21 de junho de 2025

Carta 12 – Organize-mos, portanto, cada dia como se fosse o final da batalha

Por lucianakeiko@gmail.com

Para onde quer que me vire, vejo indícios da minha velhice.

Tinha ido à minha quinta nos arredores e queixava-me das despesas a fazer com uma casa em ruínas. O feitor diz-me que o mal não está em falta de cuidados seus, simplesmente a casa é velha.

Ora esta casa cresceu entre as minhas mãos: como não estarei eu, se tão podres estão estas pedras da minha idade?

Irritado, aproveito a primeira ocasião para me zangar com o homem. “Parece” – digo-lhe eu :

que estes plátanos não são cuidados.
Não têm folhas nenhumas !
Olha como os ramos estão nodosos e ressequidos, como os troncos estão macilentos e sujos!
Isto não aconteceria se as árvores fossem escavadas e regadas!.

O homem jura pelo meu Genio1 que faz tudo o que é preciso, que toma todos os cuidados necessários: elas é que já são velhotas!

Aqui entre nós, fora eu que as plantara, eu que vira brotar as suas primeiras folhas.

Virei-me para a porta. “Quem é este?” – perguntei.

Este velho decrépito que, com toda a razão, puseram junto da porta?
Onde foste desencantar este indivíduo?
Que ideia foi essa de ir buscar um morto que não é nosso?”

Diz-me o velho:

Então não me conheces?
Eu sou Felicião, a quem tu costumavas oferecer bonecos2 , o filho do teu feitor Filosito, o teu companheiro preferido.

“Belo” – digo eu :

“este está doido; catraio, e ainda por cima armado em meu companheiro preferido! Até está correto: já lhe estão caindo todos os dentes! …

Fico em dívida com a minha quinta: para onde quer que me virava fazia-me dar conta da minha velhice.

Pois abracemo-la, apreciemo-la: se a soubermos usar, a velhice é uma fonte de prazer.

Os frutos tornam-se mais agradáveis quando estão a ficar passados; é no seu termo que mais brilha a graça da infância; aos bebedores, o último copo é que dá mais prazer, aquele que culmina e dá o último impulso à embriaguez; aquilo que cada prazer tem de mais saboroso é guardado para o fim.

É extremamente agradável esta idade, já tendente para o fim embora ainda não a tombar; estar prestes a atingir a beira do telhado, acho que é situação dotada dos seus encantos; ou pelo menos, em vez de encantos, bastará a simples ausência de necessidades.

👉 Como é bom já ter cansado os nossos desejos, tê-los abandonado.

“Mas é penoso” – dirás – “ter a morte diante dos olhos”

Bom, ter a morte diante dos olhos é coisa que tanto deve fazer um velho como um jovem (já que ela nos não chama por ordem de idades); além disso, não há ninguém tão velho que não tenha direito a esperar um dia mais.

👉 Aliás, um dia é um degrau na vida.

Toda a nossa existência consta de partes, de círculos concêntricos em que os maiores abarcam os menores : há um círculo que os abarca e rodeia a todos (este é o que contém todo o tempo do nascimento à morte); há outro que delimita os anos da adolescência; outro que dentro da sua órbita rodeia os anos da infância; além disso, cada ano de per si contém as subdivisões do tempo, de cuja combinação resulta a nossa vida; um mês está contido num círculo menor; um dia tem um perímetro ainda mais curto, mas mesmo ele tem um princípio e um fim, uma origem e um termo.

Por isso dizia Heraclito, o filósofo que deveu a fama à sua linguagem obscura, “que qualquer dia é igual a todos os outros”

Esta ideia foi expressa por outros, cada qual da sua maneira. Disse um que é igual em número de horas, e com razão, pois, se um dia é, um espaço de tempo de vinte e quatro horas, necessariamente todos os dias são iguais entre si : a noite tem a mais o que o dia tem a menos.

Disse um outro que todos os dias são iguais na sua aparência geral, porquanto nada há num enorme espaço de tempo que se não possa encontrar num único dia – a luz e as trevas; no constante alternar do universo, tudo isto aparece multiplicado, mas não diferente, apenas numas vezes mais curto, noutras mais dilatado.

👉 Organize-mos, portanto, cada dia como se fosse o final da batalha, como se fosse o limite, o termo da nossa vida.

Pacúvio, que usufruía da Síria como se lhe pertencesse de direito , depois de a si mesmo se ter celebrado com libações e sumptuosos banquetes fúnebres, fazia-se transportar do festim para o quarto entre as palmas dos seus “amiguinhos” que cantavam em coro: βεβιωται, βεβιωται! 3

Todos os dias fez o seu próprio funeral. Ora o que ele fazia com a consciência pesada façamo-lo nós com ela tranquila, e ao irmos dormir digamos, com satisfação e alegria,

👉 “vivi, cumpri o curso que a fortuna me deu”4

Se a divindade nos conceder o novo dia, aceitemo-lo com alegria. O mais feliz dos homens, o dono seguro de si próprio é aquele que aguarda sem ansiedade o dia seguinte. Quem quotidianamente diz: “vivi”!, quotidianamente ficará a lucrar.

Mas já é altura de fechar esta carta.

“Olá! Então e ela vem sem me trazer brinde?”

Não te assustes: vai levar qualquer coisa. Qualquer coisa, não: muita coisa. Que há, na verdade, de mais notável que esta frase que eu aqui incluo para ti?

👉 “É um mal viver na necessidade, mas não há qualquer necessidade de viver na necessidade.”

Como não seria assim? Em todo o lado estão patentes as vias para a liberdade: muitas, curtas e fáceis. Agradeçamos à divindade o fato de ninguém poder ser obrigado a permanecer vivo: é-nos possível dar um pontapé na própria necessidade.

Dirás tu:

“Essa frase é de Epicuro; para quê recorrer à propriedade alheia?”

👉 Tudo quanto é verdade, pertence-me.

E vou continuar a citar-te Epicuro para que todos quanto juram pelas palavras o interessam, não pela idéia mas pelo seu autor, fiquem sabendo que as idéias corretas são pertença de todos.

Passar bem!


1 Na religião romana, o Génio [ Genius] era uma das divindades domésticas (a par dos Lares e dos Penates) individualmente associada a cada homem: cada homem possuía o seu Genius, tal como cada mulher possuía uma contrapartida feminina, a sua Juno. Especialmente venerado era, em cada casa, o Genius do chefe de família, simbolizado por uma serpente pintada no altar.

2 Por ocasião das Saturnais (Saturnalia), antigas festas do calendário romano celebradas por volta de 17 de Dezembro de cada ano em honra de Saturno, era l costume haver troca de presentes entre amigos, e mesmo, como é aqui o caso, entre senhores e escravos (por ex. os livros XIII e XN de Marcial recolhem uma colecção de epigramas apensos pelo poeta a presentes oferecidos por essas festas). Neste período, os escravos gozavam em relação aos seus senhores de uma grande liberdade, como pode verificar-se, u.g., na sátira 7 do livro II de Horácio (diálogo entre o Poeta e o seu escravo Davo).

3 – lê-se “bebiontai” : ‘Já viveu, já viveu!” (isto é, “está morto”!)

4 Vergílio, Aen, IV, 653.