Carta 113 – A forma de poder mais alta e divina que existe: o poder de nos dominarmos a nós mesmos!
Pedes-me que te escreva a expor a minha opinião sobre mais um problema debatido pelos nossos mestres estóicos, a saber, se a justiça, a coragem, a prudência e as demais virtudes são ou não seres animados (1)
Caro Lucílio, com estes subtis raciocínios não conseguimos mais do que dar a aparência de exercitar o engenho com bagatelas e empregar os nossos ócios em discussões totalmente estéreis.
Vou, no entanto, satisfazer o teu desejo e expor a opinião da nossa escola sobre o assunto. Mas declaro-te desde já que a minha opinião pessoal é diferente; entendo mesmo que só os Gregos é que se podem permitir o luxo de certas discussões.
Vamos lá, então, ver quais são esses problemas que ativaram os antigos, pensadores, ou talvez, melhor dizendo, que os antigos pensadores ativaram.
É ponto assente que a alma é um ser animado (2) , pois é ela que faz de nós seres animados, e é do nome da alma que vem até a designação de “animais”; ora, a virtude não é outra coisa senão a alma dotada de uma determinada conformação; logo, a virtude é um ser animado.
Por outro lado, a virtude realiza uma ação; ora, nada pode agir se não tiver movimento próprio; se a virtude tem movimento próprio – faculdade exclusiva dos seres animados – é porque é um ser animado.
“Se a virtude é um ser animado”
objeta-se
“ela própria possui em si mesma virtude.”
Porque não há-de possuí-la? Assim como o sábio realiza tudo através da virtude, também esta o faz através de si própria.
“Nessa ordem de ideias”
prossegue a objeção –
“todas as artes, todos os nossos pensamentos, todos os nossos conhecimentos serão seres animados. Consequentemente, no espaço limitado do nosso espírito habitarão muitos milhares de seres animados; cada um de nós ou será ao mesmo tempo muitos seres animados ou conterá dentro de si muitos seres animados.”
Queres saber como se pode responder a esta objecção ? Dizendo que cada uma das coisas mencionadas será um ser animado, mas sem que formem um conjunto de seres animados. Como é isso ? Eu explico, mas tens de aplicar toda a atenção e subtileza de que fores capaz.
Cada ser animado deve possuir uma substância individual, mas todos eles possuem apenas uma alma; por isso podem ser vistos cada um deles como um ser, mas não podem formar uma multiplicidade de seres.
Eu, por exemplo, sou um ser animado e sou ‘um homem sem que, no entanto, possas dizer que eu sou dois seres, porque, para eu ser dois, teria cada um deles de estar separado do outro.
Por outras palavras, dois seres só podem ser tomados como de fato dois seres se forem completamente independentes um do outro.
Tudo quanto é múltiplo dentro da unidade participa da natureza do uno, e portanto é uno. A minha alma é uma parte de mim. Um ser só será contado como um indivíduo se subsistir individualmente; enquanto for uma parte de outro ser não poderá ser considerado como um ser à parte, pela simples razão de que, para ser um ser à parte, teria de possuir uma individualidade própria, completa, fechada sobre si mesma.
Já atrás te declarei que a minha opinião é diversa, porquanto, se se aceitar esta tese, teremos de admitir que não apenas as virtudes são seres animados mas que igualmente o são os vícios e as paixões, tal como a ira, o medo, a dor, a desconfiança.
E não ficará por aqui: serão seres animados, ainda, todas as nossas frases e todos os nossos pensamentos. Ora, esta consequência é inaceitável, uma vez que aquilo que deriva do homem não é, só por isso, um homem.
“Então, o que é a justiça?”
perguntam. A justiça é a alma conformada de uma determinada maneira.
“Nesse caso, se a alma é um ser animado, também a justiça o é.”
De modo nenhum; a justiça é apenas uma certa conformação da alma, uma certa energia. A mesma alma pode assumir diversos aspectos sem que pelo fato de agir em variados sentidos se torne em outros tantos seres animados; aquilo que é realizado pela alma não é só por isso um ser animado.
Se a justiça, a coragem e as restantes virtudes são seres animados como é que as coisas se passam : deixam de ser de vez em quando seres animados, voltam depois a sê-lo de novo, ou são-no sempre? As virtudes nunca podem deixar de ser virtudes; logo, na nossa alma terão de agitar-se seres animados em quantidades enormes, enormíssimas mesmo!
“Não são em grande quantidade,”
dir-se-á –
“porquanto dependem de um único ser – a alma – de que são partes constitutivas.”
