Carta 82 – Os grandes monstros têm de ser combatidos com armas poderosas
Já deixei de estar na incerteza a teu respeito. Se me perguntares que divindade me serve de garante, dir-te-ei; aquela que nunca engana ninguém, ou seja, a alma que apenas ama o que é justo e bom.
A melhor parte de ti mesmo já se encontra a salvo. Pode suceder que a fortuna te faça algum mal; no entanto, – o que é mais importante! – , já não receio que tu faças mal a ti mesmo.
Prossegue na via que encetaste, adapta-te a este estilo de vida com serenidade, mas não com moleza! Eu prefiro viver mal do que com moleza – entendendo aqui “mal” no sentido que se lhe dá correntemente, isto é, com dureza, dificuldades, sacrifícios.
Ouvimos não raro enaltecer certas pessoas cuja vida se inveja em termos deste género: “Mas que moleza de vida!”, “Mas que moleza de homem!…” O certo é que gradualmente a alma se vai efeminando e perdendo consistência, à imagem da ociosidade e indolência em que vegetam.
Pois quê, não será mais digno de um homem ter um ânimo vigoroso? ( .. .) (1) e cá temos estes nossos “frágeis donzéis” com medo da morte, eles que fizeram da própria vida um simulacro da morte!
Ora, há uma enorme diferença entre viver no ócio e viver numa tumba.
“Que dizes? Então não é preferível levar uma vida de inatividade, mesmo que com moleza, do que deixar-se enredar nesta vertigem dos deveres públicos?”
Ambas as coisas são condenáveis, tanto a crispação como o entorpecimento. Acho eu que tão morto está o que jaz no meio de perfumes como aquele cujo cadáver é removido com um gancho; um ócio à margem da cultura equivale à morte, é como o sepulcro de um homem vivo!
Que interessa viver retirado nestas condições? Vale tanto como atravessar os mares levando atrás de nós as causas dos nossos cuidados. Onde encontrar um esconderijo em que não penetre o medo da morte ? Que tipo de vida goza de tanta tranquilidade, é tão protegida e remissa que não possa ser perturbada pela dor ? Onde quer que te refugies sentirás à tua volta o estrépito dos males humanos.
Vivemos em meio de condicionalismos externos que nos iludem ou atormentam, mas muitos outros há, de ordem interna, que nos fazem ferver em plena solidão. A filosofia deverá circundar-nos, como uma muralha inexpugnável que a fortuna, embora a assalte com inúmeros engenhos, nunca poderá transpor.
A alma que se aparta de tudo quanto é externo, que se defende no seu domínio próprio, alça-se por isso mesmo a um lugar inacessível donde vê todos os dardos cair sem lhe tocarem.
A fortuna não tem um braço assim tão longo quanto se julga: apenas atinge os que dela se encontram próximos. Por essa razão devemos saltar para fora do seu alcance tanto quanto nos for possível, o que só conseguiremos através do conhecimento de nós mesmos e da natureza(2).
Cada um deve procurar saber para onde vai, donde provém, em que consiste para si o bem e o mal, quais as coisas a alcançar, quais as que são de evitar; deve saber que coisa é essa razão graças à qual se torna apto a discernir as metas a atingir e a evitar, essa razão que acalma a loucura dos desejos e aniquila a ferocidade dós temores.
Certos pensadores entendem que se consegue reprimir estas últimas perturbações mesmo sem recorrer à filosofia. No entanto, se um homem atravessou sem perigo todos os acasos da vida, a declaração que então faça já vem tarde! Quero ouvi-lo falar é quando o carrasco se está aprestando, quando a morte se está avizinhando. A esse homem poderíamos dizer:
“Tu estavas desafiando sem riscos males ausentes: aqui tens agora a dor (que tu dizias suportar sem dificuldade), aqui tens agora a morte (a respeito da qual proclamavas sentenças tão corajosas); estalam os chicotes, brilham as espadas: mostra agora, Eneias, a tua coragem, a tua energia!“(3)
Um coração forte consegue-se através de uma contínua meditação, desde que nos não apliquemos às palavras mas ao conteúdo, desde que nos preparemos para aceitar a morte; e não é à força de sofismas que alguém conseguirá exortar-te e levar-te à convicção de que a morte não é um mal. Dão-me vontade de rir, amigo Lucílio, algumas patetices dos Gregos: por muito que os admire ainda não as consegui entender!
