15 de julho de 2025

Carta 36 – A fortuna não tem poder sobre o carácter.

Por lucianakeiko@gmail.com

Incita esse teu amigo a animosamente não ligar importância a quem o censura por se acolher à obscuridade da vida privada, por desistir das suas grandezas, por ter preferido a tranquilidade a tudo o mais, apesar de poder ainda avançar na sua carreira.

Mostra a essa gente que ele trata diariamente dos próprios interesses da forma mais útil. Aqueles que pela sua posição elevada suscitam a inveja geral nunca vivem em terreno firme: uns são derrubados, outros caem por si.

Esse tipo de felicidade nunca conhece a calma, antes se excita sempre a si mesma. Desperta em cada um ideias de vários tipos, move os homens cada qual em sua direção, lança uns numa vida de excessos, outros numa vida de luxúria, a uns enche-os de orgulho, a outros de moleza, mas a todos igualmente destrói.

Dirás tu: “Há, todavia, quem aguente bem uma felicidade desse género”. Pois há, assim como há quem aguente bem o vinho. Por isso não existe o mínimo fundamento para te deixares persuadir que alguém é feliz pelo fato de viver rodeado de clientes; os clientes não buscam nele senão o mesmo que buscam num lago: beber até fartar e deixar a água suja!

O vulgo julgá-lo-á um homem sem valor, sem atividade!” Bem, mas tu sabes como há pessoas que usam incorrectamente a linguagem e dizem tudo ao contrário.

Anteriormente diziam-no um homem feliz. Pois bem, será que ele era mesmo feliz? Pode haver quem o julgue um homem de carácter demasiado duro e sombrio, isso não me preocupa minimamente.

Dizia Aríston que preferia um jovem taciturno aos jovens risonhos e bem acolhidos na sociedade. Também um vinho que a princípio parece espesso e áspero acaba por tornar-se excelente, enquanto aquele que na pipa nos parece agradável não suporta o envelhecimento.

Não te importes, portanto, que lhe chamem taciturno, que o digam desinteressado em progredir na vida: com o passar do tempo essa taciturnidade dará bons frutos, desde que ele continue a praticar a virtude, a embeber-se nos estudos liberais, não aqueles estudos de que um conhecimento superficial nos basta (1), mas aqueles outros com os quais devemos mesmo impregnar a nossa alma.

É esta a altura própria para aprender. “Que dizes? Há então, alguma hora em que não devamos aprender?” Não há; somente, se em qualquer idade é correto nós estudarmos, já nem em todas é próprio aprender as primeiras letras.

Um velho na escola primária é vergonhoso e ridículo: devemos é adquirir em jovens os conhecimentos a utilizar na velhice! Em suma, será uma tarefa da maior utilidade para ti aperfeiçoares tanto quanto possível o carácter do teu amigo; costuma dizer-se destes benefícios que tanto devem solicitar-se como prestar-se; é indubitável que são benefícios de primeira grandeza, tão úteis quando se prestam como quando se aceitam.

De resto, o teu amigo já não é livre de recuar: ele comprometeu-se. E é menos escandaloso declarar falência ante um credor do que ante as boas esperanças prometidas … Para pagar uma dívida em dinheiro o comerciante depende de que o mar permita terminar com sucesso a expedição, o agricultor está dependente da fertilidade da terra cultivada e dos caprichos do clima; para pagar a sua, o teu amigo somente pode recorrer à própria vontade. A fortuna não tem poder sobre o carácter.

Ele que forme o ‘ carácter de modo a que a sua alma atinja na maior tranquilidade aquele estado de perfeição no qual já nada lhe pode causar nem detrimento nem proveito, antes se conserva inalterável, aconteça o que acontecer: se lhe forem proporcionados alguns bens próprios do vulgo, ele elevar-se-á acima dos seus pertences, se o acaso o privar de alguns destes, ou mesmo de todos, não ficará diminuído por isso.

Se o nosso homem fosse natural da Pártia, logo em garoto teria começado a retesar o arco; se nascesse na Germânia, ainda criànça começaria a lançar o dardo ligeiro; se tivesse nascido no tempo dos nossos avós teria aprendido a montar e a lutar com o inimigo corpo a corpo. Cada povo tem o seu método específico, que recomenda, e mesmo impõe, aos seus jovens.

Qual o tema de meditação adequado para o nosso homem? Que o melhor remédio contra todas as armas, contra todos os tipos de inimigo, consiste no desprezo pela morte! Ninguém duvida de que a morte tenha em si algo de assustador e contrário ao nosso sentimento natural, que nos conduz a amar a vida.

De fato não seria necessário prepararmo-nos insistentemente para uma situação em direção à qual caminhássemos por um instinto natural, semelhante ao instinto de conservação que todos possuimos.

Ninguém necessita de aprender a, se for necessário, deitar-se de boa vontade num leito de rosas! Pelo contrário, é preciso um treino rigoroso para que alguém se mantenha firme sob a tortura, para que, em caso de necessidade, fique em pé mesmo ferido, de sentinela ao acampamento, sem encostar-se sequer à lança, pois numa situação destas o mais frágil ponto de apoio torna-se propício ao sono.

A morte não tem em si nada de nocivo, porquanto uma coisa, para ser nociva, deve primeiro existir!

Se tens assim um tão grande desejo de uma vida mais longa, pensa então que nada daquilo que se escapa aos nossos olhos para mergulhar na natureza (da qual tudo proveio e à qual tudo em breve há-de regressar) se destrói por completo; as coisas cessam, mas não se perdem; a morte – que nos enche de terror, que nós nos recusamos a aceitar – interrompe a vida, mas não lhe põe termo; virá um dia em que novamente veremos a luz, num regresso à vida que muitos recusariam sem o prévio esquecimento da vida passada! Noutra oportunidade explicar-te-ei mais detidamente de que modo tudo aquilo que nos parece ser destruído apenas se transforma(2)

Deve resignar-se a partir de bom grado todo aquele que está certo de um dia regressar. Observa o ciclo dos fenómenos que continuamente se repetem: verás que neste mundo nada se extingue de todo, antes alternadamente tudo se esconde e ressurge.

O verão termina, mas o próximo ano trará um novo verão; o inverno finda, mas os seus meses próprios trá-lo-ão de volta; a noite oculta o sol, mas em breve o dia expulsará a noite. No seu curso os astros voltam a percorrer o espaço por que já passaram; continuamente uma parte do céu está em movimento ascendente e a outra em movimento descendente. Vou terminar acrescentando apenas esta reflexão: as crianças de colo e os idiotas não têm medo da morte; não seria uma vergonha que a razão nos não proporcionasse a mesma imperturbabilidade a que chegam aqueles por carência de razão?

Passar bem!

(1) Sobre a posição de Séneca acerca dos estudos liberais v. a carta 88. (2) Não existe entre as cartas conservadas nenhuma em que Séneca retome e exponha sistematicamente esta questão.