19 de julho de 2025

Carta 40 – Como pode então servir para governar os espíritos uma eloquência incapaz de governar-se a si própria?

Por lucianakeiko@gmail.com

Agradeço-te a frequência com que me escreves, pois é esse o único meio de que dispões para vires à minha presença. Nunca recebo uma carta tua sem que, imediatamente, fiquemos na companhia um do outro.

Se nós gostamos de contemplar os retratos de amigos ausentes como forma de renovar saudosas recordações, como consolação ainda que ilusória e fugaz, como não havemos de gostar de receber uma correspondência que nos traz a marca autêntica, a escrita pessoal de um amigo ausente? A mão de um amigo gravada na folha da carta permite-nos quase sentir a sua presença – aquilo, afinal, que sobretudo nos interessa no encontro direto.

Dizes na tua carta que foste ouvir as conferências do filósofo Serapião aquando da sua passagem pela Sicília.

“As palavras saem-lhe em catadupa, a sua dicção não é uniforme, os vocábulos como que se empurram e atropelam; são palavras a mais para que uma só garganta lhes possa dar vazante!”

Não posso aprovar isso num filósofo, cuja dicção, tal como a própria vida, deve ser metodicamente ordenada; e não pode haver ordem quando se fazem as coisas com precipitação.

Por isso mesmo é que Homero atribuiu ao seu orador jovem uma eloquência cerrada, sem pausas, que lhe vinha aos lábios como se de flocos de neve se tratasse; ao orador ancião, porém, a palavra fluía calma e mais doce do que o mel (1)

Fica sabendo, esse modo de falar atabalhoado e impetuoso está muito bem para um charlatão, mas não para um homem que pretende tratar – e ensinar! Um assunto importante e sério.

Um filósofo, penso eu, nem deve falar a conta-gotas nem a correr; não deve obrigar-nos a apurar os ouvidos, tal como não deverá atordoá-los. Um modo de falar indolente e sem vigor diminui a atenção dos ouvintes, enfastiados pela lentidão, pelas interrupções constantes; no entanto, uma palavra que se faz esperar retém-se mais facilmente do que uma que voa e mal se ouve.

Por outro lado, os filósofos devem transmitir preceitos aos discípulos; ora não é verdadeiramente transmitido um preceito dado a fugir. Acrescenta ainda que um estilo orientado para a verdade não deve ocupar-se de ornatos e de figuras.

A eloquência vulgar, essa não se orienta minimamente para a verdade. O seu propósito é agitar a multidão, atrair auditores pouco cultivados graças a impetuosas tiradas; não se presta a uma análise cuidada, é feita de arrebatamentos.

Como pode então servir para governar os espíritos uma eloquência incapaz de governar-se a si própria?

Mais ainda: um estilo oratório que visa a transformação das mentalidades deve descer até ao mais fundo de nós mesmos, pois os remédios só são profícuos quando a sua ação se prolonga.

O estilo comum é feito de vazio inútil, faz barulho mas carece de vigor. Ora o que eu necessito é de apaziguar os meus receios, de dominar as paixões que se excitam, de eliminar os meus erros, de reprimir a minha luxúria, de aniquilar a minha avareza: qual destas tarefas pode ser feita de repelão? Qual é o médico que trata os seus doentes de passagem? E nem ao menos se pode sentir prazer perante uma tal . Verborreia estrepitosa e desordenada!

Há muitos truques que julgaríamos impossíveis antes de os ter visto realizar; com estes prestidigitadores de palavras, basta ouvi-los uma vez para ficarmos a conhecê-los. O que há neles que se possa querer aprender ou imitar? Que juízo se pode fazer sobre o espírito de homens cujo estilo não passa de palavreado sem ordem e sem freio?

Quando corremos por uma ladeira abaixo não conseguimos deter-nos onde queríamos, mas, levados involuntariamente pela força da velocidade adquirida, vamos parar mais longe do que desejávamos; do mesmo modo a elocução apressada não só é incapaz de dominar-se a si mesma, como está aquém da dignidade da filosofia, a qual deve ir “colocando”, e não “atirando”, o seu discurso, numa marcha calma e segura.

