Carta 26 – Não se sabe quando e onde a morte te espera; espera tu, portanto, a qualquer momento por ela!
Dizia-te eu, não há muito, que já estava à vista da velhice; agora creio bem já ter deixado a velhice lá para trás de mim! À minha idade, ou pelo menos ao meu corpo, já será adequada outra designação, pois “velhice” é o nome que se dá ao período da vida em que o homem está, embora cansado, ainda não gasto de todo.
Inclui-me, portanto, no número dos decrépitos já prestes a atingir o fim. Há, porém, uma coisa que te peço tomes em consideração: é que não sinto na alma as injúrias da idade, conquanto as sinta no corpo.
Somente envelheceram os meus vícios, tal como o corpo auxiliar desses vícios. O meu espírito conserva-se vigoroso e mostra-se contente de já pouco ter de se ocupar com o corpo, isto é, já alijou uma grande parte do seu fardo.
Mostra-se exultante, e discute comigo o problema da velhice, a qual diz ser para ele “a flor da idade”! Acreditemos nele, deixemo-lo gozar os seus bens específicos. Agora ordena-me que medite, que saiba discernir, neste meu atual estilo de vida tranquilo e modesto, a parte que cabe à filosofia e aquela que cabe à idade, que observe com atenção tudo quanto já não posso e tudo quanto já não quero fazer, considerando como indesejável aquilo que já me não é possível fazer.
De fato, qual o motivo de queixa, qual o prejuízo que vem de se ter acabado aquilo que, um dia ou outro, teria mesmo de acabar? Sei qual a tua objeção:
“É um prejuízo enorme sentirmo-nos diminuídos, depauperados, desfeitos, para em; pregar o termo exato. A velhice, é um fato, não nos abala e derruba de um só golpe, vai-nos corroendo, vai, cada dia que passa, roubando um pouco às nossas forças.”
Então haverá melhor forma de morrer do que irmo-nos desfazendo, natural e gradualmente, até chegarmos ao fim? Não quero dizer que um golpe súbito e uma morte repentina sejam qualquer coisa de mal; somente afirmo que ir perecendo a pouco e pouco é um modo mais suave de morrer.
Eu, pelo menos, como se já estivesse próximo o momento decisivo, esse dia supremo que há-de pronunciar o juízo definitivo sobre toda a minha vida, vou-me observando e dizendo a mim mesmo estas palavras:
“Tudo o que até agora fiz ou disse, de nada vale; não passam de fracos e falaciosos garantes da minha alma, disfarçados entre inúmeros adornos. O que eu tiver feito de útil, ficarei a devê-lo à morte.
Por conseguinte, preparo-me sem receios para aquele dia em que, sem artifícios ou disfarces, hei-de ajuizar sobre mim mesmo, se apenas digo grandes frases ou se as sinto, se todas as palavras corajosas que proferi contra a Fortuna foram ou não algo mais do que fingimento ou mascarada!
Não interessa a apreciação dos outros: é sempre incerta, há sempre divisão de opiniões.
Não interessam os estudos realizados durante a vida: somente a morte pronunciará sobre nós o juízo definitivo.
Esta é a minha opinião: as disputas filosóficàs, os colóquios literários, as máximas recolhidas nos textos dos sábios, as conversas eruditas – nada disto revela a verdadeira força da alma!
Até os mais medrosos são capazes de valentes discursos… O que de fato foi conseguido só se notará no momento de exalar a alma. Por mim, aceito as condições, e não temo o juízo decisivo.”
Aqui tens as palavras que digo a mim mesmo, mas toma-as como se também fossem dirigidas a ti. És mais novo do que eu, mas isso não importa: o que conta não são os anos. Não se sabe quando e onde a morte te espera; espera tu, portanto, a qualquer momento por ela!
Já estava a terminar, já a minha mão se aprontava para a fórmula final; devo, no entanto, contar as moedas e dar a esta carta o seu viático! Mesmo que eu te não diga a quem vou pedir o dinheiro emprestado, tu já calculas a que cofre vou bater … Mas espera por mim mais um pouco e eu passarei a pagar-te do meu bolso!
Entretanto o banqueiro será Epicuro, o qual nos aconselha a “meditar na morte”, ou a “atribuir a maior importância à aprendizagem da morte”, se porventura a mesma ideia se nos torna mais clara usando esta última fórmula.
Talvez tu julgues supérfluo aprender uma coisa que só utilizamos uma vez! Mas por isso mesmo é que devemos meditar nela: temos sempre que estudar uma coisa que não podemos testar se já sabemos! “Medita na morte!”: com estas palavras Epicuro manda-nos meditar na liberdade.
Um homem que aprendeu a morrer esquece o que seja a servidão: está acima, melhor dizendo, está fora do alcance de todo e qualquer poder! Que lhe importam o cárcere, os guardas, as cadeias, se tem diante de si uma porta sempre aberta?
Uma única cadeia nos tem manietados: o amor pela vida. Não o abafemos de todo, mas diminuamo-lo de modo a que, se as circunstâncias o exigirem, nada nos detenha ou impeça de estarmos preparados para fazer imediatamente o que, mais tarde ou mais cedo, teremos mesmo de fazer.
Passar Bem!