17 de setembro de 2025

Carta 100 – Como poderia ser corajoso e firme perante o risco da própria vida um homem angustiado com as palavras?

Por lucianakeiko@gmail.com

Dizes-me na tua carta que leste com a maior avidez os livros de Papírio Fabiano intitulados “Da Política” mas que eles não corresponderam à tua expectativa; e, esquecendo-te de que se trata de um filósofo, vais ao ponto de criticar nele a colocação das palavras.

Imagina que tens razão, e que ele, em vez de construir rigorosamente as frases, como que as deixa correr. Para começar, este tipo de estilo tem o seu atrativo, a frase lenta e fluida possui a sua própria beleza; entendo eu que há uma grande diferença entre um estilo sacudido e um estilo fluente.

Acrescenta que mesmo neste ponto há uma diferença fundamental, como te vou mostrar: Fabiano não me parece “verter” frases, mas sim deixá-las fluir, e o resultado é um estilo amplo, sem rugosidades, mas ao mesmo tempo não desprovido de energia. Um estilo que se apresenta francamente como não trabalhado nem rebuscado em excesso.

Mas aceitemos que é correta a tua maneira de ver: a intenção dele era castigar os costumes, não a linguagem; escreveu a sua obra para as almas, não para os ouvidos.

De resto, se o ouvisses ler ele próprio o texto, não terias oportunidade de atentar nos pormenores, de tal modo te entusiasmaria o conjunto. É certo que muita coisa nos agrada pela energia da leitura mas perde parte do valor quando observada depois de passada a escrito; mas tem também a sua importância suscitar o interesse logo à primeira vista, ainda que uma análise venha a encontrar motivos de crítica.

Se mo perguntares, dir-te-ei que tem mais valor o homem capaz de arrebatar os aplausos do que o que sabe como merecê-los, embora eu saiba que este último goza de maior segurança e pode confiar no futuro mais decididamente.

Ao filósofo não convém a excessiva preocupação com o estilo: como poderia ser corajoso e firme perante o risco da própria vida um homem angustiado com as palavras? No seu estilo, Fabiano não revelava negligência, mas segurança. Por isso não encontrarás nele qualquer vulgaridade: ele escolhe, não cata as palavras que emprega, nem as coloca, em obediência à moda, segundo uma ordem antinatural, mas consegue dar-lhes brilho embora recorrendo ao vocabulário comum.

Os seus períodos são cheios de profundo sentido, conquanto sejam amplos e não limitados ao espaço de uma sentença. Podemos verificar que alguns estão pouco limados, outros com deficiente estrutura, outros ainda pouco conformes aos requintes da moda atual: mas quando considerarmos o conjunto não encontraremos obscuridades resultantes do excesso de concisão.

Admito que lhe falte a variedade dos tons do mármore ou das canalizações complicadas que levam a água a todos os quartos; também não é o tugúrio de um indigente, nem o luxo decorativo de quem se não contenta com a beleza austera: é, sim, aquilo a que soe chamar-se uma casa bem construída!

E não te esqueças de que nem todos têm a mesma opinião sobre o estilo. Uns querem-no desordenado e hirsuto, outros preferem-no de tal modo áspero que desfazem de propósito as frases espontaneamente escorreitas, interrompem abruptamente o ritmo contra todas as expecta tivas do leitor. Lê a prosa de Cícero: as suas frases são perfeitas, as inflexões não são bruscas, o ritmo é agradável sem ser efeminado. Em contrapartida, as de Asínio Polião são desiguais, sacudidas, e acabam quando menos se espera. Além disso, as de Cícero terminam todas naturalmente, as de Polião parecem cair de borco, com excepção de umas quantas que obedecem a um ritmo certo, aliás sempre do mesmo modelo.

Dizes ainda que a prosa de Fabiano te parece rasteira, pouco sublime. Aí está um defeito de que eu o acho isento. A meu ver, a sua prosa não é rasteira, mas tranquila, adequada ao seu carácter calmo e regrado; assemelha-se a um terreno plano, sem barrancos. Falta-lhe o vigor da eloquência, os grandes rasgos tão do teu agrado, o choque inesperado das sentenças; tomada, contudo, no seu conjunto é escorreita, penses o que pensares dos adornos do seu estilo. Talvez o seu modo de escrever careça de dignidade, mas comunica-a a nós.

Indica-me, aliás, qual o autor que tu julgas superior a Fabiano. Cícero, por exemplo, cujas obras filosóficas são quase tão numerosas como as de Fabiano? Aceito. Mas lá por se não ter uma estatura gigantesca não se é obrigatoriamente um anão! Asínio Polião? Aceito, mas com uma reserva: só ter dois à sua frente é uma excelente posição em matéria tão relevante. Podes citar ainda Tito Lívio, já que ele escreveu diálogos de interesse tanto filosófico como histórico, além de obras expressamente dedicadas à filosofia. Aceito ainda este exemplo. Vê, todavia, a quantos Fabiano excede, ele que é ultrapassado apenas por três autores, e três autores que são os mais brilhantes estilistas.

É verdade que Fabiano não é excelente em todos os aspectos. O seu discurso, embora elevado, carece de força; embora abundante, não é violento e impetuoso, é correcto, embora sem ser brilhante. “Falta-lhe” – dirás tu – “aspereza na condenação dos vícios, Energia ao minimizar os perigos, altivez ao afrontar a fortuna, agressividade ao invectivar a ambição.

Eu quero que se condene o luxo, que se exponham ao ridículo os desejos, que se refreie a violência, tudo num estilo que combine a agressividade da oratória, a grandiosidade da tragédia, a mordacidade breve da comédia.” O que pretendes é meter Fabiano em cuidados com algo de somenos importância: as palavras, quando o que ele faz é aplicar-se à grandeza do assunto; a eloquência segue-o como uma sombra, quase sem ele dar por isso. O seu discurso não aflora, sem dúvida, todos os pontos, carece de síntese, nem todas as palavras são estimulantes e certeiras, admito. Muitas frases passam ao lado do alvo, por vezes o estilo deixa-nos indiferente, por ineficaz.

Mas em cada página há sempre algo de luminoso, há uma vastidão imensa, mas que não cansa. Há, enfim, nele um mérito inigualável: é evidente que tudo quanto escreveu foi sentido. Percebe-se que ele agiu assim para o leitor saber o que lhe agradava a ele, e não para ele agradar ao leitor. Tudo quanto escreveu visa ao progresso moral, à sabedoria, sem de nada lhe interessarem os aplausos.

Não duvido que seja este o carácter dos seus escritos, embora deles tenha uma recordação já remota e conserve uma ideia global não resultante do contato recente com a obra. Sucede geralmente assim quando o conhecimento vem de longe. Pelo menos, quando eu assistia às suas lições era assim que eu os via: não sem defeitos, mas com conteúdo, capazes de entusiasmarem um jovem de bom carácter e de nele suscitarem quer o espírito de emulação quer a esperança de conseguir superar o mestre, o que se me afigura a mais eficaz forma de exortação.

De fato, é contraproducente despertar a vontade de imitar negando a esperança de o conseguir. Além disso, tinha uma linguagem abundante, sem nada de especial a nível de pormenor, mas excelente na globalidade.

Passar Bem!