Quer dizer: imaginamos que o aspecto da alma é semelhante ao da hidra de muitas cabeças que lutam e atacam cada uma por seu lado !
Na realidade, cada uma dessas cabeças não é um ser animado, mas apenas a cabeça de um ser animado; a própria hidra, essa sim, é que é um ser animado. Ninguém diz que o leão ou a serpente que formam a Quimera são seres animados distintos mas apenas partes constitutivas de um ser; ora, cada parte não constitui um ser animado.
O que é que pode levar a concluir que a justiça é um ser animado?
“A justiça age e é útil, o que age e é útil possui movimento, e tudo quanto possui movimento é um ser animado.”
Isso é verdade se tiver movimento próprio; mas a justiça carece de movimento próprio, apenas tem o que lhe é transmitido pela alma.
Todo o ser animado é, até morrer, aquilo que foi desde o início; até morrer, o homem continuará homem, o cavalo cavalo, e o cão cão; nenhum pode transformar-se em coisa diferente do que era.
Aceitemos, por hipótese, que a justiça, isto é, a alma, conformada de uma certa maneira, é um ser animado. Ora, também a coragem isto é, a alma conformada de uma determinada maneira, é um ser animado.
Mas qual alma ? Aquela que ainda há pouco era.
“justiça” ?_ Se se mantém com a conformação do primetro ser ammado não lhe é possível assumir a conformação de outro ser animado, mas terá de continuar com a conformação que assumiu de início.
Além disso, uma só alma não pode pertencer simultaneamente a dois seres animados, quanto mais a vários. Se a justiça, a coragem, a moderação e as demais virtudes são seres animados como é possível que tenham uma só alma ? Ou cada uma tem de ter a sua alma, ou então não são seres animados.
Um só e mesmo corpo não pode pertencer em simultâneo a dois seres animados; até os mestres da escola o admitem. Ora, qual é o corpo da justiça? “A alma.” E o corpo da coragem, qual é ? “A mesma alma.” Mas vimos que um único corpo não pode pertencer em simultâneo a dois seres animados.
“É que a mesma alma”
dizem –
“ora assume a conformação da justiça, ora a da coragem, ora a da moderação”.
Isto seria viável se quando houvesse “justiça” não existisse “coragem”, ou se quando houvesse “coragem” não existisse “moderação”; o que se verifica, porém, é que todas as virtudes existem em simultâneo.
Como é, então, que cada virtude é um ser animado se a alma é só uma e se a alma não pode originar mais do que um único ser animado? Em conclusão, nenhum ser animado é parte de outro ser animado; ora, a justiça é uma parte da alma, logo, não é um ser animado.
Parece-me bem que não estou fazendo outra coisa senão perder tempo com uma coisa evidente, com um problema mais digno de repúdio do que merecedor de discussão. Não existem dois animais exatamente iguais. Se os observarmos a todos um por um verificaremos que cada um tem uma cor, uma configuração e um tamanho peculiares.
Entre os vários aspectos que nos fazem admirar o engenho do divino artífice parece-me ser de incluir também este: na imensa multiplicidade da natureza nunca ele repetiu o mesmo esquema; mesmo seres que parecem idênticos revelam-se distintos se os compararmos bem.
Criou inúmeros tipos de folhas: não há nenhuma que não tenha a sua forma individual; criou inúmeras espécies de animais: não há dois que tenham as mesmas proporções, há sempre alguma diferença entre eles.
Teve a preocupação de que todos os seres individuais tivessem diferenças que os distinguissem claramente. Ora todas as virtudes, dizeis vós, são idênticas; logo, não são seres animados. Todo o ser animado age por si próprio; a virtude, contudo, não faz nada por si própria, mas sim concomitantemente com o homem.
Todos os seres animados ou são racionais como os homens ou os deuses, ou são irracionais como os animais, selvagens ou domésticos; as virtudes são inteiramente racionais, mas não são nem homens nem deuses; logo, não são seres animados.
Todo o ser animado racional precisa, para agir, de ser previamente estimulado pela observação de algum objeto; em seguida, põe-se em movimento e por fim surge o assentimento que confirma o movimento adquirido.
Vou explicar-te o que se entende por assentimento. Por exemplo, eu necessito de caminhar: apenas me ponho em marcha quando disse isso a mim mesmo e aprovei a minha decisão; se necessito de me sentar, é através de um processo semelhante que eu me sento. Este assentimento não se inclui no âmbito da virtude.
