4 de outubro de 2025

Carta 117 – Já há tempo que me censuro a mim mesmo por, imitando aqueles a quem critico, gastar palavras a discutir uma questão evidente.

Por lucianakeiko@gmail.com

Preparas-me uma boa tarefa e, sem dares por isso, metes-me numa dolorosa controvérsia: levantas uma série de questões fúteis nas quais eu nem posso discordar da Escola sem trair o que lhe devo, nem concordar com ela sem trair a minha consciência!

Perguntas-me se é verdadeira a tese estóica segundo a qual a “sabedoria” é um bem, mas “ser sábio” já o não é. Primeiro, irei expor-te a opinião, dos estóicos; em seguida, atrever-me-ei a dizer o que eu penso.

Dizem os nossos que tudo quanto é bem é um corpo, porquanto tudo quanto é bem age, e tudo quanto age é um corpo (1).Tudo quanto é bem, é útil; logo importa que aja de algum modo, para poder ser útil; se age, é um corpo. Eles dizem que a “sabedoria” é um bem; são consequentemente obrigados a considerá-la como corpórea. Quanto a “ser sábio” entendem que não exige a mesma condição. Trata-se aqui de uma coisa incorpórea, de um acidente de outra coisa que é a “sabedoria” (2).

Assim sendo, “ser sábio” (3) não tem qualquer ação nem utilidade.

“Como é isso?”

objetar-se-á. –

“Então nós não dizemos que ser sábio é um bem?”

Dizemo-lo, mas em referência àquilo de que está dependente, ou seja, da “sabedoria” em si mesma.

Ouve, primeiro, a resposta que outros deram a esta tese.

Depois será a vez de eu definir a minha posição em relação à escola, e fixar a minha maneira de ver. Dizem alguns:

“Por essa ordem de ideias, ‘viver com felicidade’ também não é um bem. Queiram ou não, os estóicos terão de admitir que uma ‘vida feliz’ é um bem, mas que viver com felicidade já não é um bem.”

E outra objeção se faz ainda à nossa Escola:

“Vós pretendeis ser sábios; logo, ‘ser sábio’” é algo que devemos desejar; se uma coisa deve ser desejada, essa coisa é boa.”

Os nossos vêem-se assim obrigados a forçar as palavras e a meter no verbo expetere (desejar) uma sílaba contrária ao génio da língua. Se não te importas, eu vou inserir essa sílaba. O argumento ficará assim: “É desejado (expetendum) aquilo que é um bem, é desejável (expetibile) aquilo que obtemos quando atingimos um bem. Esse algo não o procuramos como se fosse um bem, mas é um acréscimo ao bem que foi procurado.”

Eu não sou da mesma opinião; penso que os nossos se viram reduzidos a este artifício por estarem manietados pela sua proposição de base, que lhes não permite alterar a formulação.

Costumamos dar bastante valor às opiniões universalmente partilhadas, e como demonstração da verdade recorremos à prova do consenso universal.

É assim que se prova a existência dos deuses, entre outros argumentos, pelo fato de toda a gente possuir uma ideia acerca dos deuses e de não haver povo algum, onde quer que seja, tão fora das leis e hábitos comuns que não acredite nos deuses, de um modo ou de outro.

Quando discutimos sobre a eternidade das almas, não é pouco o peso que atribuímos ao consenso universal, pelo qual a humanidade revela o temor ou o culto que presta ao mundo dos mortos.

Mas não vou fazer como os gladiadores vencidos que apelam para a benevolência do público; vou, sim, contestar, servindo-me das nossas armas próprias.

O acidente que afeta um certo ser existirá fora desse ser ou faz parte integrante dele ? Se faz parte integrante dele, é tão corpo como o ser de que é acidente. De fato, não pode haver um acidente sem que haja contato; tudo quanto faz contacto é um corpo, não pode haver um acidente sem que haja ação; tudo quanto age é um corpo.

Se o acidente está fora do ser, então é porque se retirou depois de o ter afetado; ora, tudo o que se retira tem movimento, e tudo o que tem movimento é um corpo.

Estás à espera que eu diga que “corrida” e “correr”, “calor” e “estar quente”, “luz” e “luzir” são uma e a mesma coisa!

