19 de setembro de 2025

Carta 102 – É próprio da natureza do homem alargar o seu pensamento a todo o universo.

Por lucianakeiko@gmail.com

É bastante incomodativo acordar alguém que está tendo um sonho agradável, pois se lhe rouba um prazer, falso, é certo, mas de efeito similar a um verdadeiro. O mesmo efeito de ruptura me provocou a tua carta: afastou-me da reflexão (e bem adequada era ela!) a que eu estava entregue, e na disposição de a prosseguir enquanto pudesse.

Era minha intenção investigar a questão da imortalidade das almas, ou antes, pelos deuses!, acreditar nessa ideia! Sentia-me receptivo à opinião dos grandes homens que, mais do que provar, nos prometem tão gratas perspectivas.

Entregava-me a essa magnífica esperança, já sentia tédio de mim mesmo, já estava pleno de desprezo pelos restos de uma existência mutilada, como homem que se prepara para entrar no tempo sem limite e apropriar-se de toda a eternidade, quando fui subitamente acordado pela tua carta e me vi roubado ao meu tão belo sonho. Mas hei-de retomá-lo e completá-lo quando terminar a resposta que te devo.

Afirmas, no princípio da carta, que eu não desenvolvi na totalidade a argumentação com que tentei provar-te a tese estóica segundo a qual a reputação de que gozamos após a morte é um bem. Em tua opinião eu não solucionei a dificuldade com que se pretende rebater a nossa posição:“Nenhum bem” – dizem – “resulta de soluções de continuidade; ora, a reputação assenta numa solução de continuidade.”

O problema que me pões, caro Lucílio, pertence a outro aspecto da mesma tese, e por isso mesmo eu o deixei de lado, não só a este mas a outros ainda com ela relacionados. Como sabes, há pontos em que** a moral e a lógica se interpenetram**. Eu tratei, portanto, daquela parte da questão que diretamente tem a ver com** a moral** (1), ou seja, se é **absurdo e supérfluo projetar as nossas preocupações** para lá do dia da morte, se os nossos bens **desaparecem simultaneamente conosco**, se nada resta do homem que cessou de existir, ou ainda se, de uma coisa de que nos não aperceberemos quando ela suceder, é possível, antes que suceda, perceber ou ambicionar o que ela possa valer.

Todas estas questões. dizem respeito à moral, por isso tratei-as na altura conveniente. Os argumentos que os dialéticos invocam contra esta tese tiveram de ser deixados de lado, e por isso eu não me referi a eles. Agora, uma vez que estás com vontade de saber tudo, vou primeiro expor-te em bloco os seus argumentos, e em seguida refutá-los-ei um por um.

Preciso, contudo, de focar alguns pontos prévios, ou não se compreenderá a refutação que vai seguir-se. E os pontos prévios são estes : há certos corpos que são contínuos, por exemplo, um homem; outros são compostos, como um navio, uma casa, em suma rudo o que consta de diversas partes ligadas de modo a formar um todo; outros ainda são formados de unidades não contíguas, de membros isolados entre si, como o exército, o povo, o senado. As unidades que compõem este tipo de corpos podem estar ligadas umas às outras por direito ou obrigação, mas por narureza são unidades discretas. Há ainda outros pontos prévios a acrescentar: nós entendemos que nenhum bem é formado de unidades discretas; que um só e mesmo espírito deve impregnar e dirigir cada um dos bens, que o elemento determinante de cada bem é um e só um. Quando quiseres, este ponto pode ser objeto de uma demonstração individual; entretanto foi necessário referi-lo, já que os nossos adversários nos querem combater com as nossas próprias armas.

Primeira objeção :

“Dizeis que nenhum bem é resultado de elementos discretos; contudo, a reputação dos homens de bem é o resultado da opinião pública favorável. De fato, tal como a fama não resulta do apreço de um só homem nem a má fama do mau conceito de um só homem, assim também a reputação não significa ser tido em boa conta por um só homem; para que a reputação se forme é necessário o consenso de muitos homens de valor e respeitabilidade. Ela resulta, por conseguinte, do juízo formado por vários indivíduos, ou seja, por elementos discretos; logo, a reputação não é um bem.”

