Carta 118 – Toda a gente é infelizmente confundida pela ignorância da verdade
Exiges-me que aumente o ritmo das minhas cartas. Façamos as contas: verás que não estou em dívida para contigo. Tinha ficado acordado entre nós que as tuas cartas precederiam as minhas, ou seja, tu escrevias-me e eu respondia. Apesar disto não vou fazer-me difícil, pois sei que serás um devedor de confiança ! Cá estou então a escrever-te, antecipadamente, mas sem fazer o que Cícero, esse mestre da eloquência, pedia a Ático que fizesse: que, mesmo sem ter assunto, escrevesse o que lhe viesse à ideia (1) .
Comigo nunca haverá falta de matéria a desenvolver. Já sem falar daqueles temas que preenchem as cartas de Cícero: qual o candidato em campanha eleitoral; quem se apresenta como candidato de um grupo, e quem o faz contando apenas consigo mesmo; quem procura aceder ao consulado com esperança no auxílio de César, quem se apoia em Pompeio, quem se fia no poder da corrupção; até que ponto Cecílio é um agiota implacável, ele, a quem nem os parentes conseguem arrancar uma moeda por menos de doze por cento de juro ! (2) É mais importante cuidar dos nossos próprios males que dos alheios: analisarmo-nos com o maior empenho, verificarmos a quantas situações somos candidatos… e não nos deixarmos eleger !
Isto, meu caro Lucílio, é que se chama proceder com nobreza, agir com segurança e liberdade: nada pedirmos para nós, atravessar incólumes todos os comícios da fortuna ! Quando, convocadas todas as tribos, os candidatos, cada um por seu lado, se angustiam com o resultado das eleições – um vai prometendo directamente dinheiro aos eventuais votantes, outro faz o mesmo por intermédio de um testa-de-ferro, outro cobre de beijos as mãos daqueles mesmos a quem, caso seja eleito, não consentirá que lhe apertem a mão, mas todos aguardam com ansiedade a proclamação oficial dos resultados – , já imaginaste como é delicioso ficar à margem a observar toda essa negociata, sem pretender comprar ou vender nada?
Maior, muito maior satisfação ainda terá quem não observar à distância apenas os comícios pretoriais ou consulares, mas também esses outros, bem mais importantes, em que todos os homens se dirigem à fortuna com pedidos: um quer a honraria anual de uma magistratura, outro uma forma vitalícia de poder, outro o sucesso na guerra · e o consequente triunfo, outro a riqueza, outro um casamento e filhos, outro a saúde para si e para os seus !
Só uma grande alma será capaz de nada pedir, de nada implorar, de, pelo contrário, dizer:
“Nada me interessas, Fortuna! Estou fora do teu alcance. Sei bem como tu repeles os Catões e exaltas os Vatínios ! Nada peço para mim.”
Chama-se a isto cortar pela base o poder da Fortuna.
Aqui tens o que posso dizer-te constantemente, a matéria que poderei estar sempre a debater, pois ambos vemos à nossa roda inúmeros milhares de pessoas inquietas que, a fim de obterem algo de altamente nocivo, andam com perseverança a praticar o mal, sempre à procura de coisas que logo a seguir deixam de lhes interessar, ou mesmo as enchem de repulsa!
Já viste alguém contentar-se com uma coisa que, antes de a obter, lhe parecia mais que suficiente ? A felicidade, ao contrário da opinião corrente, não é ambiciosa, mas sim modesta, e por isso mesmo nunca sacia ninguém.
Tu pensas que aquilo que satisfaz o vulgo é elevado porque ainda estás longe da perfeição estóica; para quem a alcançou, tudo isso é absolutamente rasteiro !
Minto: para quem começou a subir até esse nível, pois o ponto que tu pensas ser já o mais alto não passa de um degrau. Toda a gente é infelizmente confundida pela ignorância da verdade. Enganada pela opinião vulgar, procura como se fossem bens certas coisas que, depois de muito penar para as conseguir, verifica serem nocivas, inúteis ou inferiores ao que esperava. A maior parte das pessoas sente admiração por coisas que só ao fim de algum tempo se revelam ilusórias; e assim é que o vulgo toma por bom o que apenas parece grande.
Para que o mesmo nos não suceda a nós, vamos investigar o que é o bem. As concepções sobre o bem são diversas, como diversas são as definições que cada filósofo dele dá. Alguns definem-no dizendo que
“o bem é aquilo que alicia as almas, que as atrai até si”.
A isto objetaremos desde logo: e se atrai, sim, mas para a desgraça ? Sabes bem como muitos males são sedutores. Há uma grande diferença entre a verdade e a aparência da verdade. Por isso mesmo o bem é indissociável da verdade, pois não pode ser boa uma coisa não verdadeira. Mas aquilo que atrai insidiosamente até si tem somente a aparência de verdade: insinua-se, seduz, alicia. Outros pensadores propuseram esta definição:
“O bem é tudo quanto desperta a vontade de si mesmo, que provoca um movimento da alma na sua direção”.
