27 de junho de 2025

Carta 18 – Não importa se um fogo é grande, mas sim em que matéria ele pega

Por lucianakeiko@gmail.com

Estamos em Dezembro: a cidade está coberta de suor!

A ostentação desregrada invadiu toda a vida coletiva. Fazem-se estrepitosamente enormes preparativos, como se existisse alguma diferença entre o período das Saturnais e os dias úteis. O fato é que não há qualquer diferença, e por isso mesmo acho que tem toda a razão quem afirma que se Dezembro em tempos foi um mês, agora é um ano inteiro! (1)

Se estivesses aqui ao pé, de boa vontade trocaria impressões contigo sobre qual te parece a atitude a adaptar: ou não alterar em nada os nossos hábitos quotidianos, ou então, para nos não julgarem contrários aos costumes da maioria, darmos algo de animação ao jantar e abstermo-nos de usar a toga.

Na realidade, enquanto antigamente “mudávamos de roupa” em situações de grande agitação e de calamidades públicas, agora fazêmo-lo em atenção aos prazeres e aos dias de festa! (2) Se bem te conheço, no caso de teres de atuar como árbitro, não consentirias que fôssemos nem totalmente semelhantes nem totalmente diferentes da multidão de barrete frígio. (3)

A menos que consideremos dever ser sobretudo exigentes com a nossa alma em dias festivos, e sermos os únicos a renunciar aos prazeres numa ocasião em que toda a gente se lhes entrega.Será de fato uma prova segura de firmeza de ânimo não acompanhar, não se deixar guiar por um ambiente aliciador de concessões à volúpia.

Se é indício de maior constância mantermo-nos inteiramente sóbrios em meio de uma multidão ébria a ponto de vomitar, será mais moderada a nossa atitude se nos não situarmos à margem, não nos tornando notados nem nos deixando absorver na turba, isto é, se fizermos a mesma coisa mas com uma diferente disposição de espírito. Afinal de contas, é possível participar numa festa sem cair no deboche!

Tenho, aliás, tanta vontade de pôr à prova a tua firmeza de alma que, com base nos preceitos de filósofos ilustres, forjaria este outro preceito destinado à tua pessoa: fixa alguns dias intercalados nos quais mates a fome com alimentos exíguos e vulgares, e te vistas com roupa o mais possível grosseira, de modo a comentares para ti próprio: “era então disto que eu tinha medo?”

A alma deve preparar-se para as dificuldades durante os períodos de tranquilidade, deve-se fortalecer contra as injúrias da fortuna nos períodos em que ela nos sorri. Os soldados fazem manobras em tempos de paz, constroem paliçadas mesmo sem haver inimigos, treinam-se através de esforços supérfluos para serem capazes de afrontar as necessidades reais.

Se não queres que um homem entre em pânico perante uma situação concreta, treina-o antes que tal situação ocorra. Este princípio foi posto em prática por aqueles que todos os meses imitavam uma situação de pobreza a tal ponto que atingiram quase a miséria extrema, na intenção de nunca terem de recear o que de uma vez por todas aprendessem a suportar.

Não penses que me estou referindo aos jantares à moda de Tímon, aos cubículos miseráveis e a tudo o mais que os ricos, entediados da própria riqueza, fazem gala em aceitar. Não, eu quero autenticidade na tua enxerga, no teu saio grosseiro, no teu pão duro e intragável!

Leva esta vida uns três ou quatro dias, ocasionalmente mesmo por períodos mais longos, a título, não de capricho, mas de experiência. Então, Lucílio, podes crer que terás a satisfação de ver como matas a fome com dois asses (4), de compreender que, para viver em segurança, não precisamos da fortuna para nada! Mesmo quando hostil, a fortuna não nos nega o que é estritamente necessário.

Procedendo assim, de resto, não há razão para pensares que fazés uma grande coisa (fazes apenas o mesmo que muitos milhares de escravos, que muitos milhares de pobres): apenas te dá direito a gabares-te o fato de o não fazeres por coação, o fato de te ser fácil suportar para sempre aquilo que experimentaste ocasionalmente. Treinemo-nos esgrimindo contra o poste: para a fortuna nos não encontrar despreparados, façamos com que a pobreza se nos torne familiar.

Seremos ricos com muito maior tranquilidade se soubermos que não custa nada ser pobre! O grande mestre do prazer que foi Epicuro tinha alguns dias fixos em que nunca comia à sua vontade, para observar se algum detrimento daí resultava ao completo e consumado prazer, até que ponto tal detrimento se fazia sentir, e também para ver se merecia grandemente a pena eliminá-lo.

