Carta 110 – Nós não tememos em plena luz, criamos, sim, trevas a toda a nossa volta!
Estou-te saudando da minha quinta de Nomento. Oxalá estejas de boa saúde espiritual, isto é, oxalá os deuses te sejam todos propícios, pois não pode deixar de gozar do favor benevolente dos deuses quem consegue estar em paz consigo mesmo.
Não tomes em consideração, de momento, a crença por alguns partilhada de que cada um de nós foi colocado sob a tutela particular de um deus, não de um deus de primeira ordem, é evidente, mas de um daqueles deuses de segunda classe a quem Ovídio chama “a plebe divina” (1)
Não ligues a essa crênça sem, no entanto, te esqueceres de que eram estóicos os nossos maiores, que a possuíam; a cada ser humano, de fato, eles atribuíram ou o seu “Génio” ou a sua “Juno”! (2)
Mais tarde veremos se os deuses se podem permitir o encargo dos negócios de cada um de nós; por agora quero que metas bem na ideia que, quer beneficiemos de proteção particular quer estejamos entregues a nós próprios e à fortuna, não é possível lançares a alguém uma imprecação mais terrível do que desejares-lhe que esteja de mal consigo próprio.
Não há, de resto, razão para desejares a alguém que consideres digno de punição que os deuses lhe sejam hostis; esse alguém pode contar, isso te garanto, com a hostilidade divina, mesmo se aparentemente beneficia do seu favor.
Põe a tua inteligência em ação, observa como é na realidade a nossa vida, e não o que dizemos ela ser, e verificarás que muitos males nos são mais benéficos do que prejudiciais. Quantas vezes um pretenso desastre não foi a causa inicial de uma grande felicidade!
Quantas vezes, também, uma conjuntura saudada com entusiasmo não constituiu apenas um passo em direção ao abismo – elevando um pouco mais ainda alguém em posição eminente, como se em tal posição pudesse estar certo de cair dela sem risco!
A própria queda, aliás, não tem em si mesma nada de mal se tomares em consideração o limite para lá do qual a natureza não pode precipitar ninguém. Está bem perto de nós o termo de tudo quanto há, está bem perto, garanto-te, o limite desta existência donde o venturoso se julga expulso e o desgraçado liberto; nós é que, ou por esperanças ou por receios desmesurados, a fazemos mais extensa do que realmente é.
Se agires com sabedoria, medirás tudo em função da condição humana, e assim limitarás o espaço tanto das alegrias como dos receios. Vale bem a pena privarmo-nos de duradouras alegrias a troco de não sentirmos duradouros receios !
Por que motivo procuro eu restringir este mal que é o medo? É que não há razão válida para temeres o que quer que seja; nós, isso sim, deixamo-nos abalar e atormentar apenas por vãs aparências. Nunca ninguém analisou o que há de verdade no que nos aflige, mas cada um vai incutindo medo nos outros; nunca ninguém se atreveu a aproximar-se do que lhe perturba o espírito e a averiguar a natureza real e fundamentada do seu medo.
Daqui resulta o crédito que se dá a um perigo inexistente, que mantém a sua aparência porque ninguém o contesta a sério.
Basta que nos decidamos a abrir bem os olhos para verificarmos como é diminuto, incerto e inofensivo aquilo que receamos. A confusão dos nossos espíritos corresponde perfeitamente à descrição de Lucrécio :
“tal como as crianças no meio da escuridão tremem com medo de tudo, assim nós tememos em plena luz!” (3)
Pois bem, não seremos nós mais insensatos do que as crianças, nós que tememos em plena luz? A verdade, porém, Lucrécio, é que nós não tememos em plena luz, criamos, sim, trevas a toda a nossa volta!
Não somos capazes de distinguir o que é bom e o que é mau; passamos toda a vida a correr, a tropeçar às cegas, e nem por isso somos capazes de parar ou de tomar atenção onde pomos os pés. Estás a imaginar como é coisa de loucos andar a correr no escuro!
Valham-me os deuses! Não conseguimos mais nada senão termos de regressar de mais longe; sem saber para onde nos dirigimos, continuamos teimosamente a caminhar para’ onde o instinto nos leva.
No entanto, se o quisermos, poderá fazer-se luz em nós.
De um único modo: adquirirmos o conhecimento das coisas divinas e humanas, um conhecimento interiorizado, e não meramente superficial; meditarmos nessas ideias já adquiridas, comprovarmos a sua validade pela nossa própria experiência; investigarmos o que é bom e o que é mau, e a que coisas se atribui falsamente um ou outro destes adjetivos; averiguarmos em que consiste o bem e o mal éticos – e, finalmente, o que é a providência.
E não ficará por aqui o campo aberto à inteligência humana: somos atraídos a lançar os olhos para lá do universo, a ver por onde ele se dirige, donde proveio e qual o termo para onde caminha velozmente este nosso mundo.
Nós, todavia, afastámos o espírito desta contemplação divina para o rebaixar ao vil serviço da avareza; esquecemos o universo e os seus limites, bem como os deuses que o governam e movem, para nos dedicarmos a perfurar a terra e a dela extrair o que só nos faz mal, insatisfeitos com o que a terra espontaneamente nos oferece.
Tudo quanto era realmente bom para nós, a divindade que nos deu o ser pô-lo à nossa mão; não esperou pelas nossas pesquisas para no-lo oferecer; em contrapartida, enterrou bem fundo tudo o que é nocivo.
Só temos que nos queixar de nós mesmos: nós é que arrancámos violentamente da terra o que a natureza lá escondeu – e isso será a causa da nossa ruína. Entregámos o espírito ao prazer, quando a cedência ao prazer é a origem de todos os males; entregámo-nos à ambição da glória e a outros impulsos igualmente ilusórios e inúteis.