“Que dizes? Então a filosofia não pode ocasionalmente usar um estilo mais arrebatado?” Claro que pode, mas sem prejuízo da sua dignidade moral, que é comprometida precisamente por uma eloquência violenta e demasiado brutal.

O estilo filosófico deve ter força, mas sem perder a moderação; deve ser um rio a fluir, e não uma torrente! Mesmo num orador me custaria a aceitar uma tal velocidade de elocução, incapaz de retomar o curso das ideias, espraiando-se sem qualquer retenção.

Como poderia, aliás, um juiz seguir a linha da argumentação, sobretudo se fosse um homem pouco dotado e ainda inexperiente? Quando o desejo de se exibir ou a paixão irrefreável do orador o levarem a falar com agitação, mesmo assim a sua velocidade de dicção não deve ser tanta que impeça o auditório de acompanhá-lo.

Só farás bem, portanto, se evitares escutar esses “filósofos” a quem interessa mais a quantidade do que a qualidade do que dizem. Se tal for necessário, andarás bem falando como P. Vinício.

“E como falava ele?” (2)

Quando perguntaram a Asélio como achava a dicção de Vínício a resposta foi:

“Arrastada!”

Gémino Valério, por seu lado, comentou:

“Não percebo como chamam eloquente a este homem! Não é capaz de dizer três palavras de seguida! ….””

Mas tu, porque não haverias de preferir falar como Vinício? Por medo de que te aparecesse algum brincalhão, como aquele que, vendo Vinício a arrancar as palavras uma a uma como se, em vez de falar, estivesse a ditar, comentou: “Diz qualquer coisa! Quando te decides a dizer alguma coisa? “(2) Quanto ao estilo “em passo de corrida” de Q. Hatério, o mais célebre orador da sua época, gostaria que qualquer homem sensato o evitasse o mais possível. Hatério não tinha hesitações, não fazia pausas: começava a falar e acabava, tudo de um fôlego!

De resto, entendo que certos estilos podem ser mais ou menos convenientes conforme os povos. Entre os Gregos, por exemplo, já este estilo seria admissível, ao passo que nós temos o hábito de fazer pausas mesmo ao escrever. Até mesmo o nosso Cíceroo homem que elevou ao cume a eloquência romana, andava a passo.

O estilo romano é mais circunspecto; sabe avaliar o seu valor, e submete-se à avaliação dos outros. Fabiano, homem notável tanto pela integridade da sua vida como pelos seus conhecimentos, e também pela eloquência (mas esta qualidade só após as outras se deve considerar), sabia discutir com à-vontade, mais do que com entusiasmo; da sua linguagem poderia dizer-se que era fácil, não que era veloz.

Tal facilidade, eu aceito-a, mas não a exijo, da parte de um sábio. Desde que o seu discurso se desenvolva sem entraves, prefiro que decorra com calma e não com excessiva abundância.

Tenho tanta mais razão para afastar-te deste vício da oratória quanto mais vejo que não poderás atingir a eloquência sem perda do respeito que deves a ti mesmo: terás de assumir um ar natural, não prestar atenção ao que dizes pois fugindo à tua vigilância, o teu ímpeto oratório levar-te-á a dizer muita coisa que gostarias de poder não ter dito.

Repito que nunca alcançarás a eloquência sem menosprezo da tua dignidade. Além do mais é uma arte que exige treino diário, ou seja, em vez de te ocupares de coisas, passarias a ocupar-te de palavras! E ainda que as palavras te não faltassem e te ocorressem ao espírito sem o menor esforço da tua parte, mesmo assim haveria que tomar as rédeas ao discurso, pois a um sábio tanto convém uma apresentação bastante modesta como uma linguagem concisa e sem audácias.

Para terminar, a súmula dos meus conselhos é esta: sê lento a falar!

Passar Bem!

(1) Ilíada, III, 222 (sobre a eloquência de Ulisses, o “orador jovem”) !, 249, (sobre Nestor, o “Orador ancião”).
(2) Todo o texto, entre estes dois pontos, é pouco seguro’