Não, eu admito que haja diferença entre os membros de cada par de conceitos, não admito é que sejam de diferente natureza. Se a saúde é indiferente, estar de boa saúde também é indiferente; se a beleza é indiferente, ser belo também o é. Se a justiça é um bem, ser justo é-o igualmente; se a imoralidade é um mal, também é mal ser imoral, da mesma maneira – por Hércules! – que, se as cataratas são um mal, também é um mal sofrer de catàratas!

Em suma, nenhuma das duas coisas pode existir sem a outra: quem é sábio possui sabedoria; quem possui sabedoria é sábio. Não pode, por conseguinte, duvidar-se que tal como um dos termos for assim será o outro, o que leva alguns filósofos a pensar que ambos são uma e a mesma coisa.

Gostaria ainda de colocar esta questão: uma vez que tudo é ou mal, ou bem, ou indiferente (4) , em que categoria devemos incluir o “ser sábio” ?

Afirmam que não é um bem; mal não é, evidentemente; portanto deverá ser intermédio. Ora, nós consideramos como intermédios e indiferentes aqueles atributos que tanto afetam um indivíduo bom como um mau, por exemplo, a riqueza, a beleza, a nobreza. Ora este predicado – “ser sábio” – só pode pertencer a um indivíduo bom; logo, não é indiferente. Igualmente, não pode ser um mal, já que não pode pertencer a um indivíduo mau; logo, é um bem. É um bem aquilo que só um indivíduo bom pode possuir; a qualidade de “ser sábio “só um indivíduo bom a pode possuir; logo, é um bem.

Dizem que “ser sábio” é um acidente da “sabedoria”. Mas isto a que se chama “ser sábio” é causa ou consequência da “sabedoria” ? Quer seja causa quer seja consequência, em ambos os casos é um corpo, porquanto quer o que é causado quer o que causa é um corpo. Se é um corpo, então é um bem, já que a única coisa que o impedia de ser um bem era o fato de ser incorpóreo.

Na opinião dos peripateticos não existe qualquer diferença entre a “sabedoria” e o “ser sábio” porquanto cada um dos termos contém em si o outro. Ou será que não consideramos que “é sábio” apenas aquele que possui “sabedoria” ? Poderemos pensar, porventura, que alguém “seja sábio” sem possuir “sabedoria” ?

Os antigos dialécticos distinguiram as duas noções, e foi deles que esta dicotomia chegou até aos estóicos. Vou dizer-te em que é que ela consiste.

Uma coisa é “um campo”, outra coisa é “possuir um campo”. É evidente: “possuir um campo” é algo que respeita ao possuidor, não ao campo. Semelhantemente, uma coisa será a “sabedoria”, outra coisa o “ser sábio”. Admites, creio eu, que se trata de duas coisas distintas, uma coisa que é possuída e alguém que a possui: a “sabedoria” é possuída, aquele que “é sábio” possui. A sabedoria consiste num espírito perfeito, ou levado ao mais alto grau de elevação; é, numa palavra, a arte da vida.

Em que consiste o “ser sábio” ? Não posso dizer “um espírito perfeito”, mas sim o estado em que se encontra aquele que possui um espírito perfeito. Uma coisa, pois, é um “espírito justo”, outra, por assim dizer, é “possuir um espírito justo”.

Prosseguindo o seu raciocínio dizem eles: “Há várias espécies de corpos, como por exemplo ‘um homem’, ‘um cavalo’; essas espécies são acompanhadas de movimentos da alma que nomeiam esses corpos. Tais movimentos têm algo de específico distinto dos corpos.

Por exemplo: vejo Catão a passear; os sentidos mostram-me o fato, o meu espírito crê nele. Aquilo que eu vejo, aquilo a que apliquei os olhos e o espírito, é um corpo. Em seguida digo: ‘Catão está passeando’. Ora, estas minhas palavras já não são um corpo, são a enunciação de algo acerca de um corpo, são aquilo a que uns chamam o ‘falado’ (effatum), outros o ‘enunciado’ (enuntiatum), outros o ‘dito’ (dictum).

Assim, quando dizemos ‘sabedoria’ entendemos que nos referimos a algo de corpóreo; quando dizemos alguém é sábio estamos fazendo uma afirmação acerca de um corpo. Existe, portanto, uma grande diferença entre nomear um ser ou falar acerca de um ser.