Segunda objeção:

“A reputação é o louvor atribuído a um homem de bem por outros homens de bem; o louvor é um conjunto de palavras, de sons com um determinado significado; ora um conjunto de sons, embora proferido por homens de bem, não é um bem. Nem tudo quanto um homem de bem faz é um bem; ele pode dar palmas, pode assobiar, mas por muito que o admiremos e louvemos em tudo, ninguém vai chamar ‘bem’ às palmas ou aos assobios, assim como não chamamos aos espirros ou à tosse. Por conseguinte, a reputação não é um bem.

“Para terminar, dizei-nos se se trata de um bem daquele que atribui ou daquele que recebe os louvores. Se dizeis que é um bem do que recebe os louvores, fazeis uma afirmação tão ridícula como dizer que me diz respeito a boa saúde dos outros. Ora, louvar quem o merece é uma ação digna; logo, se o louvor é um bem, pertence àquele que pratica a ação, ou seja, àquele que louva os outros, e não àquele que recebe os louvores, como vós queríeis demonstrar!”

Vou responder a estas objecções uma por uma. Em primeiro lugar, se um bem pode ou não resultar de elementos discretos, é uma questão em aberto : há argumentos válidos num e noutro sentido. De resto, porquê dizer que a reputação implica muitos votos favoráveis? Pode perfeitamente contentar-se com o juízo de valor de um único homem de bem: um homem de bem julga-nos, a nós, homens de bem.

“Como é isso?”

perguntará o nosso oponente. –

“Então a fama, boa ou má, pode depender apenas do apreço ou da maledicência de um só homem? Também a glória, só a concebo como um fenómeno colectivo que exige a opinião unânime de muita gente. “

É diferente o condicionalismo num caso e noutro. Porquê? Porque se um homem de bem fizer bom juízo a meu respeito a minha situação é a mesma que seria se todos os homens de bem fizessem idêntico juízo, como de fato fariam se me conhecessem. Todos eles fazem um juízo absolutamente idêntico, e identicamente assente na verdade.

Não é possível estarem em desacordo; logo, é como se todos tivessem uma só opinião, já que lhes não é possível ter opiniões diversas. No que toca à glória ou à fama, uma opinião apenas já não é suficiente. No primeiro caso, o juízo de um só pesa o mesmo que o de todos, já que todos, se interrogados um por um, formulariam o mesmo juízo; no segundo, encontramos juízos diversos emitidos por personalidades dissemelhantes.

O acordo é difícil, a cada passo se encontrarão dúvidas, hesitações, suspeitas. Achas possível que todos sejam unânimes num juízo quando cada um nem sequer é sempre da mesma opinião? No primeiro caso está em causa a verdade, e a verdade tem sempre a mesma força e o mesmo rosto; no segundo, é a opiniões falsas que se dá crédito. Ora, as opiniões falsas carecem de constância, estão em permanente oscilação e dissidência.

“Um louvor não é mais do que palavras, e as palavras não são um bem.”

Quando se diz que a reputação é o louvor dos homens de bem formulado por homens de bem não estamos pensando nas palavras, mas sim no pensamento. Ainda que um homem de bem esteja em silêncio, se pensar que alguém é digno de louvor, o louvor está dado.

Aliás, uma coisa é o louvor, outra o discurso laudatório. Este é que recorre à expressão sonora; por isso é que, nas cerimónias fúnebres, se fala, não de “louvor”, mas de “discurso laudatório”, isto é, atualizado pela recitação oral.

Quando dizemos que um homem merece louvores não lhe estamos prometendo palavras de apreço, mas sim pensamentos de apreço. Por isso há louvor mesmo quando em silêncio se pensa bem e se louva intimamente um homem de bem. Como disse, aliás, o louvor tem a ver com a alma e não com as palavras, que se limitam a exprimir e a transmitir ao conhecimento do público o louvor que a alma concebeu.

Louvar significa julgar alguém digno de louvores. Quando o nosso poeta trágico afirma como é excelente “ser louvado por um homem louvado”(2) emprega “homem louvado” no sentido de “homem digno de louvor”. E quando um outro poeta da mesma época escreve que “o louvor dá vida às artes”(3) , não se está referindo aos encómios do público, que outra coisa não fazem senão corrompê-las; nada de fato contribuiu tanto para a degradação não só da eloquência como de todas as outras artes destinadas à audição como os aplausos das multidões.

