24 de setembro de 2025

Carta 107 – Não queiramos fugir ao curso desta máquina deslumbrante na qual estão entretecidos também os nossos sofrimentos.

Por lucianakeiko@gmail.com

Que é feito da tua capacidade de prever? Onde está a tua sagacidade na apreciação das coisas? Onde está a tua grandeza de alma? Deixares-te afligir por uma questão tão mesquinha! …

Os teus escravos entenderam que as tuas múltiplas ocupações lhes davam azo para se pôrem em fuga! Se os teus amigos te enganassem (continuemos, apesar de tudo, a dar-lhes o nome que a nossa ingenuidade lhes atribuiu, para lhes não chamarmos coisa pior) (1) ausentaram-se dos serviços que te prestavam esses homens que não só não apreciavam a tua generosidade como ainda te imaginavam capaz de fazer mal a alguém.

Nada disto se pode considerar um acontecimento insólito e inesperado. Sentir-se lesado por um caso destes é tão ridículo – como lamentar-se por ser salpicado no balneário, empurrado no meio da multidão ou sujo por um bocado de lama.

A condição da vida humana assemelha-se à passagem por um balneário, uma multidão ou uma estrada: certos contratempos serão provocados, outros casuais.

Não é coisa fácil, a existência.

Iniciaste uma longa jornada: hás-de escorregar, de tropeçar, de cair, de te fatigar, de chamar (sem sinceridade!) pela morte! Aqui terás de abandonar o teu companheiro, além de levá-lo à sepultura, acolá de te precaveres contra ele, É através destas contrariedades que avaliaremos até que ponto é pedregoso este caminho da vida.

Quem quiser morrer deve ter a alma preparada contra tudo; deve ter consciência de ter chegado ao local onde ressoa o raio, deve estar ciente de ter chegado lá onde

“a dor e os remorsos vingadores puseram suas moradas, onde habitam as pálidas doenças e a dolorosa velhice. “(2)

Temos de viver com estes seres por companhia. Tu não podes escapar a estes males, mas podes aprender a desprezá-los – e para tanto bastar-te-á meditar neles sem cessar e conjecturar que todos eles podem ocorrer.

Qualquer pessoa enfrenta valorosamente uma situação para a qual se preparou com antecedência, e resiste mesmo às circunstâncias difíceis se nelas tiver previamente pensado. Um indivíduo mal preparado, pelo contrário, fica em pânico à mínima contrariedade. Temos, portanto, de fazer com que nada nos caia em cima inopinadamente; e como as coisas nos parecem mais graves quando não são previstas, uma meditação contínua conseguirá que não te vejas em caso algum com a inexperiência de um recruta! (3)

“Fui abandonado pelos meus escravos!”

Mas há quem tenha sido roubado, denunciado, morto, traído, maltratado, quem tenha sido envenenado ou caluniado. Aquilo de que te queixas aconteceu a muitos outros …….(4) afinal de contas são muitos e variados os males que nos podem atingir.

Alguns, como dardos, ficam espetados em nós, outros vibram ao voar direito a nós, outros ainda vão apontados a outras pessoas, e ferem-nos por acaso. Não nos admiremos ante nenhuma das casualidades para que nascemos, e de que ninguém deve queixar-se, pois são iguais para todos.

É como digo, iguais para todos, pois mesmo quando alguém escapa a um mal nem por isso deixa de lhe estar sujeito. Direito equitativo não é aquele de que todos efetivamente usam, mas sim o que é proclamado para uso de todos.

Ordenemos à nossa alma que se mantenha tranquila e paguemos sem queixumes o tributo da nossa condição mortal. O Inverno traz consigo o frio, logo nós devemos suportar o frio. O Verão traz consigo o calor, e nós temos de suportar o calor. O tempo incerto é nocivo à saúde, e nós temos de nos sujeitar à doença.

Em qualquer lugar nos pode sair ao caminho uma fera, ou alguém mais perigoso do que todas as feras: um homem!