O nosso Zenão serve-se deste raciocínio: Nenhum mal é causa de glória; ora, a morte não é causa de glória; logo, a morte não é um mal!”(4) Magnífico! Já estou liberto -do medo! Depois disto, já não hesitarei em estender o pescoço ao carrasco… Vamos lá falar com mais dignidade, sem cobrir de ridículo um homem que vai morrer!
Pelos deuses! Nem sei dizer-te qual dos dois me parece mais imbecil: se quem imaginou com este silogismo eliminar o medo da morte, se quem se aplicou a solucioná-lo como se ele fosse pertinente para o caso! O mesmo pensador contrapôs a este um silogismo inverso, baseado no fato de nós, estóicos, incluirmos a morte no número das coisas indiferentes, ou, como se diz em grego, αδιαφορα (5) Ei-lo:
“Nenhuma coisa indiferente é causa de glória; ora, a morte é causa de glória; logo, a morte não é indiferente.”
Estás a ver onde é que tropeça este silogismo: a glória não está na morte em si, a glória está em morrer valorosamente. Quando se diz que “nenhuma coisa indiferente é causa de glória” eu estou de acordo, mas neste sentido, que tudo quanto é glorioso gira à volta de coisas em si mesmo indiferentes.
Entendo por “indiferentes”, isto é, nem boas nem más, coisas como a doença, a dor, a pobreza, o exílio, a morte. Nada disto, por si mesmo, pode ocasionar a glória, mas sem isto também nada o faz. Objeto de louvor não é a pobreza, mas sim o homem que se não deixa vencer nem abater pela pobreza; objeto de louvor não é o exílio, mas sim quem parte para o exílio com mais serenidade no rosto do que se exilasse alguém; (6) objecto de louvor não é a dor, mas sim quem em nada cedeu à dor; ninguém louva a morte em si, mas sim o homem que a morte arrebata sem previamente lhe perturbar o ânimo.
Nenhuma destas coisas tem por si mesma valor moral ou glória; o que lhe atribui valor moral e glória é somente o fato de nelas se ter de algum modo inserido a virtude. Tais coisas estão, por assim dizer, a meio caminho: a diferença surge quando o homem as enfrenta com covardia ou com virtude. A mesma morte que em Catão foi gloriosa tornoú-se em Bruto vergonhosa e vil. Refiro-me àquele Bruto que, condenado à morte, procurou todas as formas de adiar a execução: retirou-se para aliviar o ventre, chamaram-no para ser executado, ordenaram-lhe que submetesse o pescoço ao carrasco.
“Eu submeto” – gritou – “mas deixem-me viver! … “
Que loucura esta de tentar fugir quando já se não pode retroceder!
“Eu submeto, mas deixem-me viver!”
Só lhe faltou acrescentar:
“Mesmo sob as ordens de António!”
Ó homem digno de ser condenado … à vida!
Mas continuemos. Estás vendo que, como te dizia, a morte em si não é um mal nem um bem: Catão usou-a da forma moralmente mais nobre, Bruto do modo mais indigno. É a presença da virmde que pode dar a qualquer coisa o valor de que, em si, carecia. Nós dizemos de um quarto que é muito claro, embora de noite fique total- mente às escuras: o dia faculta-lhe a luz, a noite rouba-lha.
O mesmo se passa com aquelas coisas que nós classificamos de indiferentes ou intermédias – riqueza, força, beleza, carreira das honras, poder, ou, inversamente,morte, exílio, problemas de saúde, dor, e outras ainda que, ora mais ora menos, nós receamos: é a vileza ou a virtude que delas faz um bem ou um mal. Uma massa de metal não é em si quente nem fria: se a atirarmos a uma fornalha ela aquece, se a deitarmos à água, arrefece. A morte só tem valor moral graças ao valor em si, isto é, a virtude, o desprezo em que a alma tem os condicionalismos externos.
Existe no entanto, Lucílio, uma grande diferença mesmo entre aquelas coisas a que chamamos “intermédias”. Por exemplo, a morte não é indiferente no mesmo sentido em que o é ter um número par ou ímpar de cabelos. A morte inclui-se entre aquelas coisas que, sem serem em si um mal, revestem, no entanto, a aparência de um mal; e isto porque nos é inerente o amor por nós mesmos, o instinto de conservação permanente, a repugnância perante o aniquilamento, … (7) ( e também) por imaginarmos que a morte nos vem arrebatar imensos bens, nos vem subtrair ao infindável mundo de coisas que nos habituámos a gozar.
