Carta 75 – Dizer o que sentimos, sentir o que dizemos, isto é, pormos a nossa vida de acordo com as nossas palavras.
Tens-te queixado de receberes cartas minhas escritas em grandes pruridos de estilo. Mas quem é que escreve com pruridos se não aqueles cuja pretensão se limita a uma eloquência empolada?
Se nós nos sentássemos a conversar, se discutíssemos passeando de um lado para o outro, o meu estilo seria coloquial e pouco elaborado; pois é assim mesmo que eu pretendo sejam as minhas cartas, que nada tenham de artificial, de fingido!
Se isso fosse possível, eu preferia mostrar-te o que sinto, em vez de o dizer. Mesmo que eu estivesse discutindo contigo não me iria pôr na ponta dos pés, nem fazer grandes gestos, nem elevar a voz (1) : tudo isto seriam artifícios de oradores, enquanto a mim me bastaria comunicar-te o meu pensamento, num estilo nem grandiloquente nem vulgar.
De uma coisa apenas eu te quereria convencer: de que sentia tudo quanto dissesse, e não apenas que o sentia, mas que o sentia com amor!
Ninguém beija uma amante do mesmo modo que beija os filhos; e, no entanto, mesmo nas carícias puras e comedidas de pais para filhos está claramente visível a afetividade.
Hércules me ajude! Eu não quero que as palavras inspiradas por um tão magno assunto sejam excessivamente frias e secas – pois a filosofia não deve renunciar por completo ao talento literário -, mas também não há que dar demasiada importância às palavras.
O nosso objetivo último deve ser este: dizer o que sentimos, sentir o que dizemos, isto é, pormos a nossa vida de acordo com as nossas palavras.
Imagina um mestre qualquer: se a impressão que tu sentes contemplando as suas ações é idêntica à que tens ouvindo o seu discurso, esse mestre atingiu o seu propósito. Observemos a qualidade dos seus atos, a fluidez do seu discurso: entre ambos, a mais perfeita unidade!
As nossas palavras não visam o prazer literário, mas sim a pertinência. Se a eloquência surge, por assim dizer, naturalmente, sem esforço, ou quase, deixemo-la acompanhar as mais nobres ações e realçar, não a sua presença, mas a ação êm si!
As restantes artes dirigem-se exclusivamente à inteligência, ao passo que a filosofia é a atividade por excelência da alma. Um enfermo não exige do médico o brilho do estilo; se, todavia, o mesmo homem que sabe tratar da doença é também capaz de explicar num estilo agradável qual o tratamento a seguir, deverá fazê-lo. Isso não significa que o doente se considere muito afortunado por ter encontrado um médico eloquente, tal como de nada adianta que um piloto experimentado seja simultaneamente um belo homem.
Para quê acariciar-me os ouvidos, para quê deleitá-los?
Apliquem-me um cautério, uma lanceta, uma dieta rigorosa. Esta é a tarefa real. A tua preocupação deve ser a de sanar uma enfermidade enraizada, grave, generalizada; a tua tarefa é tão ingente como a de um médico que trata uma epidemia.
Para quê preocupar-te com as palavras? Dá-te por satisfeito se estiveres à altura dos teus deveres. Quando aprenderás as grandes lições da filosofia? Quando interiorizarás a lição aprendida de modo tal que nunca mais a esqueças? Quando porás à prova a teoria? Na filosofia não basta, como é o caso nas outras ciências, confiar na memória, devemos pô-la à prova através da ação.
Para ser feliz não basta conhecer a teoria, há que pô-la em prática.
“Que estás dizendo? Abaixo do nível superior não existe qualquer gradação? Ou se atinge a sapiência ou se cai no abismo?”
É exatamente assim, segundo eu penso. Quem vai progredindo no estudo da filosofia pertence ainda ao número dos não sábios, embora esteja a uma grande distância do comum dos mortais. Mesmo entre os estudiosos da filosofia existem consideráveis diferenças; há autores que dividem tais estudiosos em três classes. (2)
A primeira classe abarca aqueles que, embora ainda não atingindo a sapiência, já se encontram muito perto de o conseguir; o próprio fato de estarem perto, contudo, implica que a sapiência ainda lhes é exterior.
Se me perguntas que classe de homens é esta, a minha resposta será: são os que se libertaram já das paixões e dos vícios, e adquiriram os conhecimentos necessários a esse fim, sem conseguirem ainda prosseguir nessa via com confiança inabalável.
Não alcançaram ainda na prática o sumo bem, mas já não lhes é possível voltar aos vícios abandonados; o ponto a que chegaram já não admite retrocesso, mas ainda não têm uma noção clara sobre si mesmos, ou, conforme eu me lembro de já te ter escrito em outra carta, “não sabem que sabem”! (3)
Já lhes é dado gozar do seu bem próprio, mas ainda não confiam nele sem reservas. Esta classe de estudiosos é definida por outros autores como abarcando os que já se libertaram das doenças da alma mas ainda não das paixões, e que, portanto, ainda estão numa posição pouco segura, pois apenas está ao abrigo do mal quem expulsou de si o mal por completo; por outro lado, só pode expulsar de si o mal aquele que, em seu lugar, atinge por completo a sapiência.
Já muitas vezes te tenho dito qual a diferença entre as doenças da alma e as paixões. Vou recordar-to uma vez mais: doenças da alma são os vícios bem enraizados e violentos, tais como a avareza ou a ambição; tais vícios ocupam a alma com tanta intensidade que se transformam em enfermidades crónicas.
