1 de outubro de 2025

Carta 114 – O estilo é um reflexo da vida!

Por lucianakeiko@gmail.com

Qual a causa que provoca, em certas épocas, a decadência geral do estilo? De que modo sucede que uma certa tendência se forma nos espíritos e os leva à prática de determinados defeitos, umas vezes uma verborreia desmesurada, outras uma linguagem sincopada quase à maneira de canção ?

Porque é que umas vezes está na moda uma literatura altamente fantasiosa para lá de toda a verosimilhança, e outras a escrita em frases abruptas e com segundo sentido em que temos de subentender mais do que elas dizem? Porque é que nesta ou naquela época se abusa sem restrições do direito à metáfora ? Eis o rol dos problemas que me pões.

A razão de tudo isto é tão bem conhecida que os Gregos até fizeram dela um provérbio: o estilo é um reflexo da vida! De fato, assim como o modo de agir de cada pessoa se reflete no modo como fala, também sucede que o estilo literário imita os costumes da sociedade sempre que a moral pública é contestada e a sociedade se entrega a sofisticados prazeres.

corrupção do estilo demonstra plenamente o estado de dissolução social, caso, evidentemente, tal estilo não seja apenas a prática de um ou outro autor, mas sim a moda aceite e aprovada por todos.

Não é possível o espírito ter uma tendência e a alma ter outra. Se a alma é sadia, senhora de si, severa e comedida, o espírito será igualmente grave e sóbrio; quando a alma é viciosa, o espírito também degenera.

Não vês tu que, se a alma é débil, as pessoas arrastam o corpo e só a custo se movem? Que, se a alma é efeminada, até no modo de andar se nota essa moleza ? Que, se ela é, pelo contrário, ardente e forte, a marcha se torna acelerada ? Que ainda, no estado de loucura, ou de cólera (que, aliás, é um estado semelhante à loucura) o movimento do corpo se torna caótico, descontrolado, sem sentido definido? Todos estes sintomas se tornarão mais evidentes ainda no que concerne ao espírito, já que este está totalmente impregnado pela alma, da qual recebe a sua forma, à qual obedece, a cuja lei se submete.

O estilo de vida de Mecenas é por demais conhecido para que seja necessário eu descrever o modo como ele se passeava, os seus requintes predilectos, o seu exibicionismo, a sua recusa em ocultar os próprios vícios.

Pois bem: não é verdade que o seu estilo era tão desprovido de firmeza como a sua túnica era desprovida de cinto ? Não é verdade que as suas frases eram tão sofisticadas como o seu trajo, os seus acompanhantes, a sua casa, a sua mulher?

Este homem podia ter sido um grande espírito se empregasse o seu talento num sentido mais correto, se não sentisse repugnância em fazer-se entender, se não fosse tão prolixo.

Vais ver como o seu estilo é retorcido, divagante, sem qualquer contenção – tal como a marcha de um ébrio ! O que há de mais repugnante do que esta frase:

“um rio de que uma cabeleira de bosques cobre as margens”?

Ou esta outra:

“aram o leito do rio com as suas barcas e deixam para trás os jardins, subindo a corrente”?

E que dizer de um sujeito que

“se enruga todo a piscar o olho à amante, a beija arrulhando como um pombo e desata aos suspiros como os tiranos dos bosques que agitam freneticamente a armação já fatigada”?

“Em grupo, insaciáveis, escavam tudo em busca de comida e de garra/ as, não nos largam a casa, vão passando a morte sempre à espera.” “Um Génio que mal assiste à festa em sua honra.”

“O pavio de uma vela enegrecida;”

“um bolo estaladiço.”

“A mãe ou a mulher servem de vestido à lareira.”(1)

Porventura não é evidente, logo a uma primeira leitura, que o autor destas frases é o mesmo homem que percorria Roma sem pôr o cinto na túnica (e até quando, na ausência de César, ele ficava interinamente nas suas funções, era a este “homem sem cinto” que se ia pedir a palavra de ordem!); o mesmo homem que no tribunal, na tribuna rostral ou em qualquer reunião pública aparecia sempre com a cabeça coberta por um manto, só com as orelhas de fora, com a mesma aparência com que vemos nos mimos os escravos fugitivos de algum ricaço?

O mesmo homem que, mesmo no período mais aceso da guerra civil, quando Roma em armas vivia na ansiedade, se fazia escoltar em público por dois eunucos – mais homens mesmo assim do que ele próprio ?