Repelimos ainda a ideia da morte porque, se conhecemos bem este mundo, ignoramos tudo do mundo para que iremos,… e o homem tem horror ao desconhecido! Mais: sofremos também do terror natural pela escuridão, e é crença geral que a morte nos lançará nas trevas. Todas estas considerações mostram que, se a morte é um “indiferente”, não é apesar disso um daqueles que possamos tratar com ligeireza: para a alma se dispor a encarar a aproximação da morte é indispensável robustecê-la à custa de intenso treino.
Não recear a morte é um dever nosso, mas não um hábito generalizado: concebemos todas as fantasias acerca dela; muitos poetas talentosos aplicaram-se à porfia a aumentar a má fama de que a morte desfruta, com as suas descrições dos antros infernais como uma região oprimida por uma noite eterna, um mundo em que
“o gigantesco porteiro do Orca,
estendido no antro sangrento sobre
ossadas meio roídas,
assusta com o seu ladrar incessante
as almas exangues”(8)
Mesmo estando convencidos de que tudo isto não passa de fábula (9) e de que os mortos nada mais têm a recear, sobrevém-nos outro temor: o comum das pessoas tanto receia ir parar aos infernos como não ir parar a parte alguma. Perante estas visões, uma e outra negativas, impostas ao nosso espírito por uma longa habituação, como não pensarmos que a coragem perante a morte é uma fonte de glória, é uma das maiores façanhas do espírito humano? ! Nunca este se elevará até à virtude enquanto estiver convencido de que a morte é um mal, mas fá-lo-á se passar a considerá-la como indiferente. É contrário à natureza afrontar com decisão uma situação que consideramos ser um mal: a ação será sempre lenta e hesitante. Também não é glorioso fazer-se qualquer coisa contrariada e indecisamente. A virtude não age apenas por estrita necessidade.
Acrescenta ainda que nenhuma ação tem valor moral senão quando nos aplicamos a ela com toda a nossa alma, quando nenhuma parte do nosso ser lhe opõe resistência. Quando alguém afronta um mal, por medo de algo pior ou na esperança de vir a obter algum bem, e apenas tenha “engolido” pacientemente um único mal, – esse alguém sofrerá a ação de impulsos opostos: por um lado, sentir-se-á incitado a levar até ao fim o seu propósito, por outro sentirá vontade de retroceder e de se pôr a salvo de uma conjuntura suspeita e perigosa; em suma, vê-se puxado simultaneamente em direções opostas. Quando se dá uma situação destas toda a glória se vai! A virtude, porém, leva até ao fim a decisão tomada em bloco pela alma, sem receio daquilo que vai fazer.
“Não cedas à desgraça, antes avança mais audaz ainda do que a própria fortuna te permite!”(10)
Nunca poderás avançar com toda a audácia se pensares que vais enfrentar um mal. Há que arrancar essa ideia do teu espírito, pois dúvida que persista em ti só servirá para entravar-te o passo. Se queremos entrar, temos de empurrar as portas com energia!
É exato que os mestres estóicos pretendem fazer crer que, enquanto o silogismo de Zenão é verdadeiro, o outro, que lhe é contraposto, é incorrecto e falacioso. Eu, por mim, não estou disposto a tratar o problema da morte segundo as leis da lógica, fabricando desses sofismas próprios de uma subtileza entorpecida. Entendo que devemos rejeitar todo este aparato de que se rodeiam os autores de silogismos e que os leva, afinal de contas, a forçarem o seu oponente a uma conclusão contrária ao que de fato pensa.
Em defesa da verdade devemos agir com maior simplicidade, contra o medo devemos empregar maior energia. Quanto a estes raciocínios congeminados por tais pensadores, eu gostaria de solucioná-los e desenvolvê-los, não para enganar os outros mas para os persuadir.
Um general em campanha de que modo deve exortar os seus soldados a enfrentarem a morte em defesa das mulheres e dos filhos ? Toma o exemplo dos Fábios que assumiram para a sua família o peso da guerra -que afligia todo o Estado. Reflecte no exemplo dos Espartanos postados no desfiladeiro das Termópilas: não têm esperança alguma de vitória ou de regresso; sabem que aquela posição será o seu túmulo.
