Carta 111 – Não pode conduzir bem a sua vida quem não tiver aprendido a desprezá-la.
Perguntaste-me qual o termo latino para designar os sophismata. (1)
Muitos autores tentaram impor-lhes um nome, mas nenhum vingou, talvez porque, tal como a coisa não nos era familiar nem estava nos nossos hábitos, também ao nome se ofereceu resistência.
De qualquer modo, o termo que se me afigura mais adequado é o usado por Cícero: cauillationes (2) .
Quem se entrega à respectiva prática, sem dúvida será capaz de arquitectar argumentos cheios de agudeza, mas sem qualquer utilidade para a sua vida, já que se não torna mais enérgico, mais moderado ou mais elevado por isso.
Em contrapartida, quem fizer da filosofia uma terapêutica tornar-se-á forte de espírito, cheio de autoconfiança, atingirá uma altura inigualável e tanto maior quanto mais dela nos aproximamos: É o mesmo que sucede com as grandes montanhas, cuja elevação é menos evidente quando as vemos ao longe; ao aproximarmo-nos, reparamos como é íngreme o acesso até ao cume.
Do mesmo modo é, caro Lucílio, o filósofo verdadeiro – em atos, não em palavras: situa-se num cume, imponente, majestoso, dotado de autêntica grandeza; não se ergue nem anda em bicos de pés, à maneira daqueles que procuram disfarçar a sua estatura e parecer mais altos do que são.
O filósofo contenta-se com a sua grandeza E como se não contentaria ao ter-se elevado a um ponto que a mão da fortuna não atinge? Por isso mesmo ele supera a fondição humana e permanece idêntico a si mesmo em qualquer situação, quer a sua vida decorra sem problemas, quer sofra flutuações, quer singre entre adversidades e perigos: uma tal firmeza não a podem proporcionar aqueles capciosismos de que acima falava.
São uma brincadeira do espírito, sem a mínima utilidade, que fazem a filosofia descer da sua altura até ao chão. Não te proíbo que, ocasionalmente, te dediques a eles, mas apenas quando quiseres estar sem fazer nada.
Eles têm, no entanto, este gravíssimo inconveniente: provocam um inegável prazer e detêm fixo neles o espírito pela sua aparente subtileza. Entretanto, há uma tão grande massa de questões a abordar, tal que a custo uma vida inteira chega para se aprender este único ponto : o desprezo pela vida.
“Então, e a condução da nossa vida?”
perguntarás. Isso é uma segunda fase da tarefa: não pode conduzir bem a sua vida quem não tiver aprendido a desprezá-la.
Passar Bem!
(1) Sophismata é transcrição do grego σοφίσματα do sentido inicial de “habilidade”, o termo foi adquirindo várias conotações pejorativas, “expediente”, “intrigaº’, e finalmente “sofisma” (por oposição ao “raciocínio justo”, ou φίλοσόφημα
“filosofema”).
(2) Cauillatio significava originalmente “troça, discurso trocista, irónico”; segundo o testemunho de Séneca, Cícero teria usado o termo para traduzir sophisma, no sentido de “discurso oco, subtileza de palavras”, e neste sentido o termo é frequentemente usado por Quintiliano.