A fama não dispensa a expressão oral, a reputação contenta-se com o juízo de valor e dispensa ser apregoada em alta voz; a sua plenitude não se altera quer se propague em silêncio ou nas vozes do mundo. A diferença que eu vejo entre a reputação e a glória é esta: a glória depende do veredicto da multidão, enquanto a reputação provém do das pessoas de bem.

“A quem pertence o bem que é a reputação, isto é, o louvor dado a um homem de bem por outro homem de bem: a quem o recebe ou a quem o dá?” A ambos! A mim, que sou louvado, porque ‘ a natureza me conduziu a amar todo o género humano, e por isso me alegro de fazer o bem e me sinto contente por ter encontrado quem, por gratidão, se disponha a explicar aos outros as minhas virtudes.

Sentir gratidão é um bem de muitos, mas meu também. A formação da minha alma leva-me a sentir como meu o bem dos outros, em especial o daqueles a quem eu ocasionei algum bem Mas é também um bem que pertence a quem dá louvores, já que fazê-lo só é possível pela virtude e toda a ação da virtude é um bem.

Deste bem ficaria privado quem me dá louvores se a minha ação não fosse de molde a merecê-los. Por conseguinte, receber merecidamente louvores é um bem que pertence a ambos, exatamente como uma sentença justa é um bem tanto daquele que a proferiu como daquele em cujo benefício foi proferida. Acaso duvidas de que a justiça seja um bem tanto para quem possui essa virtude como para quem, graças a ela, vê restabelecidos os seus direitos ? Louvar quem o merece é um ato de justiça; consequentemente, é um bem que pertence a ambos.

Creio que já dei resposta suficiente a esses teus sofistas. Mas o nosso objectivo não deve ser discutir subtilezas e fazer descer a filosofia da sua majestade até estas minudências. Não será preferível caminhar por uma via ampla e direita em vez de estar a inventar atalhos sinuosos de que só a grande custo nos livramos?

Todas estas discussões não passam de jogos de eruditos brincando às escondidas! Afirma, antes, que é próprio da natureza do homem alargar o seu pensamento a todo o universo. A alma humana é qualquer coisa de grande e de nobre, e não admite que se lhe imponham outros limites senão os que lhe são comuns com a própria divindade.

Desde logo a alma não se contenta com uma pátria diminuta, seja Éfeso, ou Alexandria ou qualquer outra cidade de ainda maior população ou mais esplendorosos edifícios. Para a alma, “pátria” são todos os espaços abarcados pelo universo, é toda esta esfera dentro da qual se encontram os mares e as terras, dentro da qual o ar separa e une ao mesmo tempo o divino e o humano, e na qual inúmeras forças divinas ·em perfeita ordenação, cumprem atentamente as respectivas funções.

Para além disso a alma também se não confina a um exíguo período de tempo.

“Todas as eras” – diz ela – “me pertencem. Século nenhum permanece fechado aos espíritos superiores, tempo nenhum se mostra inacessível ao pensamento. Quando chegar o dia em que se decomponha esta mistura de divino e de humano deixarei o corpo aqui onde o encontrei, e irei unir-me aos deuses.Aliás, nem agora estou desligado deles, apenas me limita os movimentos o peso da existência terrena.”

O tempo que demora esta existência mortal não é para a alma senão o prelúdio de uma vida melhor e mais duradoura. Tal como o ventre materno nos guarda por dez meses e nos prepara, não para nele permanecer mas sim para sermos como que lançados no mundo assim que estamos aptos a respirar e a aguentar o ar livre, também ao longo do espaço de tempo que vai da infância à velhice nós vamos amadurecendo com vista a um novo parto.

Espera-nos um outro nascimento, uma outra ordem das coisas. Por enquanto, não suportamos a vista do céu senão a uma certa distância. Encara, portanto, com coragem a tua hora decisiva, a hora derradeira apenas para o corpo, não para a alma. (4)

Os objetos que tens à tua volta, olha-os como bagagens numa hospedaria: tu tens de passar adiante. A natureza revista-te à saída, tal como te revistou à entrada. Não podes levar contigo mais do que trouxeste, pelo contrário, tens mesmo que despojar-te de uma boa parte do que trazias ao entrar nesta vida: ser-te-á tirado o teu último revestimento, a pele que te envolvia; ser-te-ão tirados a carne e o sangue que se espalhava e fluía por todo o corpo; ser-te-ão tirados os ossos e os tendões que serviam de sustentáculo aos tecidos moles. Esse dia que tu tanto temes, como se fora o último, marca o teu nascimento para a eternidade.

