3 de outubro de 2025

Carta 116 – A natureza deu-nos energia suficiente. A questão está em aproveitá-la

Por lucianakeiko@gmail.com

Tem-se debatido com frequência se é preferível ter paixões moderadas ou não ter paixão alguma. Nós, os estóicos, rejeitamo-las por completo S. V.F. , ill, 444.. Os peripatéticos limitam-se a moderá-las.

Eu por mim não vejo como é que uma doença, por ligeira que seja, se pode considerar boa e útil para a saúde ! Mas não tenhas receio : não te vou proibir formalmente nada do que tu julgas imprescindível.

Vou mostrar-me tolerante e compreensivo em relação às tendências que tu consideras necessárias, úteis ou agradáveis à vida: limito-me a subtrair-te ao vício. Se te proíbo o desejo, concedo-te a vontade, e assim poderás fazer a mesma coisa sem receios, com uma decisão mais firme, e até apreciarás mais os próprios prazeres, pois ser-te-á mais fácil gozá-los se os dominares do que se fores seu escravo.

“É próprio da natureza humana”

dizes tu

“sofrer intensamente com a perda de um amigo: deixa-me, portanto, chorar lágrimas tão merecidas. É natural também que a opinião pública nos afete, e que nos sintamos tristes se formos mal julgados: porque não me concedes o direito, tão legítimo, de recear que façam mau juízo de mim?

Não há vício que se não esconda atrás de boas razões; a princípio, todos são aparentemente modestos e aceitáveis, só que a pouco e pouco vão-se expandindo. Não conseguirás pôr fim a um vício se deixares que ele se instale.

Toda a paixão é ligeira de início; depois vai-se intensificando, e à medida que progride vai ganhando forças. É mais difícil libertarmo-nos de uma paixão do que impedir-lhe o acesso.

Ninguém ignora que todas as paixões decorrem de uma tendência, por assim dizer, natural. A natureza confiou-nos a tarefa de cuidar de nós próprios, mas, se formos demasiado complacentes, o que era tendência torna-se vício.

Aos atos necessários juntou a natureza o prazer, não para que fizéssemos deste a nossa finalidade mas apenas para nos tornar mais agradáveis aquelas coisas sem as quais é impossível a existência. Se o procuramos por si mesmo, caímos na libertinagem.

Resistamos, portanto, às paixões quando elas se aproximam, já que, conforme disse, é mais fácil não as deixar entrar do que pô-las fora.

“Não me proíbas”

dizes tu –

“que em certa medida eu seja sensível à dor ou ao receio.”

Repara: essa “certa medida” há-de procurar alargar-se e subtrair-se aos limites impostos pela tua vontade. O sábio pode permitir-se o direito de descuidar um pouco a vigilância sobre si próprio, pois sabe pôr fim às lágrimas e aos prazeres sempre que o queira.

Nós, porém, faremos melhor em não avançar na paixão, já que não nos será fácil retroceder. Parece-me muito correta a resposta que Panécio deu um dia a um jovem quando este lhe perguntou se o sábio se podia permitir o amor.

“Pelo que toca ao sábio”,

disse

“mais tarde veremos. Eu e tu, que ainda estamos muito longe de ser sábios, é preferível não nos arriscarmos a uma situação incerta, incontrolável, que pode sujeitar-nos a uma vontade alheia e a envilecer-nos. Se o amor nos sorri, deixamo-nos excitar pelo seu bom acolhimento; se nos rejeita, irrita-nos a sua altivez. Quer se nos mostre fácil quer difícil, a paixão amorosa é sempre nociva: as facilidades atraem-nos, as resistências provocam-nos. Por isso mesmo deixemo-nos ficar quietos, cônscios das nossas próprias fraquezas. Não entreguemos o nosso débil espírito ao vinho, à beleza, à adulação ou a qualquer outra paixão que insidiosamente nos solicite. ” (1)

O mesmo que Panécio respondeu a uma questão sobre o amor, digo eu a respeito de todas as paixões em geral: afastemo-nos quanto possível dos terrenos movediços, já que até em terra firme nos aguentamos com dificuldade !

Já te estou imaginando a atirar-me à cara a objeção que toda a gente costuma fazer aos estóicos:

“Demasiado grandes são as vossas promessas, como demasiado duros são os vossos preceitos. Nós somos pessoas vulgares, e não podemos renunciar a tudo. Somos sensíveis à dor, com moderação; sentimos desejos, mas com peso e medida; somos atreitos à cólera, mas capazes de nos deixarmos aplacar.”

Sabes porque é que consideramos impossível dominarmo-nos a nós mesmos? Apenas porque não acreditamos sermos capazes de o fazer.

Mas não só ! Há mais um fator a ter em conta: nós defendemos os nossos vícios porque os amamos, e preferimos desculpá-los a livrarmo-nos deles!

A natureza deu-nos energia suficiente. A questão está em aproveitá-la, em juntar todas as nossas forças e pô-las ao nosso serviço ou, pelo menos, em não as virar contra nós mesmos.

A falta de forças não passa de pretexto; o que temos na realidade é falta de vontade !

Passar Bem!

(1) Panécio, fr. 114 van Straaten.