Carta 16 – O objetivo da filosofia consiste em dar forma e estrutura à nossa alma
Tenho a certeza, Lucílio, que é para ti uma verdade evidente que ninguém pode alcançar uma vida, já não digo feliz, mas nem sequer aceitável sem praticar o estudo da filosofia; além disso, uma vida feliz é produto de uma sabedoria totalmente realizada, ao passo que para ter uma vida aceitável basta a iniciação filosófica.
Uma verdade evidente, todavia, deve ser confirmada e interiorizada bem no íntimo através da meditação quotidiana: é mais trabalhoso, de fato, manter firmes os nossos propósitos do que fazer propósitos honestos.
É imprescindível persistir, é preciso robustecer num esforço permanente as nossas ideias, se queremos que se tranforme em sabedoria o que apenas era boa vontade.
Por esta razão não precisas de gastar comigo tantas palavras nem de fazer tão longas profissões de fé: eu sei que tu já progrediste bastante. Sei bem de que fonte nascem as tuas palavras, que nem são fingidas nem exageradas. Dir-te-ei, contudo, o que penso: espero muito de ti, mas não confio ainda totalmente.
Aliás quero que tu faças o mesmo comigo, ou seja, que não acredites no que te digo com excessiva prontidão. Observa-te a ti mesmo, analisa-te de vários ângulos, estuda-te. Acima de tudo verifica se progrediste no estudo da filosofia ou no teu próprio modo de vida. A filosofia não é uma habilidade para exibir em público, não se destina a servir de espectáculo; a filosofia não consiste em palavras, mas em ações.
O seu fim não consiste em fazer-nos passar o tempo com alguma distração, nem em libertar o ócio do tédio. O objetivo da filosofia consiste em dar forma e estrutura à nossa alma, em ensinar-nos um rumo na vida, em orientar os nossos atos, em apontar-nos o que devemos fazer ou pôr de lado, em sentar-se ao leme e fixar a rota de quem flutua à deriva entre escolhos.
Sem ela ninguém pode viver sem temor, ninguém pode viver em segurança. A toda a hora nos vemos em inúmeras situações em que carecemos de um conselho: pois é a filosofia que no-lo pode dar. Haverá quem diga:
“De que me serve a filosofia se existe o destino? De que me serve ela se há um deus que tudo dirige? De que me serve ela se tudo obedece ao acaso? De fato, tão impossível é alterar o que está predeterminado como tomar providências em relação ao que é incerto, pois ou as minhas decisões já foram antecipadas por um deus que me indicou como agir, ou então é a fortuna que nada deixa entregue ao meu arbítrio”.
Qualquer que seja, caro Lucílio, o valor destes argumentas, e mesmo que todos sejam válidos, devemos praticar a filosofia. Quer nos determine a lei inexorável do destino, quer algum deus moderador do universo ordene todos os acontecimentos, quer seja o acaso que, desordenadamente, empurre aos baldões o curso da vida humana, a filosofia deverá proteger-nos.
Ela nos incitará a obedecer espontaneamente à divindade, a resistir a pé firme à fortuna; ela nos ensinará a seguir a divindade, ou a suportar o acaso.
Mas não é agora oportuno começar a discutir os limites do nosso arbítrio no caso de haver uma providência ordenadora, de o curso do destino nos arrastar manietados, ou de predominarem as ocorrências súbitas e casuais.
Agora regresso ao meu ponto de partida : aconselhar-te com todo o empenho que nunca deixes esmorecer ou esfriar o ímpeto que te vai na alma. Conserva-o, dá-lhe forma, de modo a que esse ímpeto de hoje se torne configuração permanente da tua alma.
Se bem te conheço, desde o início estás à procura do presentinho que esta carta te leva: sacode-a bem, e encontrá-lo-ás. Não te admires da minha generosidade: até agora estou sendo pródigo… de bens alheios. Mas porquê dizer “alheios”? Qualquer boa máxima, seja qual for o autor, é minha propriedade. Aqui tens, pois, outra sentença de Epicuro:
“Se viveres conforme a natureza, nunca serás pobre; se viveres conforme a opinião do vulgo, nunca serás rico”
As exigências da natureza são exíguas; imensas, as da opinião do vulgo. Pode acumular-se nas tuas mãos a riqueza de muitos milionários; pode a fortuna dar-te um nível económico superior ao normal, cobrir-te de ouro, vestir-te de púrpura, elevar-te a um tal grau de luxo e requinte que caminhes sobre mármores, sem nunca veres um grão de terra; pode vir a ser-te possível calcar aos pés a riqueza, e não só possuí-la; podes ainda acrescentar estátuas, e pinturas, e tudo quanto as artes do luxo sabem produzir: tudo isto só te ensinará a desejar ainda mais.
Os desejos naturais são limitados; aqueles que são gerados por falsas opniões não conhecem limite algum, porquanto a falsidade não tem termos.
Quem caminha por uma estrada chega sempre ao fim; o erro, esse não conhece medida. Afasta-te, portanto, dos vãos desejos. Quando quiseres saber se o teu desejo é de origem natural, ou se provém de falsa opinião, vê se ele pode encontrar um limite: se, por muito que obtenhas, é sempre mais o que te falta ainda obter, então podes ter a certeza de que é um desejo não natural.
Passar bem!