20 de agosto de 2025

Carta 72 – Dir-te-ei agora o que significa uma alma sã.

Por lucianakeiko@gmail.com

A questão que me puseste era para mim imediatamente evidente, dado que eu tinha estudado a fundo esse assunto. Sucede, porém, que há um certo tempo tenho estado sem exercitar a memória que, por isso, me não acode com facilidade.

Passa-se comigo o mesmo que com os livros que se colam quando não são manuseados: tenho de “desenrolar” o meu espírito (1) e, sem demora, pôr em movimento todos os conhecimentos nele depositados de modo a tê-los em forma sempre que me forem necessários.

Essa tua questão, portanto, vamos adiá-la por agora, dado que ela me vai exigir considerável esforço e atenção. Quando tiver oportunidade de permanecer com certa demora no mesmo sítio tomarei o assunto entre mãos.

É que, enquanto certos temas se podem escrever mesmo quando andamos de carro, outros, pelo contrário, exigem repouso, vagar, solidão!

De qualquer modo, mesmo durante estes dias plenos de ocupações, devemos meditar sobre um tema qualquer, e isso ao longo de todo o dia. Novas ocupações é coisa que todos os dias temos: parece que fazemos sementeira delas, de uma vão sempre nascendo outras.

E o resultado é que continuamente vamos adiando os nossos estudos: “quando tiver terminado esta tarefa dar-me-ei à filosofia de alma e coração”, dizemos nós, ou então: “mal me veja livre desta maçadora tarefa vou entregar-me ao estudo!”

Ora nós não deveremos praticar a filosofia quando tivermos vagar, mas sim conseguir o máximo de vagar para podermos praticar a filosofia!

Há que pôr de lado todas as demais ocupações para nos consagrarmos a um estudo ao qual nunca será demais o tempo dedicado, ainda que a vossa vida se prolongue desde a infância até à máxima longevidade possível.

Não faz muita diferença que o estudo da filosofia seja totalmente negligenciado ou apenas cortado de interrupções; de fato, se interrompemos o estudo, nunca ficaremos no ponto em que a interrupção se deu, mas, à maneira de uma mola excessivamente esticada, voltamos ao ponto de partida, precisamente por carecermos de continuidade.

Temos de oferecer resistência às nossas ocupações, temos de as eliminar, em vez de as multiplicar. Não há ocasião alguma que seja menos oportuna para um tão salutar estudo; e apesar disso muitos homens há que o não praticam por andarem envolvidos em situações que precisamente tornam tal estudo imprescindível.

“Há-de surgir qualquer coisa que me impeça o estudo!” Não, se se tratar de alguém cujo espírito se entregue à tarefa com alegria e entusiasmo: a alegria pode sofrer interrupções no caso de pessoas ainda insuficientemente avançadas, enquanto, no caso do sábio, o bem estar é um tecido contínuo que nenhuma ocorrência, nenhum acidente pode romper; em todo o tempo, em todo o lugar o sábio goza de tranquilidade!

Porquê? Porque o sábio não depende de fatores externos, não está à espera dos favores da fortuna ou dos outros homens. A sua felicidade está dentro dele; fazê-la vir de fora seria expulsá-la da alma, que é onde, de fato, a felicidade nasce!

Pode uma vez por outra surgir qualquer ocorrência que lembre ao sábio a sua condição de mortal, mas ocorrências deste tipo são de somenos importância e não o atingem mais do que à flor da pele.

O sábio, insisto, pode ser tocado ao de leve por um ou outro contratempo, mas para ele o sumo bem permanece inalterável. Volto a dizer que lhe podem ocorrer contratempos provindos do exterior, tal como um homem de físico robusto não está livre de um furúnculo ou de uma ferida superficial; em profundidade, porém, não há mal que o atinja.

A diferença existente, insisto ainda outra vez, entre o homem que atingiu a plenitude da sabedoria e aquele que ainda lá não chegou é a mesma que se verifica entre um homem são e um convalescente de doença grave e prolongada. Para este a diminuição da intensidade da doença já quase significa saúde mas, se não se precaver, o mal rapidamente se agrava e volta à primitiva forma; o sábio, em contrapartida, nem pode retroceder, nem sequer pode avançar mais na via da sapiência. A saúde do corpo está à mercê do tempo e o médico, se a pode restituir, não a pode garantir perpetuamente, e tanto assim é que com frequência o mesmo doente o volta de novo a chamar; a saúde da alma, essa – obtém-se de uma vez por todas – e totalmente!

Dir-te-ei agora o que significa uma alma sã:

é cada um contentar-se consigo mesmo, ter confiança em si próprio, saber que todos os votos feitos pelos homens, todos os benefícios que trocam entre si não têm a mínima importância para a obtenção da felicidade.

Uma coisa passível de acréscimo não é uma coisa perfeita; o homem que quer vir a possuir uma permanente alegria, tem de fruir apenas do que efetivamente lhe pertence. Ora todos os bens a que o comum dos mortais aspira são, de uma forma ou outra, transitórios, pois de coisa alguma a fortuna nos permite a posse para sempre.

Mesmo esses bens transitórios, contudo, podem ser-nos agradáveis se estiverem sujeitos ao controlo e à influência da razão; apenas a razão pode tornar recomendáveis esses bens, cujo usufruto se revela nocivo a quem os ambiciona por si mesmos.

Átalo usava habitualmente deste símile: “já viste com certeza um cão de boca aberta, pronto a agarrar os bocados de pão ou de carne que o dono lhe atira? Cada bocado que apanha engole-o logo todo inteiro, e novamente abre a goela na esperança do mais que há-de vir. Conosco passa-se o mesmo: pomos imediatamente de lado tudo quanto a fortuna nos atira para satisfação das nossas expectativas, e ficamos ansiosos e embasbacados à espera de agarrar a próxima dádiva!

Atitude semelhante nunca o sábio a tem: o sábio goza de plenitude; é com plena segurança que recebe ou restitui os dons da fortuna; usufrui de uma alegria inexcedível, permanente, sua, para sempre.

Um homem dotado de boa vontade, já algo avançado na prática da filosofia mas muito distante ainda da plenitude, pode deixar-se afetar pelas alternâncias da sorte, sentindo-se umas vezes elevado até ao céu e outras completamente prostrado por terra.

Quanto àqueles que por completo são destituídos de estudos filosóficos, a sua queda no abismo não conhece limite: tudo se passa como se tombassem no caos de Epicuro, no vazio sem fronteiras! Epicuro, fr. 270, 272, 273 Usener.

Há ainda um terceiro género de homens: o daqueles que se iniciaram na filosofia mas ainda a não dominam; têm-na, todavia, como meta já visível, já passe a expressão – ao alcance da mão! Este tipo de homens já se não deixará abater, já avançou demais para retroceder: eles não pisam ainda a terra firme, mas já se encontram dentro do porto!

Dado que há, como vimos, uma tão grande diferença entre o tipo superior e o tipo inferior de homens; dado que mesmo o tipo intermédio está sujeito às suas flutuações, nomeadamente ao perigo gravíssimo de regressar aos hábitos nocivos, impõe-se esta conclusão: nós não devemos ceder às nossas ocupações! Temos de nos livrar delas; se as deixarmos tomarem conta de nós, então, quando umas cessarem outras virão tomar o seu lugar!

Façamos por as recusar liminarmente; melhor é não começar a praticá-las do que ter de pôr-lhes fim abruptamente!

Passar Bem!

(1) O livro antigo era um rolo de papiro, ou pergaminho, que se ia desenrolando à medida que prosseguia a leitura; daí a metáfora.