18 de setembro de 2025

Carta 101 – Apressa-te a viver, caro Lucílio, imagina que cada dia é uma vida completa.

Por lucianakeiko@gmail.com

Cada dia, cada hora nos mostra até que ponto nós não somos nada e descobre sempre novos argumentos para chamar a atenção de quem se esquece da fragilidade humana, e faz planos para a eternidade, vendo-se de chofre coagido a pensar na morte. Já estás tu a perguntar-me onde é que eu pretendo chegar com este proémio!

Tu conhecias Cornélio Senecião, um cavaleiro romano brilhante e obsequioso que se fizera a si mesmo partindo quase do nada a ponto de ser previsível a prossecução de uma carreira auspiciosa, pois a dignidade social é mais fácil de continuar a aumentar que de iniciar a ascenção.

A riqueza igualmente tarda sobretudo a chegar às pessoas de nível modesto, mas desde que ultrapasse um pouco esse nível nunca mais pára. Senecião já estava à beira de se alçar a uma grande fortuna, meta a que o conduziam duas qualidades extremamente eficazes: habilidade para obter riqueza, talento para a conservar.

Qualquer uma delas, aliás, bastaria para fazer dele um homem rico. Pois este homem de extrema parcimônia, tão escrupuloso na administração dos bens como nos cuidados com a saúde, depois de me ter visitado pela manhã conforme era costume, depois de ter passado o dia inteiro até à noite à cabeceira de um amigo doente e sem esperança de recuperação, depois de ter jantado com boa disposição – foi atacado por um tipo de doença galopante, uma angina, e só com grande dificuldade conseguiu respirar até ao dia seguinte, com a garganta apanhada.

No espaço de pouquíssimas horas, depois de ter desempenhado todos os deveres de um homem de perfeita saúde, caiu morto! Um homem que possuía bens de fortuna em terra e no mar, que enveredou pela administração pública para não deixar por experimentar alguma forma de obter proveitos, foi arrebatado desta vida no próprio momento em que tudo lhe corria bem e os bens pecuniários se acumulavam sobre ele.

“Enxerta agora, Melibeu, as pereiras, dispõe em fila as vides !” ‘ Vergílio, Buc., I, 73.

Como é estúpido fazer planos para uma longa vida quando não se é sequer senhor do dia seguinte! Como são insensatos todos quantos formulam esperanças a longo prazo: hei-de comprar, hei-de construir, hei-de emprestar dinheiro e cobrá-lo com juros, hei-de fazer carreira na política – e logo me guardarei para a vida privada quando estiver velho, mas bem provido de meios! …

Podes crer no que te digo: mesmo os favorecidos da fortuna carecem de segurança. Ninguém deve fazer projetos para o futuro, pois mesmo o que nós seguramos nos escapa das mãos, mesmo a hora que vivemos qualquer acaso a interrompe.

O tempo escoa-se segundo uma lei racional, mas obscura para nós; que me adianta saber que tudo se processa segundo a lei da natureza se para mim reina a incerteza? Nós planeamos regressar à pátria após longas viagens marítimas, ao fim de termos percorrido as costas de terras estrangeiras; planeamos receber sobre o tarde os salários do serviço militar; a obtenção de cargos ou de proveitos através da prestação de serviços – e com tudo isto temos a morte ao nosso lado.

E porque só pensamos na morte dos outros, os exemplos da nossa condição mortal, que de vez em quando nos surgem, apenas nos preocupam durante o tempo em que os temos sob os olhos. Não é uma autêntica estultíeia admirarmo-nos de que possa ocorrer tim dia algo que, afinal, sucede quotidianamente?

Quando o termo da nossa vida se situa no ponto exacto que lhe apontou a inexorável lei do destino, embora nenhum de nós saiba a que distância se encontra desse termo! Formemos, portanto, a nossa alma como se já estivéssemos no fim da vida.

Não adiemos: ponhamos em dia as nossas contas com a vida! O principal defeito da vida é ela estar sempre por completar, haver sempre algo a prolongar. Quem, todavia, quotidianamente der à própria vida “os últimos retoques” nunca se queixará de falta de tempo; em contrapartida, é da falta de tempo que provém o temor e o desejo do futuro, o que só serve para corroer a alma.

Não há mais miserável situação do que vir a esta vida sem se saber qual o rumo a seguir nela; o espírito inquieto debate-se com o inelutável receio de saber quanto e como ainda nos resta para viver. Qual o modo de escapar a uma tal ansiedade?