Que argumentos usar para exortar estes homens a opor os seus corpos à massa dos Persas que se abatia sobre eles? Como convencê-los a antes abandonarem a vida do que cederem o passo? Será que lhes vais dizer: “Nenhum mal pode ser glorioso; ora a morte é gloriosa, logo a morte não é um mal?!” … Que discurso persuasivo! Depois de o ouvir quem é que hesitaria em oferecer o peito às espadas m1migas e morrer de pé?
… Em contrapartida, vê agora o vigor com que Leónidas lhes dirigiu a palavra:
“Camaradas, jantai hoje na plena certeza de que haveis de ir cear entre os mortos!”
A comida não se lhes enrolou na boca, não se lhes colou na garganta, não lhes caíu das mãos: antes foi com energia que eles usaram as mãos quer ao jantar quer à ceia! Queres outro exemplo? Vê o daquele general romano que, enviando os seus soldados ao ataque de uma posição (o que os obrigava a atravessar as linhas do vasto exército inimigo) lhes falou nestes termos:
“Camaradas, é necessário marchar sobre um local donde não é necessário regressar!”
Vê bem como a virtude é direta e imperiosa. Em contrapartida, onde está o homem a quem os argumentos capciosos possam dar mais coragem e entusiasmo? Tais argumentos só servem para embotar a alma – e nunca ela menos deve ser abatida e enredada em questiúnculas miudinhas do que quando vai afrontar uma situação difícil.
Não são apenas trezentos homens, é todo o género humano que devemos libertar do medo da morte. De que modo farás compreender a todos que a morte não é um mal? De que modo destruirás neles uma ideia errada cimentada ao longo de toda a vida, bebida desde a infância?
Que recurso usarás para socorrer a fraqueza dos homens? Que poderás dizer-lhes que os faça lançar-se com determinação no meio dos perigos? Que discurso será o teu para poder vencer o consenso geral que incita ao temor da morte, que energia intelectual terás de despender a fim de eliminar essa convicção arreigada no espírito humano? Será que vais congeminar argumentos arreveza- . dos ou construir silogismos?
Os grandes monstros têm de ser combatidos com armas poderosas. A terrível serpente africana (mais funesta para as legiões romanas do que a própria guerra) em vão os nossos soldados tentaram feri-la com setas ou pedras: nem mesmo Apolo Pítio a conseguiria trespassar! O seu tamanho gigantesco, a dureza da pele que lhe cobria o corpo imenso repeliam o ferro e todas as outras armas que contra ela se usaram: só com pedregulhos do tamanho de mós foi possível matá-la.
E tu vais empregar contra a morte argumentos tão miseráveis!… A tua figura é a de quem defronta um leão com um canivete! Os teus raciocínios são muito agudos; repara, porém, que nada é mais aguçado do que a ponta de uma espiga, mas a própria finura de muitos instrumentos faz deles armas inúteis e ineficazes!
Passar bem!
(1) Frase mutilada; ames de deinde, o copista deve cer deixado escapar qualquer palavra que os editores se empenham variamente em rescicuir.
(2) Sobre a imporcância que o conhecimento da nacureza cem para o conhecimento de nós mesmos veja-se o prefácio das Naturales Quaestiones que Séneca, como se sabe, dedicou ao seu amigo Lucílio.
(3) Vergílio, Aen., VI, 261.
(4) Este silogismo formn o fo. 196 de S. V.F., I.
(5) Sobre a teoria dos indiferentes cf. S.VF., I, 191 ss.; llf. 117 ss.
(6) Trata-se, uma vez mais, do célebre exemplo de Rutílio.
(7) Laoma postulada por Haupt, com a concordância de Reynolds.
(8) Contaminação de dois passos de Vergílio: a) Aen., VI, 400-1:
embora o gigantesco porteiro na caverna assuste com o seu ladrar incessante as almas exangues
b) Aen., VIII, 2%-7:
o porteiro do Orca, estendido no antro sangrento sobre ossadas meio roídas. Séneca citava de cor, daí a contaminação. – O “porteiro do Orco” é Cérbero, o cão infernal de três cabeças.
(9) Também em Troianas, 405-6 Séneca chama às tradicionais descrições do mundo infernal “ocos boatos, palavras sem sentido, fábulas semelhantes a pesadelos”. – Neste ponto, aliás, é total o acordo entre estóicos e epicuristas, d. Lucrécio, III, 978 ss.
(10) Vergílio, Aen., VI, 95-6.