Considera, por exemplo, a prudência: como pode ela dar o seu assentimento à proposição “necessito de caminhar” ? Não lhe é possível, por natureza, fazer semelhante coisa. A prudência, de fato, prevê em função do homem que a possui; não em função de si mesma; ela não pode, por si, nem andar nem sentar-se!
Logo, não pode dar o seu assentimento, e quem não pode dar o seu assentimento não é um ser animado -racional.
Se a virtude é um ser animado tem de ser racional; mas como não é um ser racional não pode ser um ser animado. Se a virtude é um ser animado e se, por outro lado, todo o bem é virtude, então todo o bem é um ser animado (3) !
Os nossos mestres admitem esta proposição. Mas, por exemplo, salvar o pai é um bem, emitir um parecer sensato no senado é um bem, julgar com justiça é um bem, logo salvar o pai ou emitir uma opinião abalizada seriam seres animados. E os exemplos multiplicam-se de modo tal que se torna impossível suster o riso: manter um prudente silêncio é um bem, jantar é um bem, logo o silêncio e o jantar seriam seres animados !
E já agora, pelos deuses !, não vou parar com a brincadeira e o gozo que me dão estas ineptas subtilezas. A justiça e a coragem, se são seres animados, devem necessariamente ser animais terrestres; ora, todo o animal terrestre está sujeito ao frio, à fome e à sede; logo, a justiça está com frio, a coragem está com fome, a clemência está com sede !
Que me resta fazer ? Não hei-de perguntar a esses pensadores que aspecto têm todos estes seres animados ? Parecem-se com um homem, com um cavalo, com uma fera ? Se atribuírem a tais seres a mesma forma redonda que atribuem à divindade (4) dá-me mesmo vontade de lhes perguntar se a avareza, a mania do luxo ou a loucura também serão redondas, já que todas elas são seres animados!
E se disserem que sim senhor, que tudo isto é redondo, então eu pergunto-lhes se um passeio cauteloso também é um ser animado. Serão forçados a aceitar que sim, ou seja, hão-de declarar que um passeio é um animal, e redondo ainda por cima ! …
Não imagines que de entre os estóicos sou eu o primeiro a falar sem ser pelo manual, e a ter a minha opinião própria: Cleantes e o seu discípulo Crisipo não chegaram a acordo sobre o que se entende por “caminhada”.
Para Cleantes é como que uma corrente de ar que vem do princípio dominador da alma e desce até aos pés, para Crisipo é o próprio princípio dominador da alma (5)
Que nos impede, portanto, de seguir o exemplo de Crisipo, reivindicar o direito a ter opinião própria e troçar de todos estes seres animados que nem o universo seria capaz de conter?
“As virtudes”
dizem –
“não formam uma multiplicidade de seres animados, são, no entanto, seres animados. Assim como um homem pode ser poeta e orador sem deixar de ser uno, também as virtudes são seres animados sem serem uma multiplicidade. São uma e a mesma coisa a alma, e a alma justa, a alma prudente e a alma corajosa, isto é, a alma posta em consonância com determinadas virtudes.”
Nestes termos, acaba-se a desavença e estamos todos de acordo. Também eu admito por agora que a alma seja um ser animado, embora reserve para mais tarde a análise do que pretendo dizer com isto. Mas nego que as acções da alma sejam seres animados. Se assim não for, teremos de considerar qualquer palavra ou qualquer verso como um ser animado. Se uma proposição correta é um bem, e se todo o bem é um ser animado, segue-se que uma proposição é um ser animado. Um verso prenhe de sentido é um bem, e todo o bem é um ser animado, logo um verso é um ser animado. Por conseguinte
“eu canto as armas e o herói” (6)
é um ser animado; só não podem dizer que é redondo porque tem seis pés de extensão !
“Hércules me valha!”
dirás tu. –
“Todo esse arrazoado não passa de uma teia completamente enredada !” (7)
Parto-me a rir ao pensar que um solecismo, um barbarismo ou um silogismo também são seres animados e ao imaginar com que aspecto os representaria se fosse pintor! E é isto o que nós discutimos – com o ar mais grave deste mundo?! Nem sequer posso exclamar como Célia (8)
“Oh, tristes bagate-las !”, tão ridículas elas são.
Não seria muito mais preferível ocuparmo-nos de coisas úteis e salutares, tal como investigar de que modo nos é possível atingir as virtudes, qual a via que conduz até elas ? Em vez de me ensinarem se a coragem é ou não um ser animado, prefiro que me digam que nenhum ser animado pode ser feliz sem coragem, se não tiver armas que o defendam dos acasos da fortuna e se, através da meditação, não se tiver posto acima de todas as contingências antes ainda de nelas se ver envolvido.