Há um apenas: que a nossa vida não se projecte para o futuro, mas se concentre em si mesma. Só sente ansiedade pelo futuro aquele cujo presente é vazio. Quando eu tiver pago tudo quanto devo a mim mesmo, quando o meu espírito, em perfeito equilíbrio, souber que me é indiferente viver um dia ou viver um século, então poderei olhar sobranceiramente todos os dias, todos os acontecimentos que me sobrevierem e pensar sorridentemente na longa passagem do tempo!

Que espécie de perturbação nos poderá causar a variedade e instabilidade da vida humana se nós estivermos firmes perante a instabilidade?

Apressa-te a viver, caro Lucílio, imagina que cada dia é uma vida completa.

Quem formou assim o seu carácter, quem quotidianamente viveu uma vida completa, pode gozar de segurança; para quem vive de esperanças, pelo contrário, mesmo o dia seguinte lhe escapa, e depois vem a avidez de viver e o medo de morrer, medo desgraçado, e que mais não faz do que desgraçar tudo. Dele resulta aquele voto de Mecenas, por completo destituído de dignidade, pois até o leva a admitir a degradação física, a perda das faculdades, até mesmo o suplício atroz da cruz desde que, mesmo entre estes flagelos, a sua existência se prolongue:

“Tirai-me a força das mãos,
fazei-me coxo de um pé,
ponham-me grossa corcunda,
tirai-me os dentes que abanam:
só quero é que a vida dure!
Prolongai-ma, mesmo que eu
à dura cruz esteja atado !”Mecenas, fr. 1 Lunderstedt.

O poeta deseja uma existência que consideraria o cúmulo da miséria se lhe tivesse calhado em sorte, anseia pelo prolongamento do suplício… como se isso fosse viver! Eu julgá-lo-ia o mais desprezível dos seres se ele desejasse apenas viver até ao momento do suplício!

Um homem que afirma:

“Podem degradar-me à vontade, desde que a vida permaneça no meu corpo, embora decadente e inutilizado; podem mutilar-me à vontade, desde que, embora monstruoso e disforme, me reste ainda um pouco de vida; podem amarrar-me à vontade a uma dura cruz, podem imobilizar-me nela!”

Tem assim tanta importância aguentar a própria ferida e ficar com o corpo distorcido no patíbulo, desde que se adie por algum tempo o fim do suplício, que é, afinal, a única coisa boa na tortura? Tem assim tanto interesse continuar arrastando a existência?

A um homem destes que outra coisa desejar senão que os deuses lhe façam a vontade? Que significa esta incrível indignidade de um ‘poema tão efeminado ? Que significa esta contemporização com o medo estultíssimo da morte? Que significa esta abjecta mendicidade de um pouco mais de vida? Como imaginar que diante de um tal homem Virgílio recitou um dia o seu verso

“a tal ponto te parece desgraçada a morte?”

Mecenas deseja até os últimos suplícios, pede que lhe seja prolongada, alargada uma situação das mais penosas. E a troco de quê? De uma vida mais longa, apenas. Mas uma morte lenta, que espécie de existência significa? É possível encontrar alguém que deseje apodrecer entre as torturas, morrendo membro por membro, que prefira exalar a alma lentamente, gota a gota, em vez de o fazer de uma vez só?

É possível encontrar alguém que deseje arrastar uma existência pejada de suplícios, amarrado à triste madeira da cruz, sem forças, com o corpo deformado, os ombros e o peito reduzidos a uma massa disforme e repugnante, alguém que poderia ter morrido de muitas maneiras sem ser na cruz?

Em face disto, podes dizer-me que não é uma dávida da natureza a necessidade da morte! E muitos homens há que estariam dispostos a passar por coisas muito piores ainda! Para viver um pouco mais, não faltaria quem se dispusesse a trair um amigo, como não faltaria quem entregasse por sua própria mão os filhos ao deboche desde que pudesse contemplar por mais algum tempo a luz do dia, cúmplice dos seus crimes!

Há que remover de vez o desejo de viver, e tomar consciência de que é irrelevante a data em que passamos por algo – a morte – por que é inevitável passar. Importa, sim, é a qualidade, não a duração da nossa vida; e, frequentemente, para viver bem, até é preferível não viver muito tempo!

Passar Bem!