Pelo menos é o que ele diz na carta que escreveu a Polieno datada do arcontado de Carino; gaba-se mesmo que pode alimentar-se por menos de um asse, enquanto Metrodoro, ainda num estado não tão avançado, necessita de um asse inteiro. Julgas que este tipo de alimentação produz só saciedade? Produz também prazer, não um prazer ligeiro e fugaz que continuamente se tem de espevitar, mas antes um prazer constante e fixo.

Não que seja agradável viver de água, de polenta, de uma migalha de pão de centeio; mas é um prazer supremo conseguir sentir prazer em tais alimentos e atingir assim um estado ao abrigo de toda e qualquer injustiça da fortuna. Na prisão é mais abundante a comida; o carrasco alimenta com menos parcimónia os condenados à pena capital. Vê então quanta grandeza de alma há em sujeitar-se voluntariamente a uma alimentação tão parca que mesmo os condenados à morte não estão a ela reduzidos! Tal atitude equivale a despojar a fortuna das suas armas! Começa, pois, amigo Lucílio, a imitar os hábitos destes filósofos, e fixa alguns dias em que renuncies aos teus bens e te habitues a viver com o mínimo indispensável. Começa a manter relações com a pobreza:

não te esquives, meu hóspede, a desprezar a riqueza, mostra-te digno de um deus!

Nenhum outro homem é digno de um deus senão aquele que desprezou a riqueza. Não que eu te proíba a sua posse, o que pretendo é que a possuas sem ansiedade; e isto apenas o conseguirás se te convenceres que podes viver feliz sem ela, se a olhares como coisa que a todo o momento pode desaparecer!

Mas já é tempo de começar a dobrar esta carta. “Primeiro” – dizes tu – “paga o que deves”. Vou remeter-te para Epicuro, e ele que te faça o pagamento!

“Uma cólera desmesurada gera a loucura”.

É importante darmo-nos conta até que ponto isto é verdade: todos temos escravos, todos temos inimigos. Todas as pessoas são susceptíveis de arder ao fogo desta paixão, que tanto pode nascer do amor como do ódio, e que não menos ocorre em situações sérias do que entre jogos e brincadeiras.

Não interessa sequer a importância do motivo que a gera, mas sim em que tipo de caráter ela se produz. Do mesmo modo não importa se um fogo é grande, mas sim em que matéria ele pega. Construções extremamente sólidas podem permanecer incólumes, enquanto matérias secas e inflamáveis fazem uma faísca transformar-se em incêndio.

É assim mesmo, caro Lucílio: o resultado duma cólera extrema é a insânia, e por isso há que evitar a cólera, não tanto por obediência à moderação, como para conservar a sanidade mental!

Passar bem!

(1) As Saturnais (v. livro I nota 29) comportavam elementos que em parte correspondem às nossas festas de Natal (a troca de presentes) e em parte (a licenciosidade) se aproximam do Carnaval. Na Apocol., Séneca diz que Cláudio “qual príncipe de Carnaval, celebrava o mês de Saturno durante o ano inteiro” (8.2), e mais adiante comenta a tristeza dos adeptos do imperador falecido dizendo: “eu bem vos dizia que o Carnaval não havia de durar sempre!” (12.2)

(2) Antigamente, trocava-se a toga pelo trajo militar em períodos de guerra (“agitação”), ou por roupa de luto (“calamidades”); agora, só se usa roupa de festa, em especial adequada para os banquetes! Cf. Marcial, V, 79: “Durante um só banquete, ó Zoilo, levantaste-te onze vezes, para onze vezes ires trocar a túnica festiva, não fosse a tua veste ficar húmida de suor ou uma corrente de ar fazer mal à tua cútis! Por que é que eu janto contigo, ó Zoilo, e não fico a suar? Porque a minha única veste dá-me frescura que baste!”

(3) O barrete frígio (pilleus) era usado especialmente nos dias de festa (nomeadamente nas Sarurnais); aos escravos libertos dava-se usualmente um destes barretes, como sinal da sua nova condição de homens livres, e é a este hábito que Séneca aqui faz alusão.

(4) É, naturalmente, impossível tentar uma equivalência entre as moedas romanas e valores atuais. De qualquer modo “dois asses” é uma importância ridícula, tal como nós poderíamos dizer “dois tostões”.