O mesmo homem que celebrou milhentas vezes o seu casamenta com a mesma mulher ? Estas frases de Mecenas, tão artificialmente construídas, escritas tão sem cuidado, inventadas expressamente para chocar os hábitos de toda a gente, mostram bem como o seu carácter era também um misto de irreverência, de depravação, de originalidade.

benevolência é o maior título de glória que se lhe atribui: de fato, ele nunca usou a força, absteve-se do sangue alheio e não deu mostras do poder que possuía senão pela licenciosidade a que se entregava.

O alambicado monstruoso do seu estilo destruiu no entanto esse título de glória, tornando visível que a sua característica era a moleza, e não a clemência. O tortuoso das suas frases, o ineditismo das suas expressões, as suas ideias chocantes – que às vezes têm algo de consistente, mas a que o estilo despoja de energia – tornam evidente a qualquer pessoa que o excesso de prosperidade lhe deu a volta à cabeça!

Por vezes, este defeito é apanágio de um só homem, por vezes é de toda uma época. Quando a prosperidade generaliza os hábitos de luxo, começa-se por dedicar uma maior atenção ao aparato do vestuário; depois, vem a preocupação com a mobília, por fim todos os cuidados se dirigem para a própria casa: pretende-se que ocupe uma área idêntica à de uma herdade, que as paredes reluzam com mármores importados do outro lado do mar, que os tectos sejam decorados a ouro, que o brilho do pavimento corresponda ao dos caixotões do tecto.

Passa-se em seguida ao luxo da mesa: aqui o requinte reside no ineditismo e na alteração da ordem por que se servem os pratos, servindo por exemplo em primeiro lugar o que se costuma deixar para a sobremesa, em suma dando aos convivas à entrada o que era usual servir-lhes à saída.

Quando os espíritos se enfastiam com o que vem da tradição e julgam que uma coisa é reles só por ser habitual, também quanto ao estilo só se procura a novidade, umas vezes indo desenterrar palavras arcaicas e obsoletas, outras vezes criando neologismos ou dando às palavras significados inéditos, outras ainda – é esta a última moda ! – tomando por opulência de estilo a audácia e a abundância das metáforas.

Há autores que cortam a frase a meio na esperança de agradar ao público pelo fato de deixarem a ideia em suspenso, induzindo no auditório a ambiguidade; outros, em contrapartida, desenvolvem e esticam a frase até mais não poder; há-os ainda que sem chegar ao mau gosto declarado (o que é inevitável em escritores com tendência para o bombástico), não deixam por isso de tender para a prática de um gosto duvidoso.

Por conseguinte, sempre que vires um estilo decadente cair nas boas graças do público, podes estar certo de que a moralidade anda também muito por baixo ! Assim como o luxo excessivo nos banquetes ou no modo de vestir é sintoma de uma sociedade doente, também o barroquismo do estilo, quando se generaliza, mostra que os espíritos estão decadentes – pois é do espírito que nascem as palavras!

Não deves espantar-te também ao veres o estilo decadente ser aplaudido não só pelas camadas mais baixas da sociedade mas até mesmo pelos círculos ditos superiores: o que distingue umas camadas das outras é a toga, e não o espírito crítico!

Já terás mais razões para te espantares de que se cubram de louvores não só os produtos viciosos mas também os próprios vícios. Isto é um fenómeno de sempre: ninguém impôs o seu talento sem concessões ao público. Podes citar-me qualquer autor famoso que te apeteça, e eu serei capaz de dizer-te quais os defeitos que os seus contemporâneos lhe desculparam ou dissimularam conscientemente. Posso citar-te muitos escritores cujos vícios em nada os prejudicaram, e alguns mesmo a quem os defeitos só aproveitaram. Posso afirmar-te que há autores famosíssimos, objeto de universal admiração que, se os expurgarmos dos seus defeitos, ficam reduzidos a nada, pois de tal modo neles se combinam os defeitos com as qualidades que, se eliminarmos aqueles, também estas se perderão.

Não podes esquecer, aliás, que em questões de estilo não existe uma norma absoluta; o estilo varia ao sabor da moda, e a moda está sempre a mudar. Muitos escritores há que usam palavras próprias de outros tempos e só se exprimem na linguagem da Lei das Doze Tábuas; para eles Graco, Crasso e Curião são demasiado elaborados e modernos, pelo que preferem recuar até Ápio Cláudio e Coruncânio. Outros, em contrapartida, caem na vulgaridade à força de só quererem usar termos batidos e usuais.