A água destrói uma coisa, o fogo outra. Nós não podemos alterar estas condições da existência; podemos, contudo, assumir uma atitude de coragem, digna de um homem de bem, e graças a ela suportar com valor os golpes do acaso e submeter-mo-nos à lei da natureza.

A natureza, aliás, com as suas alternâncias, torna mais suportável o mundo à nossa volta : a bonança sucede à tempestade; o mar agita-se, mas antes estivera calmo; os ventos não sopram continuamente; o dia segue-se à noite; uma parte do firmamento eleva-se acima do horizonte, enqúanto a outra desce abaixo dele: em suma, o ritmo constante do universo é alterno.

A esta lei deve conformar-se o nosso espírito; deve ceder, deve obedecer a tal lei. Deve ter a consciência de que tudo o que acontece não pode deixar de acontecer, em vez de se atrever a censurar a natureza.

A melhor atitude a tomar é a de aceitar o que não podemos alterar, e conformarmo-nos sem resmungar com os desígnios da divindade que rege o curso do universo: mau soldado é aquele que segue o seu general sempre a queixar-se! (5)

Por conseguinte aceitemos pressurosos e animados as suas ordens, não queiramos fugir ao curso desta máquina deslumbrante na qual estão entretecidos também os nossos sofrimentos. Dirijamos a Júpiter (o timoneiro que dirige esta imensidade) palavras semelhantes às que o nosso Cleantes usou nos seus magníficos versos, e que eu, seguindo o exemplo desse grande escritor que foi Cícero, me permito traduzir para a nossa língua. Se eles te agradarem, acolhe-os favoravelmente; se não te agradarem, fica pelo menos sabendo que eu procurei imitar o exemplo de Cícero.

“Guia-me, ó pai que reges o excelso céu, para onde te aprouver: não hesitarei em obedecer-te; aqui estou, sempre pronto! Se resistir, terei de seguir-te gemendo, suportando de má vontade o que podia ter feito de bom grado. O destino guia quem o segue, arrasta quem lhe resiste !” (6)

Vivamos assim, falemos desta maneira! Que o destino nos encontre sempre prontos, sempre de boa vontade. Uma alma verdadeiramente grande é aquela que se confia ao destino.

Mesquinho e degenerado, pelo contrário, é o homem que tenta resistir, que ajuíza mal da ordem do universo e que acha preferível corrigir os deuses do que emendar-se a si próprio!

Passar bem!

(1) Texto corrupto e lacunar. Séneca deveria estabelecer uma oposição entre amigos e escravos: se fossem amigos a enganar Lucílio, o caso seria relativamente grave (porquanto os pretensos amigos se revelariam, afinal, falsos), mas tratando-se de escravos fugitivos o caso carecia de gravidade, e era mesmo previsível.

(2) Vergílio, Aen., VI, 274-5; Séneca volta a citar o v. 275 na carta 108, 29.

(3) Tiro, o “recruta”, o soldado acabado de ingressar nas fileiras, ainda inexperiente. Ê relevante a insistência com que Séneca usa metáforas extraídas da linguagem militar para aludir à contínua luta do filósofo por se aproximar da perfeição.

(4) Lacuna, postulada por Summers e aceite por Reynolds.
(5) Cf. supra nota 27.

(6) S. V.F., I, 527. – O original grego dos quatro primeiros versos (de que Séneca dá uma tradução livre) é conhecido, v. o fr. citado dos S. V.F.: o quinto verso, porém, não se encontra nas fontes gregas; se já figurava no texto de Cleantes ou se, pelo contrário, é da autoria de Séneca, adhuc sub iudice lis est. Cf. do mesmo Cleantes o belo hino a Zeus em S. V.F., I, 5 3 7 ( trad. portuguesa em M.H. da Rocha Pereira, Hélade, Coimbra,4 1982, pp. 444-5 ).