26 de setembro de 2025

Carta 109 – Na realidade, ser útil consiste em estimular o espírito segundo a natureza por ação da própria virtude.

Por lucianakeiko@gmail.com

Estás interessado em saber sé um sábio pode ser útil a outro sábio. Nós definimos o sábio como um homem dotado de todos os bens no mais alto grau possível.

A questão está pois em saber como é possível alguém ser útil a quem já atingiu o supremo bem. Ora, os homens de bem são úteis uns aos outros. A sua função é praticar a virtude e manter a sabedoria num estado de perfeito equilíbrio. Mas cada um necessita de outro homem de bem com quem troque impressões e discuta os problemas.

A perícia na luta só se adquire com a prática; dois músicos aproveitam melhor se estudarem em conjunto. O sábio necessita igualmente de manter as suas virtudes em atividade e, por isso mesmo, não só se estimula a si próprio como se sente estimulado por outro sábio.

Em que pode um sábio ser útil a outro sábio? Pode servir-lhe de incitamento, pode sugerir-lhe oportunidades para a prática de ações virtuosas. Além disso, pode comunicar-lhe as suas meditações e dar-lhe conta das suas descobertas. Nunca faltará mesmo ao sábio algo de novo a descobrir, algo que dê ao seu espírito novos campos a explorar.

Os indivíduos perversos fazem mal uns aos outros, tornam-se mutuamente piores, na medida em que despertam a ira, favorecem o mau carácter, enaltecem os prazeres; tais indivíduos são mesmo tanto mais nocivos quanto mais partilham os seus vícios e juntam as suas forças maléficas com um objetivo comum.

O contrário é igualmente válido: um homem de bem só pode ser útil a outro homem de bem. “De que modo?”, perguntarás tu. Transmitir-lhe-á o seu contentamento, reforçará a sua autoconfiança; a contemplação mútua da respectiva tranquilidade fará aumentar em ambos a alegria.

Além disso pode ainda proporcionar-lhe o conhecimento de certas matérias, já que mesmo um sábio não pode saber tudo. E mesmo que soubesse tudo, outro sábio pode muito bem descobrir um método mais rápido para atingir o conhecimento da natureza e facilitar-lhe o acesso a um meio de melhor formular uma visão global das coisas.

Um sábio pode ser útil a outro sábio, e não somente graças às suas próprias forças, mas graças também às daquele a quem está auxiliando. Claro que o primeiro, mesmo entregue apenas a si próprio, é capaz de desempenhar perfeitamente o seu papel. Todavia, embora corra com a velocidade que lhe é própria, nem por isso deixará de lhe aproveitar uma voz de incitamento.

Objeção possível:

“Um sábio só pode ser útil a si mesmo, e não a outro sábio. A prova é que se este não tiver energia própria, a atuação do outro nada conseguirá.”

Pela mesma ordem de ideias, poderia dizer-se que não existe doçura no mel porquanto, se a pessoa que o vai comer não tem os órgãos gustativos aptos a detectar o sabor a doce, a sensação será desagradável. De fato, há pessoas que, por efeito de doença, acham o mel amargo. O importante é que ambos os sábios gozem de boa saúde, de modo a que um deles possa ser útil ao outro, e este, por sua vez, seja receptivo à utilidade que o primeiro lhe proporciona.

Outra objeção:

“É inútil tentar aquecer um corpo que já está aquecido no mais alto grau; é igualmente inútil tentar ajudar quem já atingiu o supremo bem. Acaso um agricultor que dispõe de todas as alfaias necessárias vai pedir alfaias ao vizinho? Um soldado equipado com todas as armas com que vai partir para a luta porventura necessita de mais armamento? O mesmo se passa com o sábio: está suficientemente equipado, dispõe de armas suficientes para enfrentar a vida.”‘

A isto respondo eu que mesmo um corpo aquecido à mais alta temperatura necessita da proximidade de uma fonte de calor para manter essa alta temperatura.

“Mas o calor” – continua a objetar-se – “mantém-se por si mesmo.”

Vejamos: para começar, há uma grande diferença entre os termos da tua comparação. O calor constitui uma unidade, o ser útil pode revestir diversas formas. Em segundo lugar, o calor não precisa da proximidade de fontes de calor para ser isso mesmo, calor, ao passo que o sábio não conseguirá manter o seu estatuto espiritual se não aceitar a companhia de alguns amigos que se lhe assemelhem e com os quais pratique em comum as suas virtudes.

Acrescenta a isto que todas as virtudes são unidas entre si por uma espécie de amizade; por conseguinte, o sábio que estima as virtudes do seu semelhante e lhe comunica as suas para aquele as estimar está obviamente a ser-lhe útil.

