24 de junho de 2025

Carta 15 – Que te importam os outros, se te superiorizaste a ti mesmo?!

Por lucianakeiko@gmail.com

Costumavam os antigos (e o uso conservou-se até ao meu tempo) escrever logo a seguir à epígrafe das cartas estas palavras:

“Se estás de boa saúde, tanto melhor; eu estou de boa saúde.”

Quanto a nós teremos antes razões para dizer:

“se te aplicas à filosofia, tanto melhor”!

De fato é na filosofia que reside a saúde verdadeira. Sem ela, a alma estará doente e mesmo o corpo, embora dotado de grande robustez, terá somente a saúde própria dos dementes, dos frenéticos(1)

Cultiva, portanto, em primeiro lugar a saúde da alma, e só em segundo lugar a do corpo; esta última, aliás, não te dará grande trabalho se o teu objetivo apenas for gozar de boa saúde. A ginástica destinada a desenvolver a musculatura dos braços, do pescoço, do tórax, é uma insensatez totalmente imprópria dum homem de cultura: ainda que sejas bem sucedido na eliminação da adiposidade e no crescimento da musculatura nunca igualarás nem a força nem o peso de um boi gordo!

Pensa também que quanto mais volumoso for o corpo mais entravada e menos ágil se torna a alma. Por isso mesmo, limita quanto puderes o volume do teu corpo e dá o máximo espaço à tua alma! Vários inconvenientes se oferecem a quem se preocupa em excesso com o físico: por um lado o esforço exigido pelos próprios exercícios tira-nos o fôlego e deixa-nos incapazes de atenção e de aplicação a um trabalho intelectual intenso; por outro, o excesso de alimentos limita-nos a inteligência. Como mestres de cultura física recrutam-se escravos da pior extracção, homens que dividem o tempo entre o óleo(2) e o vinho – e que consideram bem sucedido o seu dia se transpiraram muito e se em compensação do suor derramado ingeriram bebidas em quantidade equivalente, e tanto mais eficazes se consumidas em jejum! Beber e suar: vida de quem sofre do estômago!

Há exercícios fáceis e breves que fatigam o corpo rapidamente e nos poupam tempo. Tais exercícios merecem sobretudo a nossa atenção: a corrida, os exercícios com halteres, os vários tipos de salto – em altura, em comprimento, o salto a que eu chamaria “à moda dos Sálios” (3) ou aquele outro que, em linguagem provocante, diria “o passo dos tintureiros”(4)

Escolhe algum destes exercícios cuja execução não é difícil! Seja qual for o teu preferido, não deixes de passar depressa do corpo para a alma: a esta, dá-lhe exercício dia e noite. O exercício físico não te exigirá grande esforço; o da alma, nem o frio ou o calor o interrompe, nem mesmo a velhice.

Cultiva, por conseguinte, um bem que vai melhorando com a idade! Não te digo que estejas sempre debruçado sobre um livro ou um bloco de apontamentos; é preciso dar à alma algum descanso, de modo tal, porém, que não perca a firmeza, apenas repouse um pouco.

Andar de liteira, obriga a movimentar o corpo e não prejudica a atividade intelectual: poderás ler, ditar, conversar, ouvir, – coisa, aliás, que o caminhar a pé também te não impede de fazer. Não deverás também desprezar a educação da voz, conquanto eu te aconselhe a não a elevares gradualmente, e segundo modulações determinadas, para depois desceres ao registo grave. Pode ser também que te venha à ideia aprenderes o modo correto de marchar!? Pois nesse caso podes socorrer-te desses homens a quem a fome ensinou novos ofícios: algum deles te corrigirá o ritmo da marcha, outro observar-te-á a boca enquanto comes, enfim, a tantos pormenores estarão atentos quantos a tua paciência crédula permitir à sua audácia!