Imaginemos, por agora, que se trata de duas coisas diferentes (repara que ainda não estou expondo a minha opinião!) : o que é que impede a segunda de ser diferente e de, não obstante, ser um bem? Dizia há pouco que uma coisa é um campo, outra é ter um campo.

O que é óbvio: são de natureza diferente o possuidor e a coisa possuída, uma vez que esta é uma porção de terra e aquele é um homem. Mas no caso de que temos estado a tratar ambos os termos – aquele que possui sabedoria, e a sabedoria em si mesma – partilham de idêntica natureza.

Além disso, no primeiro caso o objeto possuído e o possuidor são dois seres distintos; no segundo caso, coisa possuída e possuidor coexistem no mesmo ser. Um terreno é possuído à face da Lei, a sabedoria é-o por natureza; aquele pode ser alienado, entregue a outro dono, esta nunca se aparta do seu possuidor. Consequentemente, não podemos pôr no mesmo plano duas situações tão distantes entre si.

Eu tinha começado a dizer que se podia tratar de duas coisas sem que ambas deixassem por isso de ser boas; assim, a “sabedoria” e o “homem sábio” são duas coisas, e ambas se consideram como boas.

Tal como nada impede que quer a “sabedoria” quer o “possuidor de sabedoria” sejam um bem, também nada impede que a “sabedoria” e o fato de “possuir sabedoria”, ou seja, o “ser sábio”, sejam um bem.

Para que quero eu “possuir sabedoria”? Para “ser sábio”! Não será então um bem uma coisa sem a qual a outra também não poderia ser um bem ? Vós mesmo dizeis, e bem, que não seria aceitável a “sabedoria” desligada da sua aplicação prática.

Ora, em que consiste a aplicação prática da “sabedoria” ? Em “ser sábio”; é isto o que há de mais importante naquela, tanto que, se esta não existisse, a primeira se tornaria uma coisa supérflua. Se a tortura é um mal, então ser torturado é também um mal porquanto aquela não pode ser julgada um mal caso se não verifique a situação que ela implica.

A “sabedoria” consiste no estado próprio de um espírito perfeito; ora, como é possível não considerar um bem aquilo que, sem aplicação prática, não é um bem ? Devemos tentar alcançar a “sabedoria”? A resposta é sim. Devemos procurar realizar praticamente a sabedoria? A resposta é sim.

Tu não admitirias alcançar a sabedoria se te fosse proibido pô-la em prática. Aquilo que devemos tentar obter é um bem. O “ser sábio” consiste na aplicação prática da sabedoria, tal como o “discursar” ou o “ver” são a aplicação prática da “eloquência” ou da “visão”.

O “ser sábio” , portanto, é a aplicação prática da “sabedoria”, e a aplicação prática da sabedoria é algo que devemos realizar; devemos, pois, tentar “ser sábios”; e, se o devemos tentar, é porque é um bem.

Já há tempo que me censuro a mim mesmo por, imitando aqueles a quem critico, gastar palavras a discutir uma questão evidente.

Quem há, de fato, que possa duvidar de que, se o calor é um mal, também ter calor seja um mal, ou de que, se a vida é um bem, também viver seja um bem? Todas estas questões andam à volta da sabedoria, não consistem no seu cerne; ora, é com este que nós devemos preocupar-nos.

E se, porventura, nos sabe bem divagar, há na sabedoria domínios muito mais vastos e profundos: investiguemos a natureza dos deuses, o princípio que alimenta os astros, os percursos tão diversos percorridos pelas estrelas; investiguemos se os seus movimentos determinam o curso da nossa vida, se é delas que provém a energia que anima todos os corpos e todas as almas, se os fenómenos que consideramos casuais estão afinal em obediência a alguma lei e se, portanto, no universo nada se produz por acaso e fora de uma ordem determinada.

Tais questões, embora já não digam respeito à formação do carácter, elevam o espírito, alçam-no à grandeza das próprias questões que investiga; os problemas de que há pouco discutia, pelo contrário, rebaixam-no, deprimem-no e, ao invés do que julgais, não o exercitam, antes o debilitam.

Reparai bem: é justo desperdiçar a atenção que deveríamos dar aos assuntos mais importantes e sublimes com estas questões, não direi falsas, mas, sem dúvida alguma, inúteis ?