Uns e outros, cada um à sua maneira, dão provas de igual decadência estilística, tanto – Deus me valha ! – como aqueles que só aceitam usar termos solenes, sonoros, poéticos e rejeitam aquelas palavras indispensáveis ao uso diário. Quer uns quer outros ultrapassam a justa medida, os primeiros usando mais adornos que o necessário, os outros menos do que o necessário. Os primeiros até depilam as pernas, os outros não depilam sequer os sovacos !

Passemos à composição da frase. Quantos tipos de estilo queres tu que eu exemplifique com deficiências de composição? Uns preferem a frase sacudida e áspera, e quando algum desenvolvimento se vai processando com calma confundem deliberadamente a estrutura; detestam transições sem solavancos; acham que ferir os ouvidos com a falta de ritmo é sinal de força viril !

Em outros, em vez de composição encontra-se uma autêntica melodia, tão dengoso e efeminado é o ritmo. E que dizer daquele estilo em que as palavras exigidas pelo sentido se vão fazendo esperar até só aparecerem mesmo no fim ? E daquela frase, como era por exemplo a de Cícero, que se desenvolve lentamente, que vai deslizando sem sobressaltos e apresenta no fim uma estrutura rítmica (2) sempre igual ?

E nao apenas…………(3) no que concerne às máximas havemos de considerar como defeito que elas sejam ridículas e pueris, ou então chocantes e deliberadamente imorais; defeito será também se são demasiado rebuscadas, ou demasiado adocicadas, se sabem a oco e não têm outro mérito além da sonoridade.

Estes defeitos são originados, em geral, por um autor cujo estilo se considera modelar; os outros imitam-no, e assim o defeito se vai generalizando. Por exemplo, quando Salústio estava na moda considerava-se o suprassumo do estilo: as sentenças abruptas, as frases inesperadamente sincopadas, a concisão obscura. Lúcio Arrúncio, homem, aliás, de rara parcimónia, autor de uma “História da Guerra Púnica”, era um fervoroso admirador de Salústio e brilhante imitador do seu estilo. Em Salústio encontramos a frase “com dinheiro fez um exército”(4) , isto é, contratou soldados, pagando-os do seu próprio bolso.

Arrúncio deu em apreciar tanto esta expressão que a empregou em todas as suas páginas. Num passo, diz ele

“que fizeram os nossos pôr-se em fuga”

, noutro, afirma que

“foi Hierão, rei de Siracusa, que fez rebentar a guerra”

, noutro ainda que

“estas notícias fizeram os Panormitanos render-se aos Romanos (5) “

Isto é só uma pequena amostra; o livro dele está repleto de frases similares. Quer dizer, uma expressão que em Salústio era rara, tornou-se nele frequente, quase conrínua. E com razão: Salústio forjou-a casualmente, Arrúncio rebuscava-a. Estás a ver as consequências de se tomar como modelo a imitar o que não passa de um tique de estilo. Salústio escreveu algures:

“as águas invernosas (5)”.

No primeiro livro da sua “Guerra Púnica” Arrúncio escreve que

“de repente o tempo se tornou invernoso”

; num outro passo, para dizer que o ano foi frio, diz:

“o ano inteiro foi invernoso”

; noutro lugar diz:

“de lá enviou sessenta navios de transporte ligeiros, além dos soldados e dos marinheiros indispensáveis, sob uma nortada invernosa (7)”.

E nunca mais deixou de meter este termo a torto e a direito ! Salústio diz ainda a certa altura:

“enquanto, em plena guerra civil, ele procura as famas de homem justo e bom(8)”.

Arrúncio não se conteve: logo no primeiro livro escreveu que eram grandes as “famas” de Régulo ! Estes defeitos, e outros que tais, induzidos pela imitação em certos escritores, não são só por si sintomas de degradação e corrupção espiritual; apenas se tais vícios são exclusivos de alguém, nascidos mesmo do caráter desse alguém, é que tu estarás autorizado a julgar a partir deles o carácter e as tendências do seu autor.

O estilo de um homem colérico denotará cólera, tal como o de um indivíduo impulsivo denota excitação e o de um efeminado moleza e indecisão. Fenómeno idêntico é o que tu verificas em certos sujeitos que ora rapam a barba toda ou só em parte, que tosquiam o bigode , mas deixam crescer os pêlos mesmo à beira dos lábios, que usam capas de cores indecentes ou togas transparentes, ou seja, cuja única preocupação é fazer qualquer coisa que dê nas vistas: só pretendem chocar os outros, atrair os olhares, não se importando com censuras desde que se repare neles!