Numa palavra, a doença da alma é um juízo de valor que persiste no erro: por exemplo, considerar muito desejáveis coisas que são apenas relativamente desejáveis.
Se quiseres, ainda tens aqui outra definição: desejar ardentemente coisas que apenas relativamente são de desejar, ou são absolutamente não desejáveis; ou atribuir um grande valor a coisas que pouco ou nenhum valor têm.
As paixões, essas, são impulsos da alma condenáveis, súbitos e intensos, os quais, se se tornarem frequentes e não forem refreados, podem degenerar em doenças da alma: um pouco à maneira do catarro, que, se apenas momentâneo, ocasional, se limita a provocar tosse, mas se se tornar contínuo, crónico, degenera em tuberculose!
Em conclusão, os estudiosos mais avançados já estão libertos das doenças da alma, mas, conquanto próximos da perfeição, encontram-se ainda sujeitos às paixões.
A segunda classe compreende aqueles que se conseguiram libertar das principais enfermidades da alma e das paixões, mas não a ponto de gozarem definitivamente de um estado de perfeita tranquilidade. Por outras palavras, estão ainda sujeitos a retroceder ao estádio precedente.
A terceira classe já está liberta de numerosos e consideráveis vícios, mas ainda não de todos. Está livre da avareza, mas sujeita ainda à ira; já não é tentada pelo prazer, mas é-o ainda pela ambição; está liberta do desejo, mas não do temor, e, no que toca aos objetos de temor, pode mostrar-se firme perante alguns mas ceder perante outros: por exemplo, não recear a morte, mas ter medo da dor física.
Meditemos um pouco neste ponto: já seria muito bom para nós se nos pudéssemos incluir nesta terceira classe. A segunda classe atinge-se através de uma favorável disposição natural e de uma intensa e assídua aplicação ao estudo; nem por isso, contudo, devemos menosprezar a terceira classe. Pensa na quantidade de males que vês à tua volta; vê como não há crime que não seja praticado, como dia-a-dia a perversidade vai progredindo, como a maldade grassa na vida pública e na vida privada, e assim perceberás como já é muito bom o fato de não pertencermos ao número dos piores!
Dir-me-ás:
“Tenho esperança nas minhas possibilidades de vir a atingir a classe mais elevada!”
Tal esperança é para nós mais um voto que uma promessa: vê como estamos sujeitos a pressões, como buscamos a virtude dilacerados entre toda a espécie de vícios! Até sinto vergonha de o dizer: somos apenas honestos nas horas vagas! … Mas que recompensa enorme nos aguarda se formos capazes de romper com as nossas obrigações sociais e com os nossos males inveterados!. ..
Deixaremos de ser movidos pelo desejo ou pelo medo. Não nos perturbará o terror, não nos corromperá o prazer, não nos assustarão nem a morte nem os deuses; ficaremos a saber que nem a morte é um mal, nem os deuses existem para causar o mal. Tão pouco valor tem a morte que ataca, como o corpo que é atacado: as regiões mais altas do ser não têm possibilidade de ocasionar o mal.
Se um dia saírmos deste mundo de lama para as regiões sublimes e superiores teremos à nossa espera a tranquilidade da alma e, eliminadas todas as causas do erro, obteremos a liberdade absoluta. Queres saber em que consiste a liberdade? Em não temermos nem os homens nem os deuses; em não desejarmos nada que seja imoral ou excessivo; em termos o maior domínio sobre nós próprios: sermos donos de nós mesmos é um bem inestimável!
Passar bem!
(1) Tudo quanto, em sentido genérico, se relaciona com a “gesticulação” era tratado pela retórica clássica na rubrica actio “ação”, v. Quintiliano, III, 3, 1-3 e, sobrerudo, todo o capítulo 3 do livro XI.
(2) Para o estoicismo antigo, os homens dividem-se em dois grupos exclusivos: os “‘sábios”’ (σοφοί , sapientes), e os– “‘não sábios, insanos, insensatos’’ ( φαύλοι , κακοί , insipientes, stulti). Qualquer homem era rigorosamente incluído numa ou noutra destas duas categorias (cf. por ex. S. V. F., I, 216), sem que se considerassem graus intermédios. A ideia de um estado intermédio no qual se inserissem os proficientes, isto é, aqueles que iniciaram o estudo da filosofia e que, em maior ou menor grau, se vão aproximando da sabedoria plena sem, no entanto, a terem ainda alcançado, parece ter-se originado durante o chamado estoicismo médio, nomeadamente com Panécio, cf. P. Grimal, Séneque, De constantia sapientis, Commentaire,p. 42. Séneca, porém, é mais rigoroso: mesmo os proficientes devem ser considerados como pertencendo ao número dos insipientes, quanto mais não seja porque o apenas iniciado pode ainda oscilar e recuar (71, 30; 72, 6; 35, 4), o que ao sábio não é possível acontecer. Sublinhe-se, entretanto, como uma das mais importantes contribuições de Séneca para a teoria estóica, o seu voluntarismo, “das erst er in die Stoa hineintragt” (M. Pohlenz, Die Stoa, I, p. 319); cf. ibid.: “Die alte Stoa schied die Menschen in Weise und Nichtwisser; bei Seneca tritt daneben der Gegensatz des guten und des bõsen Willens auf”.
(3) V. supra, 📖 [Carta 71](https://lucianakeiko.github.io/cartas/carta-71/) , 4.