O que ganho eu em saber se “sabedoria” e “ser sábio” são ou não duas coisas distintas ? Que me adianta saber que a primeira é um bem, mas a segunda não o é ? Façamos uma loucura, tiremos as duas coisas à sorte: tu ficarás com a “sabedoria”, a mim caber-me-á “ser sábio”.

Resultado: um empate! Mais útil será então indicar-me a via pela qual atinjo um ou outro objetivo. Diz-me o que eu devo evitar, o que devo procurar, quais os estudos que darão forças às debilidades do meu espírito, de que modo poderei repelir para longe os impulsos que se me atravessam na frente e tentam arrastar-me, de que modo poderei fazer frente a tantos males, de que modo poderei obviar às desgraças que se abateram sobre mim, ou àquelas em que eu próprio me deixei cair.

Ensina-me a suportar a adversidade sem gemer ou a felicidade sem causar gemidos ao próximo; ensina-me a não aguardar o último e inevitável mal, mas sim a buscá-lo eu mesmo quando me parecer oportuno.

Nada me parece mais imoral do que desejar a morte, pois, se tu queres viver, para quê desejares morrer? E se o não queres, para quê pedir aos deuses o que eles te concederam logo ao nascer ? Que hás-de morrer um dia, ainda que o não queiras, é o que tens de mais certo; e se o quiseres, está na tua mão fazê-lo.

A primeira hipótese é inevitável, a segunda facultativa.

Li um dia destes no prólogo de um autor (5) aliás de mérito, esta frase repugnante:

“Oxalá eu morra quanto antes!”.

Insensato homem: não desejas mais do que a tua sorte! “Oxalá eu morra quanto antes!” Talvez ao dizer estas palavras tenha chegado a velho de chofre !. .. De outro modo, o que te detém? Ninguém te impede: sai desta vida como te aprouver, escolhe o local da natureza que eleges para porta de saída.

Estou-me referindo aos elementos de que se compõe o universo – água, terra, ar; qualquer deles, tal como é condição necessária à vida, assim é caminho seguro para a morte. “Oxalá eu morra quanto antes!” Que entendes tu por “quanto antes” ? Qual o dia que escolhes ? Pode ser que o alcances mais cedo do que tu contas.

Palavras destas denunciam um espírito débil que pretende suscitar pena, mostrando-se assim cansado da vida. Quem chama pela morte é porque não quer morrer ! (6) Pede aos deuses que te dêem vida e saúde; e se preferes morrer, a morte tem pelo menos a vantagem de pôr cobro aos desejos.

São estes, caro Lucílio, os problemas em que devemos meditar para robustecer o nosso espírito. Nisto consiste a “sabedoria”, nisto o “ser sábio”, e não em desperdiçar inúteis subtilezas com problemas ocos e fúteis.

Então a fortuna coloca diante de ti tantas questões que ainda não resolveste e tu metes-te em casuísticas? Que estupidez esgrimir no vazio quando já se ouviu o sinal da batalha !

Põe de lado essas armas de brinquedo, é altura de usares armas a sério!

Diz-me como conseguir que nem tristezas nem receios me perturbem o ânimo, de que modo poderei alijar esta carga de secretos desejos. É preciso agir! “A sabedoria é um bem, ser sábio não é um bem”: discutir isto é fazer com que não nos tomem por sábios, é expor ao ridículo todos os nossos estudos como se não passassem de especulações vazias.

Demos por resolvida esta, e ponhamos outra questão: será que a sabedoria ainda não atingida é um bem? Pergunto-te eu: é ou não óbvio que os celeiros não sentem ainda a carga das futuras colheitas, ou que as crianças, por fortes e vigorosas que sejam, não têm ainda a noção da sua futura adolescência ?

O doente, enquanto doente, em nada beneficia da saúde que há-de recuperar, tal como um corredor ou um lutador não se retemperam graças ao descanso que só obterão muitos meses depois.

Quem ignora que uma coisa futura não pode ser um bem pelo próprio fato de ainda estar para vir? Uma coisa que seja um bem é de utilidade imediata; e para uma coisa ter utilidade é preciso que já exista. Se não tem utilidade, não é um bem; se tem utilidade, então já existe. Eu hei-de ser sábio um dia; quando o for, isso será um bem; entretanto, não.