Que posso eu agora aconselhar-te a fazer? Nada de inédito, pois não se trata de procurar remédios para novas doenças. Apenas isto, antes de mais nada: aprende a fazer tu próprio a distinção entre o necessário e o supérfluo. O necessário tê-lo-às sempre à mão, ao passo que o supér- fluo exigirá de ti um contínuo e total empenhamento.
Não tens muito de que te orgulhar pelo fato de renunciares com desprezo aos leitos dourados ou aos móveís talhados em pedras valiosas; desprezar o supérfluo, onde está a virtude?
Admira-te a ti próprio, isso sim, quando conseguires desprezar o necessário! Poderes viver sem fausto digno de reis, não sentires vontade de comer um javali de mil libras de peso, ou uma travessa de línguas de flamingo, ou outras monstruosidades de uma gastronomia que se enjoa com o animal inteiro e apenas escolhe certas partes de cada bicho – não penses que isto é uma grande coisa!
Eu admirar-te-ei, sim, quando fores capaz de desprezar o pão de segunda por estares convencido de que, em caso de necessidade, a erva tanto serve para o homem como para o animal, por teres a certeza de que os rebentos das árvores servem muito bem para encher um estômago – um estômago que atulhamos de iguarias preciosas como se todas elas lá ficassem para sempre!
Não são precisos requintes para o encher. Que diferença faz o que lá se mete se tudo quanto lá entra é para sair depois ? Gostas de ver à tua frente peças de caça ou frutos do mar; uns sabem-te tanto melhor quanto mais frescos te chegam à mesa; outras se, à força de serem engordadas artificialmente, escorrem gordura por todo o lado a ponto de quase lhes rebentar a pele! Enche-te de prazer o virtuosismo com que são preparados. Mas, deus meu!, todos estes manjares rebuscados e condimentados se transformam numa massa indistinta e repugnante quando se acumulam no estômago. Para desprezar o prazer da mesa, nada melhor do que ver em que , se transformam os alimentos!
Ainda tenho na ideia estas palavras que Átalo pronunciou perante a admiração geral:
“Durante muito tempo deixei-me fascinar pela riqueza. Ficava de boca aberta quando via aqui ou ali o brilho de objetos preciosos, imaginando que o seu valor intrínseco correspondia à aparência exterior. Um dia, assisti à exibição em cortejo dos preciosos tesouros de Roma: peças cinzeladas em ouro e prata e em materiais mais preciosos ainda do que o ouro e a prata, obras de cores preciosamente variegadas, tecidos importados de regiões para lá das nossas fronteiras, mais longínquas do que os povos nossos diretos vizinhos; aqui uma multidão de escravos, além de escravas, todos admiráveis quer pelos adornos que traziam, quer pela sua própria beleza; e tantas outras coisas que a fortuna do império no seu apogeu decidiu passar em revista. ‘Para que serve tudo isto’ – exclamei eu – ‘senão para excitar ainda mais as já violentas ambições dos homens? Para que serve toda esta ostentação de riqueza? É para aprender o significado da avareza que toda esta multidão aqui afluiu?’ Por mim, garanto, saio daqui com menos desejos do que quando cheguei. Fiquei cheio de desprezo pela riqueza, não tanto por ser supérflua, como por ser ridícula. Não vês tu como no espaço de poucas horas todo o aparatoso cortejo desfilou, mesmo em marcha lenta e compassada? Havemos nós de levar a vida inteira ocupados num exercício que nem deu para encher um dia completo? Ainda me ocorreu outra ideia: estas preciosidades pareceram-me tão supérfluas para os seus possuidores como supérfluas eram para os espectadores do cortejo. Isto é precisamente o que digo a mim próprio sempre que me cai diante dos olhos alguma semelhante exibição de luxo, quando deparo com um palacete sumptuoso, um adornado batalhão de escravos ou uma liteira transportada por esbeltos carregadores: ‘Porquê toda essa admiração embasbacada? Não passa de aparato! Todas estas coisas nós vemo-las sem as possuir, agradam-nos mas são transitórias!’ Atenta de preferência na riqueza genuína; aprende a contentar-te com pouco e repete com entusiasmo a máxima que diz que ‘se tivermos água e farinha podemos rivalizar com a felicidade de Júpiter!’ Digo-te mesmo mais: rivalizemos com ele mesmo que as não tenhamos; tão imoral é fazer depender a felicidade do ouro e da prata como da água e da farinha! ‘Mas como sobrevivo eu sem uma coisa nem outra?’ Queres que eu te diga qual o remédio para a miséria? A fome se encarrega de pôr fim à fome. Que diferença faz, afinal, se são imoderados ou exíguos os desejos de que te fazes escravo? Que importância tem a quantidade dos bens que a fortuna te nega? Até mesmo a água e a farinha dependem de uma vontade exterior a ti; o homem livre não é aquele sobre quem pouco poder tem a fortuna, mas sim o que escapa totalmente ao seu poder. É assim mesmo: terás de despojar-te de todo o desejo se quiseres rivalizar com Júpiter – que não conhece desejo algum!”
Esta a lição que Átalo nos deu a nós, e a natureza dá a todos os homens.
Se te dispuseres a meditar assiduamente nela conseguirás ser feliz, em vez de parecê-lo, e sê-lo aos teus próprios olhos e não aos dos outros.
Passar Bem!
(1) Ovídio, Met., I, 595.
(2) Cf. livro I, nota 28.
(3) Lucrécio, II, 5 5-6.