permite a libertação, apenas esse homem pode testemunhar desinteressadamente em favor do príncipe e ter em relação a ele, sem que este o saiba, uma enorme dívida de gratidão (1).

O filósofo tem pelos mestres a quem ficou devendo a libertação do caminho do erro toda a veneração e respeito; o mesmo sente ele em relação ao príncipe, à sombra de cuja proteção pode dedicar-se aos seus elevados estudos!

“Mas um rei não se limita a dar a sua proteção aos filósofos.”

É evidente que não. Mas vejamos. Imagina que Neptuno proporcionou a uma travessia marítima a mais completa calmaria: não é verdade que, em idênticas circunstâncias, um homem cujo navio transportava uma carga maior e mais preciosa se mostrará mais grato para com o deus? Não é verdade que o mercador pagará mais pressurosamente a promessa feita do que o simples passageiro? Não é verdade que, mesmo entre os mercadores, se lhe mostrará muito mais grato aquele que transportava perfumes, púrpuras e outros bens pagáveis a peso de ouro do que um outro cuja carga quase nada valia e quase só servia para lastro?

Pois com os filósofos a situação é a mesma: o benefício da paz, embora extensível a todos, sentem-no mais profundamente os que dela sabem usar. De entre os nossos concidadãos muitos há que despendem mais energia em tempo de paz do que em tempo de guerra: gente que aproveita a paz para se entregar à bebida, à luxúria e a outros vícios – que até a guerra forçaria a interromper! – crês tu que a sua dívida de gratidão seja idêntica à do filósofo?

A menos que se dê o caso de tu imputares ao sábio a injustiça de pensar que em relação aos benefícios comuns a todos lhe não cabe igualmente uma dívida de gratidão pessoal. Eu sinto-me muito devedor dos benefícios do sol e da lua, embora estes astros não nasçam para meu benefício exclusivo; sinto-me particularmente obrigado em relação ao ciclo do tempo e à divindade que o governa, embora não fosse para meu exclusivo proveito que as estações foram discriminadas(2)

estúpida avareza dos homens estabelece uma distinção entre a posse em comum e a posse em privado, e por isso ninguém considera verdadeiramente seu o que é de propriedade pública.

O sábio, pelo contrário, nada considera como mais seu do que aquilo cuja posse é comum a todo o genero humano.

De resto, esta espécie de bens não poderia ser de fato comum se uma parte dela não fosse propriedade de cada um. A posse de um bem – ainda que numa ínfima parte – em comum faz com que surja a sociedade.

Acrescenta ainda mais isto: os bens importantes e autênticos não são divisíveis de modo a que cada homem obtenha só uma pequena porção: chegam às mãos de cada um na sua totalidade.

Numa distribuição de salários, cada homem levará aquilo que a cada um foi atribuído; num banquete, numa refeição vulgar – tudo aquilo de que nos apropriamos “fisicamente” pode ser divisível em partes.

Mas a paz e a liberdade são bens indivisíveis, são propriedade total tanto de todos como de cada um. O filósofo, portanto, considera a quem deve o uso e o benefício destes bens – a quem deve o fato de as necessidades públicas o não chamarem às fileiras, às vigílias, à defesa das muralhas, ao pagamento de impostos de guerra – e dá graças ao príncipe que assim o governa (3)

Uma máxima fundamental da filosofia é esta: ser escrupuloso tanto a receber como a retribuir um benefício. Ocasionalmente, para o retribuir será bastante reconhecê-lo. O sábio, por conseguinte, reconhecerá a sua imensa dívida ao príncipe cuja administração e supervisão lhe facultam o ócio produtivo, a liberdade de usar o seu tempo, e uma tranquilidade que as ocupações públicas não vêm perturbar.

Ó Melibeu, um deus foi quem nos proporcionou este ócio, pois um deus para mim será esse homem sempre! Vergílio, Buc., i, 6-7.

Se este ócio de que fala Vergílio deve muito ao homem que o facultou, quando o seu principal proveito consiste em que

esse homem, como vês, permite que as minhas vacas deambulem enquanto eu, na minha agreste flauta, toco o que me aprazVergílio, ibid., 9-10.

não é verdade que muito maior valor devemos nós atribuir a um ócio que nos faz viver entre os deuses, que faz de nós deuses?

Isto é o que eu penso, amigo Lucílio, e, para exemplificação, convido-te a acompanhar-me ao céu! Sêxtio costumava afirmar que o poder de Júpiter não é superior ao do homem de bem.

Júpiter tem à sua disposição maior quantidade de benefícios a prestar aos homens; entre dois homens de bem, todavia, não é melhor o que for mais rico, tal como entre dois timoneiros igualmente expertos na sua arte não diremos que um deles é superior por o seu navio ser maior e mais belo!

Em que é Júpiter superior a um homem de bem? Apenas em que a sua bondade dura mais! O sábio em nada se considera inferior só porque as suas virtudes estão circunscritas a um menor espaço de tempo.

De entre dois sábios, aquele que tiver morrido mais velho não é mais feliz do que o outro, cuja vida de virtude foi truncada mais cedo; do mesmo modo nenhum deus ultrapassa o sábio em felicidade, embora o ultrapasse em duração; ora a virtude não é maior só pelo fato de durar mais tempo.

Júpiter possui tudo, mas desse “tudo” transmite a posse a outros: Júpiter só pode usar dos seus bens no sentido de ser causa de todos os usarem. Quanto ao sábio, vê todos os bens serem usados pelos outros com a mesma equanimidade e indiferença que Júpiter, e tem muito maior respeito por si próprio, porque enquanto Júpiter não usa desses bens porque não pode, o sábio não os usa porque não quer! Podemos, portanto, acreditar em Sêxtio quando este nos aponta o caminho, dizendo que

Por por esta via se e chega ate as estrelasVergílio, Aen., IX, 641 (cf. supra carta 48, 11). , que esta é que é a via da frugalidade, da temperança, da coragem.

Os deuses não nos desprezam nem invejam, antes nos admitem à sua presença e nos estendem a mão para ajudar-nos a subir! Admiras-te que um homem possa ascender à presença dos deuses? A divindade é que vem até junto dos homens e mesmo, para lhes ficar mais próxima, penetra até ao interior dos homens, pois sem a presença divina não é possível existir a virtude!

As sementes divinas existem dispersas no corpo humano: se forem tratadas por quem as saiba cultivar, elas crescerão à semelhança da sua origem, desenvolver-se-ão em plano idêntico ao da divindade de que provieram; mas se caírem nas mãos de um mau cultivador então este, tal como um terreno estéril e pantanoso, matá-las-á, produzindo ervas daninhas em vez de searas.

Passar Bem!

(1) O abandono do Senado, etc., foi o que Séneca fez a panit de 62, para o que achou por bem ter uma longa conversa com Nero a fim de lhe dar conta da sua resolução; v. a narração do caso em Tácito, Ann., XN, 52-56.

(2) Texto corrupto; a tradução correspondente à conjecrura de Hense tempora discripta sint.

(3) Lir. “ao seu timoneiro”, imagem talvez ainda inspirada pela célebre metáfora da “nau do Estado” (Horácio, carm., I, 14).