2 de outubro de 2025

Carta 115 – Um serviço que a filosofia te pode prestar : fazer com que nunca te lamentes do que és !

Por lucianakeiko@gmail.com

Não gosto de te ver, meu caro Lucílio, tão excessivamente preocupado com as palavras e o estilo: tenho coisas mais importantes com que te ocupar o espírito.

Preocupa-te com a matéria a tratar, e não com o modo como escreves. E quando te puseres a escrever fá-lo para pores em ordem as tuas ideias, para interiorizares bem os teus pensamentos e como que lhes apores a tua assinatura.

Quando vires alguém com um estilo rebuscado e cheio de adornos podes ter a certeza de que a sua alma apenas se ocupa igualmente de bagatelas. Uma alma verdadeiramente grande é mais tranquila e senhora de si a falar, e em tudo quanto diz há mais firmeza do que preocupação estilística.

Tu conheces bem os nossos jovens elegantes, com a barba e o cabelo todo aparado, que parecem acabadinhos de sair da fábrica ! De tais criaturas nada terás a esperar de firme ou sólido.

O estilo é o adorno da alma: se for demasiado penteado, maquilhado, artificial, em suma, só provará que a alma carece de sinceridade e tem em si algo que soa a falso. Não é coisa digna de homens o cuidado extremo com o vestuário ! Se nos fosse dado observar “por dentro” a alma de um homem de bem – oh ! que figura bela e venerável, que fulgor de magnificente tranquilidade nós contemplaríamos, que brilho não emitiriam a justiça, a coragem, a moderação e a prudência !

E não só estas virtudes, mas ainda a frugalidade, o autodomínio, a paciência, a liberalidade, a gentileza e essa virtude, incrivelmente rara no homem, que é a humanidade – também estas fariam jorrar sobre a alma o seu sublime esplendor! E mais ainda, a presciência, o juízo crítico e, acima de todas, a magnanimidade – oh ! deuses, quanta beleza, quanta severa dignidade não acrescentariam à figura, quanta autoridade e graça se não juntariam nela!

Ninguém contemplaria tal figura sem a declarar tão digna de amor como de respeito. Se alguém pudesse contemplar um tal rosto – bem mais imponente e radioso do que é habitual encontrar-se entre os homens – , não é verdade que ficaria estupefacto como se tivesse encontrado uma divindade, e suplicaria em silêncio que lhe fosse dado admirá-la sem sacrilégio ? E que depois, avançando atraído pela bondade desse rosto, se poria a adorá-lo com súplicas? E, após contemplar longamente essa face tão sublime, tão acima do que habitualmente nos é dado ver entre os homens, esses olhos com um brilho tão suave mas ao mesmo tempo tão ardente – acaso não sentiria vontade de, num misto de temor e de admiração, soltar a célebre exclamação de Virgílio:

“Que nome te hei-de dar, donzela?
Não é de mórtal o teu rosto, nem é humana a tua voz!
…Sê favorável, ó desconhecida, e auxilia-me nos meus esforços Vergílio, Aen., I, 327-8 e 330. !”

Ela nos assistirá e auxiliará, se estivermos dispostos a prestar-lhes culto. Para tanto não se exige a hecatombe de vigorosos touros, nem a oferenda de ouro e prata ou a deposição de esmolas no tesouro do templo: ao seu culto basta a devoção e retidão da vontade!

Repito: se nos fosse possível contemplar uma tal imagem, ninguém conseguiria deixar de se inflamar de amor por ela!

Na realidade, todavia, muitos obstáculos se nos interpõem e, ou nos cegam o olhar com claridade excessiva, ou no-lo mantêm na obscuridade. No entanto, assim como o uso de certos medicamentos pode tratar os nossos olhos e restituir-lhes a acuidade, também nós, se nos decidirmos a tratar as maleitas dos olhos da alma, seremos capazes de dar pela presença da virtude ainda que esta se esconda num corpo deformado, meio oculta pela miséria, sob a aparência falaz de uma humilde posição social. Daremos, repito, pela sua imensa beleza mesmo que escondida atrás de um exterior desagradável.

Inversamente, também poderemos aperceber-nos da perversidade e da sordidez de uma alma doente, mesmo que rodeada do brilho intenso de riquezas espectaculares, mesmo que fira a nossa vista a enganadora luz das honras ou do exercício do poder!

Ser-nos-á dado assim compreender como é desprezível tudo aquilo que admiramos à maneira das crianças, que dão o maior valor a qualquer brinquedo, e até preferem um colarzito comprado por três moedas à companhia dos pais ou dos irmãos ! Que diferença há entre nós e os miúdos senão, como diz Aríston, que as nossas brincadeiras loucuras bem mais caras do que as deles ! – são antes os quadros e as estátuas (1) ?

As crianças ficam todas contentes quando encontram na praia alguns calhaus coloridos; nós preferimos enormes colunas variegadas, importadas das areias do Egipto ou dos desertos do Norte de África para a construção de algum pórtico ou de um salão de banquetes com capacidade para uma multidão.

Olhamos com admiração paredes recobertas de placas de mármore, embora cientes do material que lá está por baixo. Iludimos os nossos próprios olhos: quando recobrimos os tetos a ouro o que fazemos senão deleitar-nos com uma mentira?

Sabemos bem que por baixo desse ouro se oculta reles madeira ! Mas não são só as paredes ou os tetos que se recobrem de uma ligeira camada: também a felicidade destes aparentes grandes da nossa sociedade é uma felicidade “dourada” !