Certamente não irás exercitar a voz começando de imediato aos gritos no tom mais agudo que puderes! O que é natural é ir elevando a voz a pouco e pouco, tal como, no tribunal, os oradores começam por falar em tom de conversa até passarem aos grandes clamores; ninguém começa desde logo por implorar a benevolência dos Quirites! (5)

Assim sendo, e de acordo com a tua disposição de momento, admoesta os teus vícios ora com mais entusiasmo, ora com mais calma, conforme a orientação que a tua própria voz te aconselhar. E quando dominares a tua entoação e a pretenderes tornar mais tranquila, faz com que ela desça gradualmente, e não de chofre; conserva um registo médio, sem aquelas bruscas alterações de tom próprio de campónios iletrados. De fato, não é para exercitar a voz que fazemos estes exercícios mas para que através dela nos exercitemos nós!

Já te libertei duma preocupação de certa importância: vai agora juntaruma pequena oferta – um dito grego – -se ao benefício que já te fiz. Aqui tens um preceito notável :

“A vida do insensato carece de atrativos e abunda em temores, já que está totalmente orientada para o futuro”

Perguntas-me quem é o autor: é o mesmo que anteriormente. O que imaginas tu que se entende por “a vida do insensato”? A vida de Baba ou de Isião? Nada disso. É da nossa vida que se trata; é de nós, que não pensamos em como é agradável não ter de pedir seja o que for, em como é sublime sentirmo-nos satisfeitos e independentes da fortuna.

Pensa continuamente, Lucílio, em todos os bens que já conseguiste obter; e quando reparares naqueles que te levam vantagem, atenta igualmente em todos os que estão abaixo de ti. Se quiseres mostrar-te grato para com os deuses e para com o que a vida te deu, pensa no grande número daqueles a quem te superiorizaste.

Mais: que te importam os outros, se te superiorizaste a ti mesmo?! Marca um limite para lá do qual não passes, ainda que o pretendesses! Afasta duma vez por todas o desejo desses bens tão ilusórios, que até é preferível apenas desejá-los sem os obter!

De resto, se neles existisse algo de concreto, eles inevitavelmente nos saciariam; o que se passa de fato é que quanto mais os saboreamos mais lhes sentimos a sede. Afastemos de nós essas miragens sedutoras: tudo aquilo que se encontra nas incertezas do futuro, por que motivo me será mais vantajoso consegui-lo da fortuna, do que eu próprio disso prescindir? E porque não prescindir? Para quê esquecer-me da fragilidade humana e pôr-me a acumular bens? Para quê penar por eles? Este dia será o meu último dia; e se acaso o não for decerto que o meu fim já não está distante!

Passar bem!

(1) Uma das ideias em que Séneca não se cansa de insistir é a oposição entre os adeptos da filosofia, ou seja, aqueles que, com maior ou menor dificuldade, tentam aproximar-se do ideal do “sábio” ( sapiens) estóico, e a grande massa dos stulti, os “insensatos, estúpidos, incultos, dementes”. Deverá entender-se que Séneca, ao usar o adjetivo stultus (“estúpido”) não está a fazer qualquer pressuposição sobre a inteligência do visado, mas tão somente a sublinhar o seu afastamento em relação ao modelo ideal da Escola.

(2) O óleo com que os atletas untavam o corpo antes dos exercícios físicos, nomeadamente a luta.

(3) O Colégio dos Sálios, confraria de sacerdotes consagrados ao culto do deus Marte, realizava anualmente no mês de Março uma procissão pelas ruas de Roma batendo nuns escudos sagrados que transportavam consigo (os ancilia) , dançando uma dança guerreira ritual e entoando em honra do deus hinos cujo texto, na época de Quintiliano, já nem os próprios celebrantes compreendiam.

(4)“passo dos tintureiros”, ou seja, o pisar dos tecidos imersos em grandes tanques, não deveria diferir muito do antigo processo de espremer as uvas calcando-as em vastos recipientes.

(5) Quirires são os cidadãos romanos na plenirude dos seus direiros civis. A captatio beneuolentiae (o apelo à benevolência do povo romano) ocorria, por norma, no rermo do discurso, quando o orador, depois de devidamenre exposta a sua argumentação, recorria à emoção a fim de conciliar o favor da assembleia.