Depõe o teu fardo; porque hesitas, como se não tivesses já um dia abandonado um corpo dentro do qual te ocultavas? ! Estás indeciso, relutante: também nesse dia foi preciso um esforço violento da tua mãe para que tu saísses. Gemes, choras: o choro é próprio do recém-nascido, só que nessa altura tinhas desculpa, como ser ignorante e inexperiente. Quando saíste do quente e suave ventre materno começaste por sentir o sopro livre do ar, chocou-te depois a dura pressão das mãos, e, tenra criança que eras, ignorante de tudo, olhaste espantado um mundo desconhecido. Agora, porém, já não é para ti novidade separares-te de um corpo de que antes fazias parte. Deita fora sem hesitação esses membros inúteis, põe de lado esse corpo em que por tanto tempo habitaste. Esse corpo será dilacerado, esmagado, destruído: porquê afligires-te? Sempre foi costume deitar fora as membranas que envolvem o recém-nascido! Porque te apegas a isso como coisa realmente tua? Estás revestido de um corpo, mas um dia virá em que o despirás, em que deixarás a companhia de um ventre sujo e fétido.

Desliga-te dele quanto puderes, e desde já afasta-te do prazer que não seja ……… (5) e estritamente necessário; alheia-te deste mundo, e começa desde já a meditar em algo de mais profundo e sublime.

Um dia virá em que se te desvelarão os segredos da natureza, em que se dissipará esta bruma e a toda a volta uma luz radiosa incidirá sobre ti. Procura imaginar a intensidade do brilho de tantos astros juntando num só clarão a sua luz. Sombra alguma maculará a serenidade do céu; todos os recantos do universo luzirão com igual esplendor: a alternância do dia e da noite só se verifica ao nível da nossa atmosfera inferior. Quando contemplares com todo o teu ser a totalidade da luz – essa luz que agora reduzidamente recebes pelas estreitas aberturas dos teus olhos e que, mesmo assim, e de longe, tanto admiras! – dirás que até agora tens vivido em plena treva.

Que aparência terá para ti a luz divina quando a contemplares no seu lugar próprio? Este pensamento não permite que se instale na alma o que quer que seja de sórdido, de rasteiro, de cruel; afirma-nos que há deuses, testemunhas dos nossos actos; ordena-nos que mereçamos a sua aprovação, que nos preparemos para o futuro, que nos prometamos a eternidade. E a quem concebe no seu espírito a ideia da eternidade, nenhum exército atemoriza, nenhum clarim guerreiro assusta, nenhuma ameaça causa medo! E como não se há-de estar livre do medo quando se espera a morte? Mesmo quem pensa que a alma só perdura enquanto se mantém vinculada ao corpo e que, quando ambos se separam, logo ela se desintegra(6)
, mesmo quem assim pensa age de modo a poder continuar a ser útil depois de morto. Embora o homem em si não o possamos ver mais,

“a grande virtude do herói, a grande nobreza da sua raça continua a viver no nosso espírito”. (7)

Pensa na grande utilidade que para nós têm os bons exemplos, e concluirás que a lembrança dos grandes homens não é menos útil do que a sua presença!

Passar Bem!

(1) Nenhuma das cartas conservadas é exclusivamente dedicada à discussão deste problema, embora existam muitas alusões dispersas ao assunto.

(2) Cf. Névio, Trag., fr. 17 em Warmington, Remains of Old l.Atin, II, p. 118.

(3) Frag. poet. rom., inc, 1, p. 137 Baehrens (=Morei, Frag. poet. lat., inc., fr. 6, p. 172).

(4) Cf. Bhagavad-Gita, II, 27: “Tudo quanto nasce tem a certeza de que há-de morrer, tudo quanto morre está seguro de renascer.”

(5) Lacuna postulada por Reynolds.

(6) Cf. Epicuro, fr. 336 Usener.

(7) Vergílio, Aen., IV, 3-4.