2 de agosto de 2025

Carta 53 – “eu não estou disposta a aceitar o tempo que vos sobejar, vós é que tereis apenas aquele de que eu não necessite”

Por lucianakeiko@gmail.com

O que não deixarei eu convencer-me a fazer depois de me ter deixado persuadir a uma viagem por mar? Quando parti estava o mar calmo; o céu estava, em boa verdade, coberto de nuvens escuras, daquelas que quase sempre resultam em vento ou em chuva, mas pensei que podia abreviar aquelas poucas milhas que vão da tua Parténope até Putéolos, mesmo com o céu dúbio e ameaçador.

Assim, para andar mais depressa, fiz o caminho pelo alto, rumo a Nésida, disposto a evitar todas– as baías. Quando já tinha chegado a um ponto em que se tornara indiferente avançar ou voltar para trás, aquela tranquila superfície que me seduzira alterou-se; sem ser ainda tempestade, o mar começou a ondular, e, gradualmente, as vagas aumentaram de frequência.

Pus-me a pedir ao piloto que me desembarcasse em qualquer ponto da costa; respondeu-me que o litoral era escarpado, inabordável, e que, numa tempestade, ele nada temia mais do que a terra firme.

Aliás eu estava a ficar aflito demais para me dar conta do perigo; atormentava-me uma náusea mole, sem solução, daquelas que excitam a bílis sem a expelir. Insisti com o piloto e forcei-o, com vontade ou sem ela, a aproximar-se da costa.

Quando nos avizinhámos dela, sem esperar alguma daquelas manobras descritas por Vergílio –

ao mar alto inclinam as proas Vergílio, Aen., VI, 3.

lembrando-me da minha habilidade como velho praticante de banhos frios, atiro-me ao mar, com equipamento de “,nadador de águas frias” Vergílio, Aen., III, 277. isto é, com uma camisola de lã.

Não imaginas o que eu passei ao trepar pelos baixios, procurando, e por fim encontrando, um caminho. Fiquei a perceber que os marinheiros têm razão em recear a terra!

Foi incrível o que eu aguentei, eu, que nem a mim mesmo já me aguentava. Fica sabendo que não foi tanto pelo ódio do deus do mar que Ulisses naufragou em todo o lado: o que ele tinha eram náuseas! Quanto a mim, onde quer que tenha de ir por mar, levarei como ele vinte anos a chegar! …

Quando recompus o estômago – e tu sabes que não basta sair da água para passar a náusea! – , quando retemperei o corpo com uma fricção, comecei a pensar na tendência que temos para esquecer as nossas debilidades, mesmo as físicas, que continuamente dão sinal de si, quanto mais as outras, que são tanto mais graves quanto mais ocultas.

Um ligeiro arrepio pode iludir qualquer um; mas quando aumenta e começa a arder como autêntica febre, mesmo o mais resistente e apto a suportar acaba por confessar-se doente. Temos dores nos pés, sentimos pequenas picadas nas articulações: a princípio disfarçamos, dizemos que torcemos um tornozelo, que demos um mau jeito qualquer. Enquanto a doença ainda está indecisa, no início, não lhe damos nome, mas quando faz inchar os tornozelos e deixa ambos os pés disformes, somos forçados a admitir que estamos atacados de gota.

Sucede o contrário às doenças que afetam o espírito:
quanto piores nós estamos menos damos por elas!

Não há razão para te espantares, meu caro Lucílio: quem tem o sono leve, mesmo quando descansa tem a visão das coisas e, por vezes, enquanto dorme, tem a consciência de estar dormindo; um sono muito profundo, porém, elimina até os sonhos, entorpece tão profundamente o espírito que o faz perder o conhecimento de si próprio!

Porque é que ninguém confessa os seus vícios? Porque ainda está dominado por eles: contar um sonho implica que se esteja acordado, confessar os vícios significa que se está curado deles.

Despertemos, pois, para podermos criticar os nossos erros. Somente a filosofia poderá acordar-nos, só ela poderá sacudir-nos de um sono pesado: dedica-te inteiramente a ela! Tu és digno dela, como ela é digna de ti: uni-vos num recíproco abraço.

Recusa entregar-te a tudo o mais, com coragem, com decisão; ser filósofo a meias, isso é que nunca!

Se estivesses doente deixarias por um tempo de cuidar do teu património, abandonarias os teus afazeres no foro e não julgarias ninguém suficientemente importante para lhe ires prestar assistência durante a tua convalescença; o que farias, de toda a tua alma, era procurares libertar-te quanto antes da doença.

Pois bem, porque não adaptar agora a mesma atitude? Liberta-te de todos os entraves, dedica-te totalmente à aquisição de um espírito reto, coisa que ninguém obtém se tiver outras ocupações.

A filosofia exerce o seu domínio; ela é que pode conceder, mas nunca contentar-se, com as horas vagas; não é uma atividade subsidiária, mas sim fundamental, ela é senhora, sempre presente e dominadora.

Quando uma certa cidade prometeu a Alexandre uma parte dos seus campos e a metade de todos os seus bens, ele retorquiu: “Eu não ando a percorrer a Ásia na intenção de aceitar o que vós estiverdes dispostos a dar-me, vós é que só tereis aquilo que eu vos deixar”. O mesmo se passa com a filosofia em relação às demais ocupações: “eu não estou disposta a aceitar o tempo que vos sobejar, vós é que tereis apenas aquele de que eu não necessite”.

Dirige todo o teu espírito para a filosofia, acompanha-a sempre, pratica-a sempre: uma enorme distância te separará dos demais homens; ficarás muito à frente do resto da humanidade e os deuses pouco se distanciarão de ti.

E se me perguntas qual a diferença que te separará dos deuses, a resposta é: eles durarão mais tempo. Encerrar em tão exíguo espaço a totalidade, é obra de grande artista, essa a verdade! O espaço da sua existência tem para o sábio tão poucos segredos como a eternidade os tem para a divindade: esta está liberta do medo graças à sua natureza, o sábio, graças a si mesmo.

Aí tens esta admirável situação: possuir a um tempo a fragilidade do homem e a segurança do deus!

Para repelir todas as violências do acaso a filosofia possui um incrível poder. Nenhum dardo pode penetrar no seu corpo, tão bem defendida e resistente ela é; alguns ataques, furta-os e deixa-os inertes, como setas ligeiras que se perdem nas pregas da sua roupagem; outros, repele-os com tal energia que eles se abatem sobre quem os tinha desferido.

Passar Bem!