23 de setembro de 2025

Carta 106 – Sofremos de intemperança em tudo, até no uso das letras. Estudamos para a escola, não para a vida.

Por lucianakeiko@gmail.com

Se hoje levei mais tempo antes de responder à tua carta não foi porque as minhas ocupações mo impedissem. Não temas vir a ouvir-me dar uma desculpa destas!

Eu tenho todo o vagar que quero, e, aliás, só não tem vagar quem não quer. Os afazeres não andam atrás de alguém: os homens é que se agarram aos afazeres, entendendo as suas ocupações como sinónimo de felicidade.

Porque foi então que eu não te respondi imediatamente? Porque a questão que me colocaste se inseria no plano da obra que estou compondo: tu sabes bem que eu pretendo escrever um livro abarcando todo o âmbito da filosofia moral, no qual é minha intenção desenvolver todos os problemas com ela relacionados(1).

Por isso hesitei entre adiar a resposta até chegar o momento de tratar no livro essa questão, ou conceder-te audiência desde já, embora não fosse a tua vez. Acabei por achar que seria mais simpático receber quanto antes um consulente vindo de tão longe! (2)

Assim, vou destacar do meu projeto global e ordenado esta questão, e, se outras questões do mesmo tipo me aparecerem, dar-te-ei conta delas sem esperar as tuas perguntas.

Que questões são estas, afinal? Bom, são daquelas cuja resolução é mais aliciante do que propriamente útil, a exemplo daquela que me puseste na tua carta: “se o bem é um corpo?” Ora o bem atua, uma vez que nos é útil, e tudo quanto atua é um corpo. O bem move-nos a alma, de certa maneira dá à alma forma e limites, ações que são específicas dos corpos. Os bens do corpo são corpos; logo também os bens da alma o são uma vez que a alma é um corpo (3)

O bem próprio do homem é necessariamente um corpo, uma vez que o próprio homem é um ser corpóreo. Mentir-te-ia se dissesse que não são corpos os alimentos que o homem ingere, ou as mezinhas que toma para proteger ou recuperar a saúde; logo, o bem próprio do homem é um corpo.

Acho que tu não hesita-rás em reconhecer como corpos as paixões (e assim meto já aqui uma coisa que tu não me perguntaste) tais como a cólera, o amor, a tristeza, a menos que tu duvides que elas nos alteram o rosto, nos enrugam a testa, nos alongam a face, nos tornam a cara encarniçada ou nos fazem ficar sem pinga de sangue.

Pois bem: pensas que estes evidentes sinais do nosso corpo podem ser ocasionados sem ser por um corpo? E se as paixões são corpos, igualmente o são as doenças da alma, tais como a avareza, a crueldade, os vícios empedernidos e já absolutamente insanáveis; portanto, são corpos a maldade, em todas as suas variedades – malevolência, inveja, soberba; portanto, são corpos os bens, primeiro porque são os opostos dos vícios que assinalei, segundo porque se manifestam por sinais do mesmo tipo.

Nunca reparaste como a coragem dá novo vigor ao olhar? Como a prudência reforça a atenção? Como o respeito acentua a modéstia e a calma? Como a alegria aumenta a serenidade? Como a severidade acentua a rigidez? Como a ternura aumenta a sensação de bem-estar? Consequentemente, tudo quanto altera a cor e a forma dos corpos é igualmente um corpo, o qual exerce naqueles a sua ação.

De fato, – todas as virtudes que eu enumerei são bens, assim como aquilo que delas resulta. E será possível duvidar que seja corpo tudo aquilo por que um corpo pode ser tocado?

“Tocar e ser tocado – nada senão um corpo o pode Jazer!”,

como diz Lucrécio (4) Ora, tudo quanto eu referi não poderia alterar o nosso corpo se lhe não tocasse; por conseguinte, todos são corpos.

Mais ainda: tudo quanto tenha em si força suficiente para nos impelir, forçar, deter ou impedir de nos movermos – tem de ser um corpo.

Pois bem: o medo não nos detém? A audácia não nos impele? A coragem não nos incita e dá ânimo? A temperança não nos refreia e faz recuar? A satisfação não nos exalta? A tristeza não nos abate? Em suma, tudo quanto nós fazemos, fazemo-lo sob ordens ou da maldade ou da virtude, e tudo quanto exerce poder sobre um corpo, tudo – é um corpo, tudo quanto dá força a um corpo – é um corpo! O bem de um corpo é corpóreo; o bem do homem é o bem de um corpo, logo, é corpóreo.

Respondi ao que me pediste, fiz-te a vontade. Agora direi eu próprio o que já estou a imaginar que tu vais dizer: tudo isto é um jogo! (5) Gasta-se o engenho com questões supérfluas: estas teorias não tornam os homens bons, apenas os fazem eruditos.

“Saber” é algo muito mais vasto, e também mais simples: não são precisas muitas letras para nos darem um espírito bem formado; nós é que estamos habituados a desperdiçar tudo, e a filosofia não foge à regra.

Sofremos de intemperança em tudo, até no uso das letras. Estudamos para a escola, não para a vida. (6)

Passar Bem!

(1) Contemporaneamente com as cartas a Lucílio, Séneca redigiu um volumoso trarado, em sete livros, dedicado ao estudo de diversos temas científicos, com o título de Naturales Quaestiones. Das três grandes áreas em que o estoicismo repartia a filosofia – lógica, física e ética – as N. Q. inserem-se obviamente na área da física. Dado o objetivo de Séneca na obra a que aqui se refere (e que se perdeu) – traramento de diversos problemas (qttaestiones) de ordem ética – poderemos supor que o dtulo do tratado seria, eventualmente, Morales Quaestiones

(2) ” A “meráfora jurídica” aqui usada por Séneca – o consulenre vindo de longe a solicitar audiência – justifica-se por Lucílio ainda se encontrar na Sicília, o que aumenraria a sua curiosidade pela resolução do problema posto.

(3) Que a alma é corpórea é um ponto em que os mestres do estoicismo amigo estão todos de acordo, cf. por ex. S. V.F., 1, 137 (= II, 790): “A morre consisre na separação da alma e do corpo; ora, nenhuma coisa incorpórea se pode sepatar de um corpo, pois rambém nenhuma coisa incorpórea pode entrar em conracro com um corpo. A alma ramo contacta como se separa do corpo, logo a alma é um corpo.”

(4) De rerum natura, 1, 304.

(5) Literalmente, “estamos jogando aos latrunculi’; os latrunculi (diminutivo de latro “ladrão”) eram peões que se movimentavam num tabuleiro de 64 casas de cor alternada, no género do atual jogo das damas.

(6) Máxima famosa, e de dramática atualidade; d. Max Pohlenz, Die Stoa, I, p. 290 ss.