Carta 55 – Deixar de viver para os outros não significa automaticamente que vivamos para nós mesmos!
Acabei de chegar de um passeio em liteira, tão cansado como viria se tivesse feito a pé todo o trajeto. Afinal também cansa andar às costas dos outros, e talvez ainda canse mesmo mais por ser antinatural: a natureza não nos deu os pés para andarmos, assim como nos deu os olhos para vermos por nós próprios?
A vida de luxo roubou-nos as forças, e o que antes não fazíamos por falta de vontade, hoje não o fazemos por carência de energia! No meu caso, porém, sentia necessidade de dar algum movimento ao corpo, ou para expulsar a expectoração que porventura tivesse na garganta, ou, se por qualquer outro motivo a respiração me era difícil, para tentar aliviá-la com as sacudidelas da liteira, que sinto ter-me feito bem.
E por isso mesmo fui prolongando um passeio que a própria paisagem tornava convidativo: entre Cumas e a vila de Servílio Vátia a costa faz uma curva e forma uma estreita passagem, como que um istmo limitado a um lado pelo mar e do outro pelo lago.
Uma tempestade recente tinha tornado o terreno mais sólido; como sabes, a ondulação constante e forte endurece a passagem, ao passo que uma calmaria prolongada, com o desaparecimento da humidade, torna a areia mais seca e menos consistente ao andar.
Segundo o meu hábito ia procurando ao redor alguma coisa que suscitasse qualquer meditação proveitosa. Acabei por dar com os olhos na vila que em tempos foi propriedade de Vátia. Antigo pretor, podre de rico, Vátia aqui se instalou até uma extrema velhice – e tanto bastou para ser considerado um homem feliz.
Muita gente caiu em desgraça por ter relações de amizade com Asínio GaJo, por manifestar primeiro hostilidade e mais tarde simpatia por Sejano (de fato, não menos perigosa era a inimizade do que a amizade por este homem!); quando tal sucedia, todos exclamavam:
“Ó Vátia, só tu é que sabes viver.’”
Não, Vária sabia esconder-se, isso sim, mas não viver; há uma enorme diferença entre viver no lazer ou viver na indolência! Quando Vária ainda era vivo, nunca passei junto à sua vila que não dissesse: “Aqui jaz Vária!. .. “
A filosofia, caro Lucílio, tem no entanto uma conotação tão venerável e sagrada que mesmo uma imitação de vida filosófica suscita a admiração geral. Um homem que viva retirado passa aos olhos do vulgo por viver no ócio, tranquilo e contente de si, por viver apenas a sua vida, quando, de fato, um tal tipo de vida somente está ao alcance do sábio.
Apenas o sábio sabe o que é viver para si mesmo, pela simples razão de que apenas o sábio sabe o que é viver! Um homem que evita a vida pública e a vida social, que se vê afastado devido ao fracasso das suas ambições, que se sente incapaz de ver outros bem sucedidos onde ele falhou, que se oculta aterrorizado como um animal medroso e frágil – um tal homem não está vivendo para si próprio, está sim, o que é muitíssimo pior, vivendo para o estômago, para a indolência, para a libertinagem.
Deixar de viver para os outros não significa automaticamente que vivamos para nós mesmos! A constância e a firmeza de propósitos, todavia, são algo de tão importante que mesmo uma inatividade persistente consegue forçar à admiração!
Da vila propriamente dita nada te posso descrever de concreto, pois apenas conheço a fachada e aquelas outras partes visíveis a quem passa na rua. Possui duas grutas artificiais de consideráveis proporções, qualquer delas tão vasta como um largo átrio; numa delas nunca entra o sol, na outra há sempre sol, do nascer ao ocaso.
Um curso de água, ligado por um lado ao mar e pelo outro ao lago de Aquerúsia, divide ao meio, como um canal, um bosque de plátanos; é um canal que, mesmo utilizado continuamente, daria à vontade para a criação de peixes. E, de fato, se há calmaria não é utilizado, mas quando o mau tempo força os pescadores à inacção, utilizam-se as suas reservas piscícolas. A maior vantagem da vila é que fica paredes meias com Báias, o que permite evitar os transtornos da cidade sem a privação dos seus prazeres.
Tais são as comodidades da vila que eu pude apreciar pessoalmente. Creio que ela será agradável em qualquer estação, já que está exposta aos ventos do oeste, de tal maneira mesmo que lhes barra a passagem até Báias. Não foi nada estúpido, Vária, ao escolher este local para gozar o seu lazer… consagrado à indolência e à velhice!
No entanto, no que concerne à tranquilidade do espírito é de pouca monta a escolha do local: a alma é que confere a cada coisa o seu valor respectivo. Já conheci gente triste que vivia em vilas risonhas e aprazíveis; já encontrei pessoas que, vivendo em completo isolamento, pareciam sempre atarefadíssimas.
Não há, portanto, qualquer razão para pensares que o fato de não viveres na Campânia te impede de gozar uma serena vida interior. E não vives na Campânia porquê? Bastará vires até cá em pensamento. Poderás conviver com os teus amigos sempre que queiras, todo o tempo que queiras!
Este supremo prazer da amizade, nunca o podemos gozar tanto como quando estamos ausentes. Quando nos vemos habitualmente tornamo-nos embotados. Falamos, passeamos, sentamo-nos juntos com frequência de modo que, recolhido cada um a sua casa, deixamos de pensar nos amigos com quem acabámos de estar.
Devemos suportar mesmo a ausência dos amigos com tanto mais paciência quanto é certo que, ainda quando não ausentes, passamos a maior parte do tempo longe deles. Primeiro porque cada um vai passar a noite em sua casa; depois, porque cada qual tem as suas ocupações distintas, tem os seus estudos particulares, tem as suas estadias na respectiva casa de campo. Já vês que, afinal, uma estadia numa província distante não nos priva assim tanto um do outro.
É dentro da alma que temos os amigos, e a alma nunca se separa de nós; dentro da alma está sempre presente quem ela queira e quando o queira! Podes, assim, estudar, comer, passear na minha companhia…
Muito estreita seria a nossa existência se houvesse alguma barreira a opor-se ao pensamento. ‘Estou a ver-te diante de mim, Lucílio amigo, estou mesmo a ouvir a tua voz; estou de tal modo perto de ti que já não sei bem se te vou escrever uma carta, ou apenas um recado para enviar a tua casa!
Passar Bem!