O que é a coragem? É uma barreira inexpugnável a defender a fraqueza humana; quem dela se rodeia pode resistir em segurança a este violento cerco que é a vida, usando as suas próprias forças, as suas próprias armas.
A este propósito gostaria de citar-te uma máxima do nosso Posidónio:
“Não imagines nunca que poderás proteger-te com armas dadas pela fortuna; luta, isso sim, com as tuas. A fortuna não fornece a ninguém meios de defesa contra ela própria. Por isso é que os homens estão bem defendidos contra os inimigos, mas se vêem inermes perante a fortuna.”
Alexandre derrotou e pôs em fuga Persas, Hircanos, Indianos e todos os demais povos que desde o oriente se espalham até ao mar oceano; quando, porém, de uma vez ordenou a morte de um amigo, de outra perdeu um segundo amigo, Alexandre deitava-se às escuras, lamentando-se num caso do seu crime, no outro roendo-se de saudades.
O vencedor de tantos reis e tantas nações deixava-se vencer pela ira ou pela amargura! E como não seria assim, se ele próprio julgava preferível conquistar o universo a dominar as suas paixões? Em que enorme teia de enganos se deixam enredar os homens que põem a sua ambição no desejo de estender a conquista para lá dos mares, que se julgam no cúmulo da felicidade quando ocupam militarmente imensas províncias, juntando novas terras às que já possuíam – e se não dão conta da forma de poder mais alta e divina que existe: o poder de nos dominarmos a nós mesmos!
Quero que me ensinem também o valor sagrado da justiça – da justiça que apenas tem em vista o bem dos outros, e para si mesma nada reclama senão o direito de ser posta em prática. A justiça nada tem a ver com a ambição ou a cobiça da fama, apenas pretende merecer aos seus próprios olhos.
Acima de tudo, cada um de nós deve convencer-se de que temos. de ser justos sem buscar recompensa. Mais ainda: cada um de nós deve convencer-se de que por esta inestimável virtude devemos estar prontos a arriscar a vida, abstendo-nos o mais possível de quaisquer considerações de comodidade pessoal.
Não há que pensar qual virá a ser o prémio de um ato justo; o maior prémio está no fato de ele ser praticado. Mete também na tua ideia aquilo que há pouco te dizia: não interessa para nada saber quantas pessoas estão a par do teu espírito de justiça. Fazer publicidade da nossa virtude significa que nos preocupamos com a fama, e não com a virtude em si. Não queres ser justo sem gozares da fama de o ser ?
Pois fica sabendo: muitas vezes não poderás ser justo sem que façam mau juízo de ti ! Em tal circunstância, se te comportares como sábio, até sentirás prazer em ser mal julgado por uma causa nobre !
Passar Bem!
(1) Que as virtudes são seres animados ( virtutes esse animalia) era, de fato, teoria defendida pelos antigos estóicos. O texto mais completo sobre o assunto é, no entanto, a presente carta de Séneca, que figura na colectânea dos S. V.F., III como o fr. 307. Cf. no mesmo volume os frs. 305 e 306, em que a mesma tese é exposta de forma muito mais sucinta.
(2) “A alma que existe em nós é um ser animado”
(3) Cf as observações de Séneca na carta 106.
(4) Na Apocolocintose, 8, 1 Séneca cita ironicamente, remetendo para Varrão, a ideia de que, para os estóicos, “Deus é redondo”. Tal ideia pode justificar-se pela circunstância de a divindade se identificar com o universo, cuja forma seria esférica, cf. S. V.F., II, 1077 e 1060.
(5) Cf. S. V.F. II, 836. – Sobre o que se entende por princípio dominador da alma v. adiante a carta 121 e nota 8.
(6) Vergílio, Aen., 1, 1. Séneca faz um jogo de palavras, entre os seis pés do hexâmetro dactílico (unidades métricas) e pés como medida de comprimento, pelo que o “ser animado” que é o hexâmetro (!) nunca poderia ser redondo!
(7) Já o estóico Aríston de Quios comparava as subtilezas da ‘dialética a inúteis teias de aranha, v. S.V.F., I, 351.
(8) Caelianum = “o dito de Célio”, talvez o orador Célio Rufo, como pretende Justo Lípsio. Alguns mss., porém, registam a lição Caecilianum = “o dito de Cecílio’’, o que levaria a identificar a personagem com o poeta cómico Cecílio Esrácio, como faz, por ex., Warmington, em Remains o/ Old Latin, I, p. 561, embora com hesitação.