Qualquer coisa deve primeiro existir, em seguida virá a sua qualidade. De que modo, pergunto eu, pode ser um bem aquilo que não existe ainda ? Que melhor prova te posso dar de que uma coisa não existe do que dizer “ela há-de existir” ? Aquilo que há-de vir é evidente que ainda não veio. A Primavera há-de aparecer; eu sei, contudo, que neste momento é Inverno. O Verão há-de aparecer; eu sei, contudo, que não estamos no Verão.

A melhor prova que eu encontro para a não existência de alguma coisa é o fato de ela ser futura. Hei-de ser sábio, assim o espero, mas entretanto não sou sábio; se conseguisse obter aquele bem, ficaria livre deste mal. Há-de acontecer que eu seja sábio: daqui não te é lícito concluir desde já que sou um sábio.

Não posso simultaneamente encontrar-me na posse desse bem futuro e deste mal presente; estes dois estados não coexistem, o mal e o bem não podem ao mesmo tempo encontrar-se no mesmo indivíduo.

Deixemos estas engenhosíssimas frioleiras e abordemos com vigor aqueles temas que nos serão de utilidade na vida. Um homem que vai, preocupado, buscar a parteira para a filha já com as dores não fica parado a ler as informações oficiais ou o programa dos jogos; um homem que corre para a sua casa em chamas não fica a olhar o tabuleiro das damas, a ver como se liberta uma peça bloqueada.

Ora a ti, ó céus !, de todo o lado te chegam notícias alarmantes: a casa a arder, os filhos em perigo, a tua terra atacada, os teus bens saqueados! Junta ainda os naufrágios, os tremores de terra, tudo o mais que nos pode afligir.

E tu, dilacerado por estas calamidades, gastas o tempo com meros prazeres do espírito!… Preocupa-te a diferença que há entre a “sabedoria” e o “ser sábio” … Colocas e resolves problemas de dialéctica, enquanto uma tal avalancha se precipita sobre ti!

A natureza não foi tão generosa e pródiga no tempo que nos deu a ponto de nos permitir desperdiçá-lo. Vê como mesmo as pessoas mais metódicas perdem imenso tempo: uma parte gasta-se nos cuidados com a saúde, própria ou dos familiares; outra vai-se em actividades particulares ou públicas; metade da nossa vida é entregue ao sono.

E, deste tempo tão limitado e veloz que nos devora, havemos nós de gastar a maior parte em pura perda ? ! Nota ainda que facilmente o nosso espírito se habitua a procurar um prazer, e não uma cura, ou seja, a fazer da filosofia uma distração, quando ela é uma terapêutica.

Não sei qual seja a diferença entre “sabedoria” e “ser sábio”: sei é que me é indiferente sabê-lo ou ignorá-lo. Diz-me: quando ficar a saber a distinção entre “sabedoria” e “ser sábio”, passarei a ser sábio? Porquê então enredar-me entre os termos da sabedoria de preferência aos seus atos ?

Faz com que eu seja mais forte, mais seguro, coloca-me à altura do destino, ou acima dele: Poderei estar acima do destino se encaminhar para esse fim todos os meus estudos.

Passar bem!

(1) Cf. supra carta 106.

(2) Apenas quatro “coisas” formavam, para os estóicos, a classe dos incorpóreos ( ασωματα , incorporalia): o tempo ( χρονος , tempus), o espaço ( τοπος , locus), o vazio ( κενον , inane) e o” dito, enunciado” ( λεκτον , dictum), S. V.F., II, 331. “Ser sábio” (sapere) é, portanto, algo que “se diz” de outro, é um dictum (λεκτον), ou seja, incorpóreo. Daqui a dificuldade que Séneca põe em evidência, e que talvez não tivesse surgido se os mestres estóicos, em vez de falar e escrever uma língua em que a distinção morfológica do nome e do verbo é tão marcada, falassem e escrevessem uma língua (como o chinês) em que tal distinção é morfologicamente (embora não sintaticamente) irrelevante! Afinal, não seria legítimo perguntar porque motivo sapere é um dictum mas sapientia já não o é?

(3) Cf. a nota precedente.

(4) Sobre o conceito de “indiferente” (αδιαφορον) v. S.V.F., III, 117-123.

(5) Ignora-se qual o autor que Séneca critica neste passo.

(6) Tal como o lenhador da fábula (Esopo, 78 Chambry: Γερων και θάvατος – “O Lenhador e a Morte”), que chama pela morte “para o ajudar a levar o molho de lenha”!