Observa atentamente, e verás a corrupção que se esconde sob essa leve capa de dignidade. Desde que o dinheiro (que tanto atrai a atenção de inúmeros magistrados e juízes e tantos mesmo promove a magistrados e juízes!. .. ), desde que o dinheiro, digo, começou a merecer honras, a honra autêntica começou a perder terreno; alternadamente vendedores ou objectos postos à venda, habitua-mo-nos a perguntar pela quantidade, e não pela qualidade das coisas (2).

Somos boas pessoas por interesse, somos bandidos por interesse, praticamos a moralidade enquanto dela esperamos tirar lucro, sempre prontos a inverter a marcha se pensamos que o crime pode ser mais rendível.

Os nossos pais habituaram-nos , a dar valor ao ouro e à prata, e a cupidez que assim nos foi instilada ganhou raízes e foi crescendo conosco. Toda a gente, ao fim e ao cabo tão díspar em tudo o mais, está de pleno acordo quanto ao “vil metal”: só a ele aspira, só a ele deseja para os seus, e é ele a coisa mais preciosa que encontra para oferecer aos deuses em ação de graças !

A moralidade pública degradou-se a tal ponto que a pobreza é objeto de maldição e causa de opróbrio, desprezada pelos ricos e odiosa aos pobres. Junte-se a isto os cantos dos poetas, que lançam mais lenha na fogueira das nossas paixões ao exaltar a riqueza como o único adorno capaz de embelezar a vida.

No entender deles nada há de melhor que os deses imortais possam prodigalizar ou possuir eles próprios.

“O palácio do Sol elevava-se sobre sublimes colunas, rauioso graças ao ri oo o ouro. ” Ovídio, Met., II, 1-2.

Vê agora a descrição do carro do Sol:

” De ouro era o eixo, de ouro o timão, em ouro era o aro das rodas, e de prata eram feitos os seus raios” Ovídio, Met,107-8.

Pois se até chamam “idade de ouro” à época que descrevem como a melhor da História!. .. Nos trágicos gregos também não faltam personagens que trocam por qualquer lucro a honradez, a saúde, a reputação.

“Chamem-me o pior dos bandidos, desde que me chamem ‘rico’Trag. Graec. Frag., adesp. 181. 1 Nauci/
Todos queremos saber se ele é rico, ninguém se é homem de bem.
Não te perguntam porquê e donde vens, mas sim quanto possuis. Em todo o lado um homem só vale pelo que tem.
De nenhum bem a posse me desonra. A falta de posses, sim!
Se rico, quero viver, se pobre, opto pela morte.
Bela é a morte daquele que morre a fazer dinheiro Trag. Graec. Frag., adesp. 461 Nauci/.
Ó dinheiro, supremo bem da espécie humana, prazer superior à presença de mãe extremosa, ou de filhos, ou de pai digno e benfazejo! Se tão doce é o brilho do olhar de Vénus, justo é o amor que ela ateia entre deuses e homens! Eurípides, Danae, fr. 324 Nauck .

Quando se acabaram de ouvir estes versos de Eurípides, todo o público se ergueu num repelão, disposto a expulsar da cena o ator e a tragédia, e só não o fez porque Eurípides correu em pessoa à frente dos espectadores, pedindo-lhes que esperassem até ver o que sucedia a esse apaixonado pelo ouro!

Na peça, de fato, Belerofonte sofria o castigo que todo o homem sofre no drama da sua vida. A avareza nunca passa sem castigo, embora o pior dos castigos seja a sua própria existência.

Que quantidade de lágrimas e tormentos ela exige! Que angústias sofrem os avaros, ora pelos bens que ambicionam, ora pelos que já possuem! Junta a isto a ansiedade que diariamente atormenta cada um em função da riqueza que guarda. A posse do dinheiro causa mais torturas do que a sua conquista. Quantos gemidos o avaro solta ante qualquer prejuízo que, por grande que seja, ele imagina sempre maior! Para ele, ainda quando a fortuna em nada diminui as suas posses, a não obtenção de um- lucro é olhada como um prejuízo.

“Mas todas as pessoas lhe chamam ‘homem feliz: ‘homem rico’ – e bem gostariam de ser donas de tantos bens como ele.’”

É verdade ! E depois ?

Pensas que pode haver situação pior para um homem do que sentir-se simultaneamente miserável e objeto de inveja ?

Oxalá os candidatos à riqueza começassem por ouvir a opinião dos ricos; oxalá os candidatos às honras começassem por ouvir os ambiciosos que já atingiram o topo da carreira.

Entretanto, todos vão criticando as ambições passadas só para formar outras novas. Ninguém, de fato, se satisfaz com a própria prosperidade por muito rapidamente que a alcance; todos se lamentam dos seus projetos, do modo como as coisas lhes correm, e acham sempre que afinal estavam melhor anteriormente.

Ora aqui está um serviço que a filosofia te pode prestar e que, a meu ver, é um bem inestimável : fazer com que nunca te lamentes do que és !

Um bem-estar tão firme que tempestade nenhuma o pode abalar – não é à custa de sábias combinações de palavras e de perfeita fluência no discurso que o conseguirás. Deixa as palavras correr como lhes apetecer, desde que a tua alma mantenha sólida a sua estrutura; que ela seja elevada, se conserve ao abrigo das falsas opiniões e por isso mesmo aprecie aquilo que o vulgo detesta. Faz com que a tua alma julge dos seus progressos em função dos seus atos e avalie o próprio saber pelo seu grau de independência em relação aos desejos e ao medo.

Passar Bem!