Carta 7 – Refugia-te em ti próprio quanto puderes
Queres saber qual é a coisa que com maior empenho deves evitar? A multidão! Ainda não estás em estado de frequentá-la em segurança.
Eu confesso-te sem rodeios a minha própria fraqueza: nunca regresso com o mesmo caráter com que saí de casa; algo do que já pusera em ordem é alterado, algo do que já conseguira eliminar, regressa!
O mesmo que sucede aos doentes que uma longa debilidade não deixa ir a parte alguma sem recaída, nos acontece, a nós, cujo espírito se está refazendo de uma prolongada enfermidade.
É-nos prejudicial o convívio com muita gente: não há ninguém que nos não pegue qualquer vício, nos contagie, nos contamine sem nós darmos por isso.
Por isso, quanto maior é a massa a que nos juntamos, tanto maior é o perigo. E nada há tão nocivo aos bons costumes como ficar a assistir a algum espectáculo, pois é pela via do prazer que os vícios se nos insinuam mais facilmente.
Que pensas tu que eu quero dizer? Que regresso mais avaro, mais ambicioso, mais propenso ao luxo? Mais do que isso: venho mais cruel e mais desumano de ter estado em contato com os homens.
Fui casualmente assistir ao espectáculo do meio-dia, à espera de encontrar algo de ligeiro, de divertido, algo que descansasse os olhares dos homens da vista do sangue humano.
Foi o contrário que encontrei : todas as lutas anteriormente realizadas foram atos de misericórdia; a esta hora, sem artifícios alguns, o que há são puros homicídios. Os lutadores não têm protecção alguma; todo o seu corpo está patente aos golpes, e nenhum golpe é desferido em vão.
Muitos espectadores preferem isto aos combates entre pares de gladiadores normais, e favoritos do público.
E como não hão-de preferir? Não há elmo nem escudo que se oponha ao ferro do adversário! Armas defensivas para quê? Técnica para quê? Tudo isso só serve para retardar a morte.
Atiram-se homens aos leões e ursos de manhã, aos próprios espectadores ao meio-dia! Os assassinos enfrentam aqueles que os hão-de assassinar, e cada vencedor é reservado para morrer mais tarde.
Para estes lutadores a única saída é a morte.
Matam-nos a ferro e fogo. É isto o que se passa nos intervalos do circo.
“Mas este homem cometeu um crime, um homicídio”.
E então? Se ele matou alguém, mereceu o castigo por que está passando; mas tu, infeliz, o que fizeste para merecer ver isto?
“Mata, fere, queima! Porque se lança ele tão debilmente contra o ferro do adversário? Porque mata ele o outro com tão pouca resolução? Levem-nos ao combate à chicotada, recebam frontalmente os golpes um do outro com o peito descoberto!”
Interrompe-se o espectáculo:
“enforquem alguns homens entretanto, para fazer qualquer coisa”.
Ora bem, não compreendeis que os maus exemplos redundam em prejuízo daqueles que os dão? Agradecei aos deuses imortais por terdes de ensinar a crueldade a quem não a pode aprender por si.
Há que subtrair à influência do vulgo o ânimo fraco e pouco firme na virtude: facilmente se passa para o lado do maior número. Sócrates, Catão, Lélio – uma multidão inteiramente antagónica poderia abalar o seu carácter.
Digo-te mais: mesmo nós e se nós nos esforçamos por robustecer o nosso carácter! – , nenhum de nós seria capaz de fazer frente à avalanche dos vícios no meio de uma turba.
Um só exemplo de luxo ou de avareza basta para provocar muito mal: um companheiro de mesa de gosto sofisticado acaba por nos tirar a energia e austeridade, um vizinho rico excita os nossos desejos, um amigo perverso propaga a sua peste por muito puros e simples que sejamos: que pensas tu que sucederá àqueles costumes para que nos arrasta a multidão?
É forçoso ou que os imites, ou que os odeies. Ambas as atitudes, porém, são de evitar: nem te deves assemelhar aos maus porque são muitos nem tornar-te inimigo de muitos porque são diferentes.
Refugia-te em ti próprio quanto puderes; dá-te com aqueles que te possam tornar melhor, convive com aqueles que tu possas tornar melhores.
Há que usar de reciprocidade: enquanto se ensina aprende-se também. Por vão desejo de tornares conhecido o teu talento não deves misturar-te com o público a ponto de desejares fazer leituras ou participar em debates.
Aconselhar-te-ia a fazê-lo se tivesses mercadoria adequada a esta gente; mas entre ela não há quem pudesse entender-te. É possível que casualmente apareça um ou outro de cuja formação e educação te devas encarregar até o elevares ao teu nível.
“Mas então, em proveito de quem estudei eu?” Não tenhas receio: se tiveres estudado em teu proveito não terás perdido o tempo.
E para que os meus estudos de hoje não tenham sido só em meu proveito, vou-te citar três pensamentos notáveis que encontrei, mais ou menos com o mesmo sentido.
Um servirá para pagar o tributo desta carta, os outros dois recebe-os como adiantamento. Afirma Demócrito:
“um só homem vale para mim um povo, um povo vale tanto como um só homem”
Também tinha razão aquele autor (sobre cuja identidade se discute) que, ao perguntarem-lhe por que se aplicava com tanto empenho num tratado que seria acessível a tão poucos, respondeu: “para mim, basta-me que sejam poucos, basta-me que haja só um leitor, basta-me que não haja nenhum”.
Em terceiro lugar há este dito notável de Epicuro, em carta dirigida a um dos seus companheiros de estudos:
“eu não escrevi isto para muitos, mas sim para ti; contemplarmo-nos um ao outro é espetáculo suficiente”.
Estes pensamentos, caro Lucílio, tens que interiorizá-los, para reprimir o prazer oriundo do aplauso da multidão.
Quando muitos te cobrirem de louvores, verifica se ainda tens motivo de agrado ante ti próprio, já que és homem que muitos possam entender!
Os teus autênticos bens são apenas do foro íntimo.
Passar bem!