Carta 20 – Quando virá o dia em que ninguém te mentirá para te ser agradável?!
Se estás bem de saúde, se te consideras digno de seres um dia senhor de ti mesmo, fico contente.
Será minha a glória, se porventura te subtrair a esse mar de incertezas onde erras, sem esperança, à deriva. Há, porém, uma coisa que te peço, meu caro Lucílio, com todo o empenho: interioriza a filosofia no mais íntimo de ti mesmo e fundamenta a avaliação do teu progresso não em palavras que digas ou escrevas, mas sim na tua firmeza de ânimo e na diminuição dos teus desejos; comprova as palavra com os atos !
Diferente é o propósito dos declamadores que pretendem ganhar o aplauso da assistência, diferente é também o dos conferencistas que atraem a atenção dos jovens e dos ociosos pela variedade dos temas ou pela elegância da exposição; a filosofia, essa, ensina a agir, não a falar, exige de cada qual que viva segundo as suas leis, de modo que a vida não contradiga as palavras, nem sequer se contradiga a si mesma; importa que todas as nossas ações sejam do mesmo teor.
O maior dever – e também o melhor sintoma da sabedoria é a concordância entre as palavras e os atos, o sábio será em todas as circunstâncias plenamente igual a si próprio.
“Mas quem será capaz de atingir um tal nível?”
Poucos, decerto, mas mesmo assim, alguns! Não escondo que a empresa é difícil; nem te digo que o sábio avançará sempre ao mesmo ritmo, embora o rumo sempre seja o mesmo.
Auto-analisa-te, portanto, e verifica se há discordância entre a tua roupa e a tua casa, se és pródigo para contigo mas mesquinho para com os teus, se é frugal a tua ceia mas luxuosa a tua habitação. Adota de uma vez por todas uma regra de conduta na vida e faz com que toda a tua vida se conforme com essa regra. Há pessoas que se retraem em casa e que se expandem sem inibições fora dela; semelhante variedade de atitudes é viciosa, é indício de um espírito hesitante que ainda não achou o seu ritmo próprio.
Posso explicar-te, aliás, donde provém esta inconstância, esta divergência entre os propósitos e as ações. A causa é que ninguém fixa nitidamente aquilo que quer nem, se o fez, permanece fiel ao seu propósito, antes pretende ir mais além; e não se trata apenas de mudar de objetivo, acaba-se por voltar atrás e de novo cair na situação anteriormente rejeitada e condenada. Em suma, deixando as antigas definições de sabedoria e abarcando numa fórmula todo o ciclo da vida humana, acho que seria bastante dizer isto: a sabedoria consiste em querer, e em não querer, sempre a mesma coisa.
Não é necessário acrescentar, como condição, que devemos querer o que é justo, porque só é possível querer sempre a mesma coisa se essa coisa for justa.
Ora sucede que as pessoas ignoram o que querem excepto no próprio momento do querer; ninguém determina de uma vez por todas o que deve querer ou não querer; todos os dias se muda de opinião, mudança por vezes diametralmente oposta; para muitos, em suma, a vida não passa de um jogo! Quanto a ti, mantém-te fiel ao propósito que adoptaste, e assim conseguirás talvez atingir o ponto máximo, ou pelo menos um ponto tal que apenas tu compreenderás não ser ainda o máximo.
“O que será então feito de tóda esta gente que forma a minha casa quando essa casa deixar de existir?”
Quando toda essa gente deixar de se alimentar à tua custa, passará a fazê-lo à sua própria; e tu, aquilo que nunca conseguirás saber através das tuas benesses, sabê-lo-ás graças à tua pobreza: esta manterá junto de ti os amigos verdadeiros, enquanto os que te procuravam não por ti mas pelos teus bens se irão embora. Não é exato que basta isto para nos fazer amar a pobreza – o mostrar-nos quem de fato nos ama? Quando virá o dia em que ninguém te mentirá para te ser agradável?!
Dirige, pois, as tuas meditações, os teus esforços, as tuas opções para este objetivo – viveres contente contigo próprio e com os bens que de ti provêm, – e deixa a cargo da divindade todos os teus outros votos. Poderá haver uma felicidade mais ao nosso alcance? Reduz-te a uma posição humilde de que te não seja possível decair. Para te ajudar a fazer isto mais animosamente servirá o tributo desta carta, que prontamente te vou oferecer.
Podes olhar-me de revés à vontade: ainda desta vez será Epicuro o encarregado de saldar a minha dívida! Diz ele:
“Acredita no que te digo, as tuas palavras ganharão maior força se dormires numa enxerga e te vestires de andrajos, pois deste modo atestarás na prática que as tuas palavras não são apenas palavras!”
Eu sou forçado a dar outra atenção ao que diz o nosso Demétrio porque o vi seminu, deitado numa coisa a que seria exagero chamar enxerga: um tal homem não ensina a verdade, dá testemunho dela!
“Pois quê?” dirás tu. – “Não é possível sentir desprezo pelas riquezas que temos na nossa posse?” Claro que é possível. Um homem que as veja à sua volta, que longamente se admire como elas chegaram até si, que se ria delas e as tenha como suas, não porque as sinta como tais, mas por “ouvir dizer” – tal homem é um espírito superior. É altamente importante não nos deixarmos corromper pela vizinhança da riqueza; viver como pobre no meio da riqueza é indício de grandeza de alma.
Não sei” – objetarás – “como tal homem poderia suportar a pobreza se nela caísse de repente.” Também eu não sei, Epicuro, como o teu pobre fanfarrão desprezaria a riqueza se nela caísse de repente! Por isso mesmo, num caso e noutro, importa averiguar a verdadeira intenção; e verificar se este no fundo não gosta da pobreza e se aquele no fundo não gosta mesmo de ser rico. A enxerga e os andrajos não são indício seguro de uma mentalidade superior senão quando é evidente que eles são motivados por uma opção, e não suportados por necessidade.
Mais ainda, um caráter nobre não procura apressadamente a miséria por ser uma situação preferível; prepara-se, porém, para ela como uma situação fácil de aguentar. E é efectivamente fácil, Lucílio, e mesmo agradável, quando acedemos a ela depois de uma meditação já vinda de longe. Há na pobreza uma coisa indispensável para termos alegria: a segurança.
Julgo, por conseguinte, ser necessário fazer o que, conforme já te disse noutra carta,28 alguns grandes homens fizeram várias vezes: reservar alguns dias para, vivendo numa pobreza imaginária, nos prepararmos para a verdadeira. Coisa tanto mais necessária quanto nós, amolecidos pela vida fácil, consideramos tudo como duro e penoso.
Há que despertar do sono a nossa alma, há que espicaçá-la, há que mostrar-lhe como é exíguo o que a natureza nos concedeu. Ninguém nasce rico; no momento de vir à luz temos de contentar-nos com uma fralda e um pouco de leite: e é a partir de tais começos que chegamos a pensar que um reino é estreito para nós!. ..
Passar bem!