As qualidades similares são, para os seus possuidores, uma fonte de alegria, sempre que se trate de qualidades elevadas que saibam merecer o respeito recíproco. Mais ainda: ninguém pode estimular convenientemente o espírito de um sábio senão outro sábio, tal como só um homem pode estimular racionalmente outro homem.

Do mesmo modo, portanto, que só pela razão se pode estimular o uso da razão, também só uma razão perfeita pode constituir estímulo para outra razão perfeita. Costuma dizer-se que nos são Úteis as pessoas que nos facultam certos bens moralmente indiferentes como dinheiro, favores, proteção e outras coisas apreciáveis ou necessárias à vida; neste sentido poderia dizer-se que mesmo um insensato seria capaz de ser útil ao sábio.

Na realidade, ser útil consiste em estimular o espírito segundo a natureza por ação da própria virtude. E isto não pode ocorrer sem algum proveito quer para o espírito do estimulado quer para o daquele que lhe serve de estímulo, porquanto necessariamente quem põe em ação a virtude dos outros põe em acção também a sua própria.

Ainda que não tomemos em consideração nem os bens supremos nem as causas que os geram, nem por isso os sábios deixam de ser mutuamente úteis uns aos outros. Encontrar outro sábio é, por si mesmo, um objetivo digno de um sábio, uma vez que, por natureza, todo o homem de bem estima toda a espécie de bem; assim, cada sábio dá a todo o homem de bem o mesmo valor que dá a si próprio.

As necessidades da argumentação levam-me a passár desta questão a uma outra. Põe-se, de fato, o problema se o sábio deve tomar sozinho as suas deliberações ou se deve recorrer aos conselhos alheios. Recorrer aos outros é indispensável ao sábio quando se trata de assuntos relativos à vida pública, aos problemas domésticos, às questões, passe a palavra, próprias de seres mortais; nestes casos ele necessitará dos conselhos alheios ao mesmo título que um médico, um piloto, um advogado ou um juiz de instrução.

Também neste sentido um sábio pode ser útil a outro sábio, uma vez por outra, através das suas indicações. Naquelas matérias elevadas e divinas, também aí, conforme já disse, o sábio será útil graças à prática em comum do bem moral e à união que se estabelece entre os espíritos e os pensamentos.

Além disso, é conforme à natureza acolhermos os amigos e alegrarmo-nos com os seus progressos como se nossos fossem. Se assim não procedêssemos, a nossa própria virtude, que só pelo exercício contínuo se pode manter, acabaria por estiolar.

A virtude aconselha-nos a considerar a conjuntura presente, bem como a prever e deliberar sobre o futuro e a manter o espírito alerta: ora, manter o espírito alerta e vigoroso é mais fácil se tivermos alguém que nos assista.

Para esse fim, o sábio procurará um homem já perfeito, ou pelo menos que caminhe na via da perfeição. Um homem assim perfeito será útil se contribuir pará a deliberação com o exercício em comum da capacidade de juízo.

É habitual dizer-se que os homens percebem melhor dos assuntos alheios que dos próprios. Isso só acontece, porém, àqueles que estão obcecados por um excessivo amor próprio e a quem o receio perante as dificuldades rouba o discernimento da ação justa.

Só se começa a discernir bem quando se está em segurança e ao abrigo dos perigos. Há certos casos, contudo, em que até os sábios se apercebem melhor da situação dos outros que da sua. Além disso, um sábio em companhia de outro sábio poderá transformar em realidade a magnífica e humaníssima máxima que aconselha a “desejar e rejeitar exatamente as mesmas coisas”; assim, ambos percorrerão a mesma sublime órbita a par um do outro.

Como vês, satisfiz o teu pedido, muito embora esta matéria tivesse o seu lugar próprio no livro de “Filosofia Moral” em que estou a trabalhar. Mas pensa bem naquilo que eu não me canso de te dizer: estas questões só servem para aguçarmos o engenho!

Acabo por voltar sempre ao mesmo: para que serve tudo isto? Eu quero é que me tornem mais forte, mais justo e mais moderado. Não tenho vagar para ginástica, ainda careço de cuidados do médico! Para que pretendes tu que eu te forneça uma ciência inútil? Fizeste grandes promessas; pois bem, mantém-te fiel ao que prometeste.

Diziam que eu permaneceria intrépido ainda que à minha volta reluzissem as espadas, ainda que a sua ponta afiada me tocasse já a garganta; diziam que eu continuaria a sentir-me em segurança ainda que à minha volta tudo estivesse a arder, ainda que um súbito furacão arrastasse o meu navio pelo mar fora: ajudem-me, então, a ser capaz de desprezar os prazeres e a glória.

Màis tarde me ensinarão a desmontar sofismas, a resolver ambiguidades, a solucionar questiúnculas obscuras; por agora, ensinem-me apenas o indispensável.

Passar Bem!