Tal é o estilo de Mecenas e de todos os outros que incorrem em vícios de linguagem, não por casualidade, mas consciente e deliberadamente. A causa disto está numa grave perturbação da alma. Sob o efeito da bebida, a voz só começa a ficar empastada quando o cérebro cede ao peso do álcool e perde por completo o equilibrio: semelhantemente, também esta espécie de embriaguês de linguagem só é verdadeiramente perniciosa quando a alma está em desequilíbrio. Cuidemos, portanto, da alma, pois dela provêm as nossas ideias, as nossas palavras, é ela quem regula a nossa aparência, a nossa fisionomia, o nosso modo de andar.

Se a alma está sã e robusta, também o estilo será vigoroso, enérgico, viril, mas se perde o equilíbrio tudo o mais cairá por terra.

“Quando o rei está incólume um só espírito reina, mas morto ele rompem-se os laços sociais ! (9) “

O nosso rei é a alma; se esta permanece incólume, todas as riossas funções e deveres se realizam na mais perfeita ordem, mas se ela começa a oscilar, por pouco que seja, tudo o mais em nós é afetado. E quando a alma cede ao império do prazer, os nossos talentos e as nossas ações degradam-se, todos os nossos esforços carecem por completo de consistência.

Já que me servi deste símile vou continuar com ele. A nossa alma pode comportar-se umas vezes como rei, outras como tirano. Um rei atento à estrita moralidade cuida da saúde do corpo que lhe está confiado, não dá a mínima ordem que seja imoral ou degradante. Mas um rei sem sentido de medida, ambicioso e debochado passa a merecer antes o nome odioso e cruel de tirano.

Paixões desenfreadas apoderam-se da alma, espicaçam-na, inicialmente cumulando-a de gozo, tal como a populaça em período de larguezas (nocivas a médio prazo) se sacia enganadoramente, agarrando a mãos ambas bens que não poderá consumir. Mas quando a moléstia, sempre em crescendo, vai consumindo as forças, quando o deboche se introduz na medula e nos nervos, então compraz-se na contemplação de gozos que, pelos seus excessos, já se lhe tornaram inacessíveis: o espectáculo dos prazeres alheios é o prazer que lhe resta, torna-se testemunha e conselheira de libertinagens de que tem de abster-se devido aos excessos passados. E mais do que lhe fora grata a abundância de delícias, é-lhe agora amargo que todo o luxo gastronómico se afaste da sua boca e do seu estômago, que já não lhe seja dado rebolar-se entre uma multidão de pederastas e prostitutas!

Para uma tal alma, ver-se privada de grande parte do seu gozo devido às debilidades do corpo – que desolação!

Não é verdade, meu caro Lucílio, que toda esta insensatez é a consequência, por um lado, de que nenhum de nós tem a consciência da sua mortalidade e insignificância, por outro, e principalmente, de que nenhum de nós pensa que é apenas um entre muitos?

Repara nas nossas cozinhas e nos cozinheiros que se atropelam à roda de todos os fogões: parece-te plausível que tanta agitação se destine a preparar comida para um único estômago ? Repara nas caves onde pomos a envelhecer os vinhos produzidos ao longo de gerações: parece-te plausível que se guardem vinhos de tantas colheitas e de tantas regiões para um único estômago? Repara nas inúmeras zonas onde se trabalha a terra, nos milhares de colonos que a lavram e a cavam: parece-te plausível que todas as sementeiras da Sicília e da África se destinem a um único estômago ?

Se cada um de nós tomar as próprias medidas, se se convencer de que não pode consumir muito nem por muito tempo, todos poremos saudavelmente um freio aos nossos desejos.

Nada, porém, te será mais útil para manteres em tudo a justa medida do que meditares continuamente na brevidade e incerteza da vida. Faças o que fizeres, nunca deixes de pensar na morte !

Passar Bem!

(1) Mecenas, fr. 11 Lunderstedt.
(2) As chamadas “cláusulas métricas”.
(3) Lacuna postulada por Reynolds.
(4) Salústio, Hist., fr. I, 27* Maurenbrecher.
(5) Arrúncio, Hist., fr. 1-7 Peter.
(6) Possivelmente trata-se de um fr. das Historiae. (7) Cf. supra nota 18. (8) Salústio, Hist,, fr. l, 90* Maurenbrecher.
(9) Vergílio, Georg., IV, 212-3.