Também aqui temos uma objeção a fazer: há muitas coisas que provocam um movimento da alma mas que, tornando-se apetecíveis, redundam em detrimento de quem as apetece. Parece-me assaz melhor esta outra definição:
“O bem é aquilo que desperta na alma um movimento na sua direcção conforme à natureza e que só devemos procurar obter quando começa a tornar-se merecedor desse empenho”.
Isto é, quando já acedeu à categoria de bem moral; o bem moral, com efeito, é aquilo que é totalmente desejável. Não quero deixar pàssar o ensejo de indicar a diferença entre o bem em geral e o bem moral. Ambas as noções têm algo de comum e mesmo indissociável : nada pode ser considerado um bem se não tiver uma parcela de bem moral, e o bem moral é indiscutivelmente um bem.
Qual é então a distinção entre as duas categorias ? O bem moral é o bem absoluto, no qual se realiza totalmente a felicidade, e graças ao contato dele todas as outras coisas se podem tornar formas de bem.
Exemplificando: há coisas que em si nem são boas nem são más, tais como o serviço militar, a carreira diplomática, a jurisprudência. Se estas tarefas forem realizadas conformemente ao bem moral, começam a tornar-se bens e passam, de indiferentes, para a categoria do bem.
O bem, em geral, depende de estar ou não associado ao bem moral; o bem moral é em si mesmo o bem; o bem em geral está dependente do bem moral, enquanto o bem moral depende apenas de si. Tudo quanto é simplesmente um bem poderia ter sido um mal; o bem moral, pelo contrário, nunca poderia deixar de ter sido um bem.
Ainda outros filósofos propuseram esta definição:
“Um bem é tudo aquilo que é conforme à natureza”.
Repara com atenção no que estou dizendo: tudo quanto é bom é conforme à natureza; mas isto não implica que tudo o que é conforme à natureza seja um bem. Há muita coisa conforme à natureza, mas tão insignificante que nem chega a merecer o nome de bem; coisas ligeiras, em suma, irrelevantes.
Ora, um bem não pode ser diminuto e irrelevante, pois enquanto for diminuto não chega a ser um bem, e quando começa a ser um bem cessa de ser insignificante. Por que critério se reconhece um bem ? Quando é conforme à natureza de uma maneira absoluta.
“Tu dizes que todo o bem é conforme à natureza, pois tal é a sua propriedade. Dizes depois que há certas coisas conformes à natureza que não são bens. Mas porquê, afinal, é que aquele é um bem e estas outras coisas não o são? Se um e outras participam de um traço fundamental comum o serem conformes à natureza – de que modo é que aquele adquire uma propriedade que estas não possuem?”
Graças à sua própria magnitude. Não te dou novidade alguma se disser que há coisas’ que, ao crescer, se transmutam. À medida que um ser humano vai evoluindo, de recém-nascido até ao estado adulto, dá-se uma alteração nas suas propriedades: começou por ser irracional, depois torna-se racional. Com o crescimento, certas coisas não mudam apenas de tamanho, mudam também de natureza. Vais objetar-me que
“uma coisa não se torna diferente por se tornar maior. Quer enchas de vinho uma garrafa ou um barril, o resultado é o mesmo: em ambos os recipientes as propriedades do vinho são as mesmas. Também o sabor de um bocadinho de mel é o mesmo que o de uma grande quantidade.”
Esses exemplos não são pertinentes: no vinho ou no mel há uma qualidade que permanece idêntica e que não se altera se aumentarmos a quantidade. Coisas há que, embora aumentando em quantidade, conservam a sua espécie e as suas propriedades; em outras, após muitos acrescentos, surge mais um acrescento final que as transforma e dá ao conjunto um carácter diferente do que tivera até então.
Um arco de abóbada depende de uma só pedra: aquela que se introduz como cunha no meio das arcadas laterais e, pelo seu próprio peso, as mantém em posição. Por que motivo esse último acrescento, embora quantitativamente diminuto, assume um papel tão decisivo ? Porque faz algo mais do que aumentar a quantidade: traz a plenitude.
Durante o processo há coisas que perdem a forma antiga e revestem uma nova. Quando o nosso espírito dilata qualquer coisa interminavelmente, e acaba por cansar-se com as proporções que o defrontam, começa a dizer que está ante uma coisa infinita; ou seja, uma coisa que a princípio parecia grande, sim, mas finita, reveste um aspecto muito diferente do que primitivamente tivera.
Também pode acontecer que nós queiramos cortar um objecto e a empresa se revele difícil; por fim, e à medida que as dificuldades crescem, verifica-se que o objeto é indivisível.
Semelhantemente, também passamos de um movimento lento e quase imperceptível até à imobilidade. De uma forma idêntica, há algo que é conforme à natureza: aumentando de proporções, acaba por assumir outras propriedades, e transforma-se em bem.
Passar Bem!
(1) Cícero, ad Atticum, I, 12, 4.
(2) Cícero, ad Atticum, I, 12, 1.